segunda-feira, 4 de junho de 2007

Debate: as produções antropológicas brasileiras sobre direitos humanos e a divisão de trabalho antropológico -

Por: MOISÉS KOPPER (aluno de Ciências Sociais - disciplina Antropologia e Direitos Humanos da UFRGS)

A argumentação de Daniela Cordovil dos Santos que discrimina a antropologia em termos de centro e periferia tem sua gênese no pressuposto mais genericamente foucaultiano de que a ciência não somente está implicada e atravessada de relações de poder e saber num dado contexto social, como também é, por vezes, determinada por esta trama institucional, cultural e política em que ela é produzida. Por outros termos, esta relação de poder entre países de centro e periferia, na arena geopolítica internacional, é igualmente responsável pelo tipo de percepção dos antropólogos centrais e periféricos – no âmbito da disciplina – acerca da categoria direitos humanos. Desta forma, o dilema intelectual precípuo dos países periféricos tem consistido em “domesticar” uma ciência comprometida com sua matriz de pensamento ocidental, de maneira a adequá-la a suas próprias tradições intelectuais e sua concretude sócio-cultural, o que, por sua vez, tem incidência, no caso do Brasil, sobre a compreensão dos antropólogos acerca da categoria direitos humanos, bem como sobre a área das relações internacionais, por intermédio de conseqüências político-pragmáticas manifestas.
Operou-se, no Brasil, um apartamento com relação ao princípio que caracterizou a disciplina nos países centrais, pelo menos nas suas primeiras décadas: o estudo de sociedades diferentes daquela do observador. Em última instância, está-se diante da especificidade ética de que o papel dos antropólogos brasileiros voltados para o estudo de sua própria sociedade como cientistas sociais confunde-se com o seu lugar de cidadão nacional. Deste fato decorre o engajamento peculiar da antropologia brasileira com questões políticas, principalmente aquelas relacionadas com a construção da nação. Duas inferências podem ser deduzidas destas constatações. Em primeiro lugar, por ser um conhecimento, digamos, explicitamente interessado, há um maior risco de cair facilmente numa naturalização das questões estudadas, transformando, de maneira um tanto apressada, problemas sociais em questões teóricas. Os valores do pesquisador precisam sofrer uma vigilância epistemológica ainda mais rigorosa do que quando o grau de envolvimento com o objeto é mais distante. Por outro lado, este envolvimento com questões de valores pode também ser salutar, já que implica o desenvolvimento de uma ética própria às ciências sociais brasileiras, a qual deve levar em conta os interesses dos grupos estudados, capaz de intermediar o difícil diálogo entre as minorias e o Estado.
Neste contexto de um estilo antropológico nacional se forja a apropriação da categoria direitos humanos. Isto é, também aí alguns problemas da especificidade brasileira se franqueiam. Em primeiro lugar, trata-se do pouco interesse em discutir questões de direitos humanos fora do Brasil. Por outro lado, esta característica beneficia-se de longa tradição em lidar com questões nacionais, pois se podem identificar novos problemas a partir de antigas questões. Tudo isto implica que nossos antropólogos podem estar mais capacitados e mais envolvidos na elaboração de princípios éticos de convivência entre o Estado nacional brasileiro e as populações desprivilegiadas no Brasil. Mas, por outro lado, com esta tradição de conhecimento somos vítimas de limitações impostas a nossa prática acadêmica que datam desde a origem da antropologia enquanto disciplina acadêmica. Trata-se, aqui, de uma verdadeira divisão do trabalho que se reporta à distinção entre antropologias periféricas e centrais, onde as primeiras atuam muitas vezes como reprodutoras de modelos teóricos e campos de observação para antropólogos de países centrais.

