sexta-feira, 28 de março de 2008

Em busca das fontes do mal

Por: ALFREDO JERUSALINSKY- Psicanalista

'Todo o mundo da filosofia científica baseia-se na premissa fundamental de que o homem tem a obrigação de procurar a Verdade, como se esta fosse uma fera solitária, habitando as florestas da ignorância.'
Que as palavras de nosso apólogo pertençam a um texto de ficção que pretende ser real não diminui em nada seu valor. Nós, os seres humanos, estamos acostumados a morar nesse território intermadiário entre o imaginário e o real. É precisamente o fato de morarmos nesse território o que nos distingue das feras e nos permite interrogarmo-nos sobre o verdadeiro ou o falso. Dito de outro modo, ser cientista é possível porque a ficção existe. É essa ficção a que lhe permite supor um objeto - formular uma hipótese - quando ainda não o achou. Mas os cientistas costumam ser obcecados; quando não encontram seu objeto o fabricam. Ali está o doutor Viktor Frankenstein para testemunhar o que digo e, sem dúvida, cheio de boas intenções: propunha-se desvendar o segredo da vida e construir um homem perfeito. Como sempre, nesses casos, lhe saiu um pouco descosturado.
Um aparte: vou me antecipar a qualquer objeção no sentido de considerar a ficção como falsa. De modo algum seria aceitável considerarmos - por exemplo - que uma ficção como O Amor nos Tempos do Cólera, de Gabriel García Márquez, é falsa. Muito pelo contrário, é indiscutível que ela está cheia de verdades.
Então, de que está feita a verdade? Vamos devagar porque não é nada fácil chegarmos a um acordo para responder essa pergunta. De fato, a humanidade vem discutindo essa questão desde suas origens, e o bate-boca não parece ter arrefecido. Somente a partir do século 18, com o triunfo das idéias de Baruch Spinoza na filosofia, de Galileu Galilei na física e na astronomia, e mais tarde de Darwin na biologia, a ciência adquire o direito de oferecer sua própria resposta: a verdade não está dada, mas precisa ser descoberta por meios racionais. Toma forma de antítese a oposição entre ciência e religião. O homem sofre então a desilusão e o desamparo de não dispor de uma verdade estabelecida a priori, mas de ter que empreender uma longa caminhada na sua procura. Aventureiros, cientistas e exploradores se tornam protagonistas. O Everest é escalado, o Pólo Sul é alcançado, os corpos são dissecados, os cérebros fotografados, as células contadas e analisadas, os animais classificados e seqüenciados, os povos comunicados, milhares de línguas catalogadas, as línguas mortas (memória "científica" da história) são decifradas.
Eis ali que a ciência, por sua vez, se divide, novamente ao redor dessa questão central: onde procurar a verdade? Por um lado surgem as ciências que vasculham nos labirintos das palavras, dos símbolos, das imagens, das máscaras, dos costumes, dos sentimentos, da moral, dos valores, dos significados, das culturas, em suma, do discurso. Por outro lado se firmam as ciências que ousam penetrar nos segredos dos corpos e das coisas. O antigo dualismo místico entre alma e corpo toma forma científica: uma oposição entre ciências psicológicas e ciências neurobiológicas. É Sigmund Freud quem, no fim do século 19 e início do 20, toma a iniciativa de rejeitar tal separação tentando demonstrar, com os escassos meios técnicos de que dispunha então (o neurônio acabava de ser descoberto por Ramon e Cajal), a indissolúvel interdependência de ambos processos - os psíquicos e os neurológicos - apesar da diferença dos princípios que organizam suas respectivas atividades. Formula, para isso, a hipótese de que o funcionamento cerebral se veria organizado fundamentalmente pelas experiências infantis (especialmente as precoces) e pelas configurações de linguagem que organizariam complexos, persistentes mas variáveis, de significação de objetos, pessoas e situações do meio circundante.
