terça-feira, 19 de junho de 2007

POR QUE COTAS NA UFRGS?

Patrice Schuch (antropóloga, pesquisadora associada ao Núcleo de Antropologia e Cidadania da UFRGS, bolsista de pós-doutorado Jr do CNPq).

A UFRGS está discutindo a implantação do sistema de cotas raciais para ingresso no vestibular. Embora as polêmicas mais acirradas estejam sendo efetuadas dentro dos muros da universidade, este debate interessa a todos nós. A desigualdade racial não é privilégio dos campos universitários. Contudo, a forma de ingresso em tais espaços tem contribuído para o agravamento das disparidades das relações raciais na sociedade brasileira e não para sua superação. A implantação do sistema de cotas visa tornar essa realidade menos desigual. No entanto, essa medida vem sendo criticada, sobretudo, através de três argumentos principais: 1) o que fundamenta a desigualdade na sociedade brasileira seria a estrutura de classe e não as relações raciais; 2) a noção de raça seria uma falácia, uma vez que tal conceito foi negado pela genética; 3) a idéia de que a implantação das cotas levaria a uma “racialização” da sociedade brasileira. O que os três argumentos têm em comum é uma essencialização notável das diferenças e uma desconsideração das sutis, mas graves, opressões constitutivas das relações de raça no Brasil.

Embora fundamental, a estruturação das relações de classe é insuficiente para a compreensão das dinâmicas de constituição da subordinação social em nosso país e, em especial, para a avaliação do perfil dos jovens universitários. Estudos recentes das ciências sociais têm extrapolado as dicotomias generalizantes para abarcar a exploração das diferenças entre classes sociais e no interior das classes sociais. As intersecções entre raça e classe, por exemplo, revelam que a sociedade está recortada por múltiplas camadas de subordinação que não podem ser reduzidas unicamente à questão de classe. Entre os mais pobres, ainda assim os negros têm menor acesso aos recursos sociais básicos do que os brancos e são as maiores vítimas de violência social e policial. A imbricação entre raça e classe, por outro lado, produz a inusitada situação em que, na universidade com maior percentual de professores negros – a Universidade de Brasília – esse percentual seja de apenas 1%. Na UFRGS, menos de 2% dos estudantes e 0,3% dos professores são negros. A raça é, assim, um fator importante de subordinação social, seja entre a classe mais rica, seja entre a classe mais pobre.

Ignorar a persistência da raça é, portanto, desconsiderar que a cor da pele, no Brasil, continua sendo uma chave de leitura para ordenar o real, mesmo que seus fundamentos biológicos já tenham sido ultrapassados há tempos. As estatísticas oficiais do IBGE são claras a esse respeito, basta querer lê-las. Se considerarmos a taxa de mortalidade infantil, por exemplo, vemos que há anos o percentual de incidência desse problema tem sido maior para negros do que para os brancos. Além disso, os negros morrem, em média, mais cedo do que os brancos. As causas das mortes também são diferentes, segundo pesquisa do Ministério da Saúde, publicada em 2004: enquanto para a população negra a principal causa de morte vem de homicídios, acidentes de trânsito, suicídios e outras mortes consideradas violentas, para os brancos a principal causa de morte são as doenças circulatórias. Dados recentes de uma pesquisa do Ministério do Desenvolvimento Social apontam outras situações desiguais: entre os quilombolas, a proporção de crianças de até cinco anos desnutridas é 76,1% maior do que o restante da população brasileira. O ingresso nos bancos universitários reproduz essa tendência desigual: segundo os dados levantados pelo PNUD no "Relatório de Desenvolvimento Humano Brasil 2005: Racismo, pobreza e violência", no ano de 2000 o percentual dos homens negros com mais de 30 anos de idade que tinha diploma de graduação (2,7%) era inferior ao mesmo dado registrado para os homens brancos em 1960 (3%), quarenta anos atrás.

Tais dados são contundentes no argumento de que a sociedade brasileira estrutura-se de forma efetiva também a partir da noção de raça. Denominar uma tentativa de transformação das desiguais relações raciais no Brasil como racista é se esquivar de participar de um processo de renegociação mais ampla do sentido de pertencimento e inclusão social. A sociedade brasileira precisa discutir que tipo de relações sociais quer construir. A universidade tem uma tarefa importante a cumprir nesse sentido, tanto politizando o debate acerca de uma suposta harmonia racial, quanto no desenvolvimento de mecanismos para o combate de desigualdades raciais persistentes e silenciadas há muito.

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