Nesse contexto se enquadram, pois, duas produções etnográficas que pretendo excogitar em linhas gerais, a saber, Novas Configurações: direitos humanos das mulheres, feminismo e participação política entre mulheres de grupos populares porto-alegrenses, de Alinne Bonetti; e Os Direitos dos Outros e Outros Direitos: um estudo sobre a negociação de conflitos nas DEAMs/RJ, de Jacqueline Muniz. Ambas as produções parecem se submeter à análise de Cordovil dos Santos: a antropologia brasileira, na situação de periferia, operacionaliza e introjeta conceitos advindos do centro, reproduzindo modelos teóricos e sintetizando-os criativamente às conjunturas sócio-culturais locais específicas do caso brasileiro; e não somente isto: esta parece ser a lógica que preside a formação do próprio objeto antropológico em âmbito histórico. Isto atesta, outrossim, as relações de poder que subjazem às produções científicas e, de maneira ainda mais genérica, estão no seio das vinculações internacionais entre países periféricos e centrais. Da mesma forma, a aferição destes estudos empíricos e suas respectivas ilações torna patente a peculiaridade da relação epistemológica de sujeito e objeto, no caso brasileiro, que, não descurando o perigo de se incorrer em naturalizações e subsunções das questões estudadas, parece ter sido aplicada de forma a levar em conta os interesses dos grupos interessados, intermediando os diálogos entre os saberes locais e as estruturas institucionais estatais.
Tomemos, num primeiro momento, os obstáculos ou tensões surgidas a partir do confronto de diferentes universos simbólicos de interação: de um lado, feministas organizadoras do curso de Formação de Promotoras Legais Populares (PLPs) – mulheres das camadas médias urbanas, intelectualizadas, informadas por valores do ideário individualista moderno; de outro, as participantes do curso – mulheres das camadas populares urbanas, com baixa escolaridade –, por sua vez informadas por valores constituídos pela preeminência da família, do parentesco, das redes de sociabilidades e do código relacional de reciprocidade. A autora, preterindo e rechaçando uma interpretação em termos de limites do processo de cidadanização – advindo desse confronto entre valores universalistas da modernidade e os valores locais que dão sentido ao universo social das camadas populares urbanas –, se propõe argumentar que há, no caso das PLPs atuantes, uma apropriação significativa de alguns elementos do ideário feminista (e portanto universalista moderno), resultando numa forma peculiar de participação política e de aquisição de cidadania. Isto não significa outra coisa, senão que há uma ressemantização e reordenação criativa de um conjunto sistêmico de valores recebidos – ou infundidos – do centro; igualmente, este exemplo etnográfico de postura metodológica e epistemológica, denota preocupação pelas significações êmicas dos fenômenos sociais, alocando a ciência antropológica enquanto mediadora de processos cuja especificidade reside na manipulação e apropriação valorativa de diferentes universos simbólicos com vistas à consecução de seus próprios fins. Isto significa, em termos empíricos, que as PLPs atuantes, ao contrário de estarem reclamando por um lugar dentro do movimento feminista, estão se utilizando de um recurso discursivo que sabem ser de alto valor social dentro dos espaços semânticos do campo político pelo qual circulam. Com isto revelam, além do domínio de diferentes códigos culturais, a busca por um lugar dentro do campo político a fim de terem reconhecimento e legitimidade para seu trabalho e assim, realizando seus projetos individuais, através de uma mudança de status social traduzido na aquisição de prestígio, capital simbólico e, eventualmente, de capital financeiro.
Outro caso ilustrativo encontramos em Jacqueline Muniz, em que também o leitmotiv parece ser o termo negociação de verdades e ordens simbólicas. O que acontece, nesses casos, é que para um conjunto expressivo da clientela atendida pelas Delegacias Especiais de Atendimento à Mulher, a justiça oficial apresenta-se como uma realidade distante, inacessível e até mesmo ininteligível. As agências policiais são objetos, com o sistema judicial, destes sentimentos de desconfiança. Entretanto, elas são reconhecidas como o espaço público disponível para a resolução de conflitos. O arbitramento extra-oficial convive, ao mesmo tempo em que destoa das práticas discricionárias da polícia, tradicionalmente exercidas contra a clientela que solicita seus serviços. No exercício ilegal de negociação de litígios, a polícia, ao contrário do que ocorre nas suas ações repressivas, conta com a cumplicidade voluntária dos demandantes. Tudo isto mostra que o Estado Brasileiro, próximo à virada do século XXI, não conseguiu monopolizar a produção e distribuição da justiça: desde o Império a justiça não tem se apresentado como o lócus privilegiado de resolução da conflitualidade. Trata-se, por conseguinte, de mais um arquétipo que ilustra a idéia de Cordovil dos Santos, respeitante à recolocação de valores eminentemente importados à periferia, isto é, advindos do centro, mas adaptados criativamente ao contexto local. A justiça tradicional, enquanto um elemento constituinte do ideário universal moderno, não dá conta de subsumir, circunscrever e açambarcar a totalidade dos casos, litígios e situações possíveis na sociedade brasileira. Donde se pode concluir que a descrença na eficácia simbólica deste imaginário jurídico clássico parece ocorrer não só em virtude de sua atuação historicamente seletiva e excludente, como também pelo fato de que certos litígios não são reconhecidos como delitos pelo mundo jurídico, o que evidencia a existência de obstáculos e casuísmos históricos presentes no diálogo entre Estado e sociedade.