O sofrimento psíquico estaria ligado, então, à dificuldade de passar de uma rede de significações mais primitiva para uma nova, mais concordante com a situação atual do sujeito. Em suma, a dinâmica psíquica consistiria numa seqüência de complexos de linguagem que organizariam a memória inconsciente do sujeito, levando a que se repitam ou não as experiências satisfatórias, insatisfatórias, ameaçantes, deprimentes, etc. por associação dos elementos atuais com as antigas configurações. Essas hipóteses vieram se confirmando ao longo dos últimos cem anos, e ainda mais: as descobertas operadas durante os últimos 10 anos no campo das neurociências, especialmente no que se refere à memória, aprendizagens e neurotransmissão, são totalmente concordantes com aquelas hipóteses freudianas formuladas em 1896 no seu conhecido Projeto de uma Psicologia para Neurologistas.
De fato, uma das descobertas fundamentais nesse sentido é apontada por Eric R. Kandel (Nobel de medicina em 2000 pelo seu trabalho sobre memória e neuroplasticidade) no seu livro Em Busca da Memória - O Nascimento de uma Nova Ciência da Mente (Editora Katz, Buenos Aires, 2007) quando assinala que o que se acumula na memória humana, à diferença do que poderia acontecer com outros mamíferos que não dispõem da linguagem, não é o objeto em si ou sua representação figurativa, mas um traço a ele associado que, de fato, não precisa ter nada a ver com o objeto mesmo; basta que seja significante do objeto ou situação em questão para produzir o mesmo efeito que a presença real da coisa. Uma tese levantada por Freud em 1895 - e verificada hoje com maior precisão detectando-se os modos específicos em que tal processo de representações e armazenamento de marcas correspondentes ao mundo circundante se efetua no nível dos processos neurobiológicos.
De tal modo um sujeito pode se sentir ameaçado e irado (na defensiva) "inexplicavelmente" diante da presença de uma banal garrafa vazia de vodca jogada no chão (por exemplo, evocativa do medo causado por seu pai bêbado quando pequeno). Ou com uma sensação de morte iminente diante de um passarinho bicando a grama, já que ele está ligado a uma cena de não encontrar o alimento que procura, evocativa de fome e abandono sofridas na infância precoce e vividas como agressão imaginariamente causada pelo outro sentido como privador.
Quando as experiências precoces são sofridas, doloridas e ameaçantes, quando o Outro Primordial (aquele que realiza os cuidados primários) não opera como amortecedor das intemperanças do meio, a memória desse sujeito guardará o resíduo evocativo do outro - quem quer que seja - como inimigo, cuja presença despertará uma ansiedade persecutória aparentemente imotivada. A clínica psicanalítica e as mais diversas formas psicoterapêuticas testemunham isso em centenas de milhares de casos ao longo de mais de cem anos de experiência. Os achados no campo da neurotransmissão no que se refere aos efeitos residuais da operação de apagamento de memórias a nível de conexões sinápticas "sobreviventes", que atuam como facilitadoras na renovação ou na re-aprendizagem, mas que também podem atuar como "facilitadoras" do retorno de lembranças indesejáveis, se correspondem com as dinâmicas psíquicas longamente observadas no campo clínico psicológico.
De tal forma, a correspondência entre transformações psíquicas e modificações cerebrais - tanto no campo funcional como nos aspectos anatômicos - hoje em dia é muito mais do que uma hipótese: é um fato vastamente comprovado. O que desde fins da década de 1980 recebe o nome de neuroplasticidade - e que anteriormente recebeu outras denominações tais como, sensibilidade da mielinização aos estímulos externos (Minkowski, 1948), flexibilidade neuronal (Coriat, 1976) - se especifica atualmente pelas modificações sinápticas (as conexões entre neurônios) causadas pela matriz de significações propostas por aqueles que rodeiam a pequena criança (especialmente até os três anos de idade embora as modificações se estendam significativamente até a puberdade). De tal modo, a forma em que a criança é tratada e "significada" por seus pais e cuidadores provoca sistemas de memórias que ficam gravadas e que dão lugar a configurações anatômicas e de circuitos de neurotransmissão, de recordação e esquecimentos parciais, ou aparentes amnésias que guardam efeitos inconscientes residuais totalmente singulares para cada sujeito. Essas marcas significantes retornarão ou não durante a vida do sujeito de acordo com as circunstâncias com que ele venha a se deparar (veja-se o recente livro A Cada Quem seu Cérebro, de François Ansermet e Pierre Magistretti, Ed. Katz, Buenos Aires, 2007).
