quarta-feira, 27 de junho de 2007

Cotas: razão e sensibilidade

Arlei Sander Damo (professor de antropologia da UFRGS)

Entre os tantos argumentos contrários às cotas creio que um deles, ao menos, merece ser contestado: aquele que afirma serem as cotas uma ameaça à meritocracia. A mudança que está sendo proposta e será apreciada pelo Conselho da UFRGS altera parcialmente, e tão somente, os critérios de aceso à universidade, destinando uma parte minoritária das vagas aos melhores concorrentes entre os cotistas - no máximo 20% das vagas, depois de três anos da implementação do programa (em 2010, portanto). Não está em jogo qualquer outra alteração, de modo que os cotistas estarão sujeitos aos mesmos critérios de avaliação dos demais estudantes ao longo da realização dos seus cursos.
O vestibular, como a etimologia de “vestíbulo” sugere, é um dispositivo visando restringir o acesso a um bem precioso: o ensino de terceiro grau gratuito e de qualidade. Ensino “gratuito” graças ao Estado e, portanto, aos brasileiros de todas as classes e de todas as raças. E “de qualidade” em razão do empenho de todos os que fazem parte da universidade, sejam favoráveis ou contrários às cotas. Além desta função utilitária, imprescindível para adequar a escassez da oferta à excessiva demanda por vagas, o vestibular é um concurso, como outro qualquer, cuja disputa é estabelecida no espectro de algumas modalidades de conhecimento. Um sujeito intelectualmente mediano, mas bem treinado, não terá maiores problemas em passar pelo vestibular, mesmo porque o concurso poderá ser realizado indefinidamente. A ilusão de que se é alguém ou, o que é pior, que se é mais do que os outros, por ter sido o 1º ou o 2º classificado nesse tipo de disputa é amplamente disseminada no meio acadêmico. Na medida em que os aprovados são, em geral, aqueles que se preparam estrategicamente para a disputa, não raro desde tenra idade e com o suporte de capital econômico familiar, o vestibular pode ser muitas coisas, menos um procedimento justo de aferimento de mérito, desde que este termo seja entendido no sentido amplo de sua acepção.

Não vejo, pois, razão para tanto estardalhaço. Se houvesse uma proposta de mudar todo o sistema de avaliação da universidade, estabelecendo privilégios para determinadas classes de alunos, quaisquer que fossem, provavelmente eu seria contra. Mas o que está em discussão é apenas a flexibilização do ingresso, sem nem mesmo facultar os cotistas do concurso. Tenho razões suficientes para firmar minha convicção de que as mudanças no vestibular, visando incluir alunos de escola pública, negros e índios, não agridem a meritocracia. A universidade é um centro de produção e disseminação de capital simbólico, uma modalidade de capital que pode ser reconvertida em outros capitais e, portanto, servir como um potente mecanismo de propulsão social e econômica. O atual vestibular favorece os que têm acesso à ampla rede de ensino que se estruturou no seu entorno; treina, portanto, indivíduos para burlar, com “truques” diversos, o sacrossanto dispositivo meritocrático. O que um vestibular com cotas faz é servir como um catalizador para determinados segmentos de raça e de classe social.

A propósito, meus bisavós vieram da Itália. Não foi antes de 1875, quando chegaram ao Sul do Brasil as primeiras levas de imigrantes, nem depois de 1890, data de nascimento de um dos primeiros descendestes. É possível, inclusive, que tenham chegado em 1888, ano em que os escravos foram oficialmente alforriados. Coincidências à parte (muitos descendentes de cativos lutam até os nossos dias para legalizar suas glebas), meus bisavós foram contemplados com suas cotas de terras pelo governo brasileiro. Eles cultivaram-nas, depois trocaram por outras e por outras mais, espelhando descendentes por vários estados brasileiros. Tiveram méritos nesse processo, sem dúvida, mas na origem há uma concessão importante, não posso negar.

Sou a favor das cotas, pois os que até agora se manifestaram contrários a elas não me convenceram de que elas serão perniciosas à UFRGS, nem me impressionaram com conjecturas que semeiam o pânico em relação às mudanças. Também sou pelas cotas por uma escolha política, que como outras tantas escolhas do mesmo gênero dependem de sensibilidade.

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