Ora, a compensação deste hiato tem sido equacionada através da constituição, ampliação e implementação de espaços públicos informais de negociação de conflitos, em grande medida preenchidos pelas instituições policiais. Mas uma certa abertura para o exercício de práticas não-oficiais não se explica apenas pelas características da demanda e seus interesses específicos e emergenciais. Ela também se reporta à interpretação policial de suas atribuições oficialmente instituídas: existem paradoxos e dilemas existentes na organização e prática policiais que favorecem as atuações “ilegais”, inaugurando, assim, espaços de interpretação e aplicação autônomas da lei, adequando o rigoroso universo da legalidade às singularidades das práticas e experiências policiais. Em síntese, os próprios fundamentos legais parecem contribuir para que as agências policiais se convertam numa espécie de híbrido institucional mimetizador de funções e práticas regimentais distintas. Assim, não é incomum que as DEAMs, acatando os interesses das partes, atuem em certos litígios como se estes não constituíssem um crime de ação pública.
Não obstante, o que se observa é uma relação de complementaridade das agências policiais, no “desvirtuamento” de suas funções, com o tradicional modelo jurídico brasileiro. Nesse sentido, a instituição policial acaba por substituir a legalidade pela legitimidade de suas decisões: estas mesmas decisões se encontram respaldadas pelos interesses emergenciais da demanda. Tudo isto nos faz reportar a um outro direito no interior do direito estatal oficial, remetendo à noção de pluralismo jurídico, isto é, uma espécie de polissemia semântica que faz aparecer múltiplos eixos de significados, espacialidades no interior do campo significacional do mundo jurídico. A vida sócio-jurídica, nos tempos da modernidade, apresenta-se como um lugar de cruzamento entre diferentes fronteiras jurídicas. É precisamente esta intersecção, um tipo de manifestação fenomenológica do pluralismo jurídico, que se pode qualificar de interlegalidade. Sem correr o risco de descaracterizar o mundo jurídico formal, esta noção incorpora a desfuncionalidade presente na vida moderna e permite que outras práticas de negociação e resolução de litígios possam ser investigadas e adjetivadas como “jurídicas”. Uma outra virtude que merece ser evidenciada é que esta perspectiva, ao iluminar as juridicidades informais, contribui para o esclarecimento dos problemas que obstacularizam a relação entre a justiça e a população.
Estas são todas perspectivas que se entrecruzam ao colocar a ciência – em especial a antropologia – enquanto parte constitutiva e construtiva da sociedade e de universos simbólicos específicos. Nesse sentido, uma análise da própria realidade, como foi a característica precípua da ciência social brasileira, também colocou os aportes imprescindíveis à fragmentação e dissolução da clivagem dicotômica entre o “nós” que tão prontamente opomos aos “outros”, problematizando a familiaridade com que têm sido tratados pelos antropólogos e outros cientistas sociais (DEBERT, 1997). Um outro aspecto intrínseco às produções etnográficas excogitadas aqui e que as põem em consonância com as proposições de Cordovil dos Santos, parecem ser os corolários do que se convencionou chamar de antropologia pós-moderna. Mostrou-se assim como a autoridade do antropólogo é construída, operou-se uma revisão definitiva da idéia das culturas como totalidades autônomas e integradas e, sobretudo, recolocou-se no coração da disciplina a importância da crítica cultural. Entretanto, um problema que permaneceu e que talvez seja menos evidente é o quanto somos nativos das nossas próprias culturas e sociedades, quanto os nossos conceitos sobre elas são o que Geertz chama de “concepções de experiência próxima”. Isto importa, antes de qualquer coisa, em aplicar um princípio da própria crítica pós-moderna: mais do que fazer uma antropologia pós-moderna, cumpre fazer uma antropologia da pós-modernidade. Para Debert, a antropologia, como ratificam as etnografias aqui analisadas, está especialmente bem colocada para fazer face a esse convite, que envolve um conhecimento mais elaborado do “nós” e das formas específicas que a dominação assume contemporaneamente. Contudo, atender a esse convite exige reformulações na forma em que o trabalho antropológico vem sendo tradicionalmente realizado; demanda também revisões nos instrumentos metodológicos e nos pressupostos éticos com os quais temos trabalhado. Novamente, o material etnográfico analisado até aqui contribui para materializar estas expectativas. Sobretudo a noção de “intermediários culturais”, a impossibilidade de demarcação de um lugar específico para o fazer antropológico, e a obliteração da clivagem clássica entre antropólogo e objeto, me parecem suficientemente esquadrinhadas ao longo deste texto.

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