Estas não são suposições, são fatos e descobertas que, muito além das resistências recíprocas, a soma e articulação interdisciplinar das neurociências com a psicanálise tem permitido.Uma pesquisa recente (da qual o autor deste artigo é coordenador científico) de detecção precoce de risco de desenvolvimento e risco psíquico em crianças de zero a 18 meses e que foram acompanhadas até o quarto ano de vida, vem apoiar - nos seus resultados preliminares - o que aqui se afirma. 746 crianças que fizeram seus controles pediátricos regulares em 10 hospitais públicos de 10 capitais do país mostraram o quanto elas são sensíveis às diversas formas em que seus pais (especialmente as mães) as tratam nesse período precoce da infância e o quanto elas refletem na sua estruturação e funcionamento psíquico posterior as nuanças atravessadas durante esse período inicial. Também evidenciaram como todas elas precisam que certas funções sejam cumpridas - embora sob formas diferentes - para poderem se estruturar como sujeitos adequadamente. Isso viria a demonstrar que os humanos têm uma infra-estrutura comum (equipamento genético e neurológico) com leves diferenças, que precisa de uma série de funções equivalentes, mas não idênticas, para ser ativada e constituir uma estrutura capaz de funcionar e tornar o individuo um sujeito social.
Thomas Ebert e colaboradores, na Universidade de Constanza, Alemanha, compararam imagens do cérebro de violinistas com os de outros que não eram músicos. Verificaram que a região cerebral que corresponde ao controle dos quatro dedos da mão esquerda (a que modula as cordas) dos violinistas era até cinco vezes mais extensa do que essa mesma área nos não músicos. Ao mesmo tempo, as zonas do córtex correspondentes à mão direita (que não exerce funções tão sutis já que se aplica somente ao deslizamento do arco sobre as cordas) eram equivalentes entre os músicos e os não-músicos. Ao mesmo tempo comprovaram que os músicos que tinham iniciado sua aprendizagem no violino antes dos 13 anos tinham as regiões da mão esquerda representadas no cérebro por uma extensão maior da de aqueles que tinham começado a estudar violino após essa idade.
Seguindo esse modelo, podemos cogitar que se comparássemos imagens cerebrais de índios quéchuas músicos, que costumam tocar sua quena (flauta de bambu com cinco buracos) obturando alternadamente as perfurações com os dedos da mão direita, deveríamos nos deparar com que a extensão da zona cortical correspondente aos cinco dedos da mão direita seria significativamente mais extensa (e não a correspondente aos quatro dedos da mão esquerda, como nos violinistas) em relação à mesma representação sensório-motriz dos dedos da mão direita no córtex dos quéchuas não músicos. E o que teríamos demonstrado com isso? Certamente não que uma área maior no córtex de representação dos quatro dedos da mão esquerda causaria um violinista entre os quéchuas, nem tampouco que uma maior extensão cortical correspondente aos dedos da mão direita causaria um flautista de "quena" entre os poloneses.
Então, por exemplo, se alguém pesquisasse qual é a modificação cerebral (funcional e/ou anatômica) comum a todo um grupo de adolescentes violentos, é bem possível que encontre algum traço. No fim das contas, de um modo geral, os internos da Fundação de Atendimento Socioeducativo (Fase), por exemplo, têm - a grande maioria deles - muitas experiências infantis em comum. Acabamos de lembrar que existem já demasiadas comprovações de como essas experiências precoces incidem como matriz que ordena, modifica e orienta o conjunto das sinapses e a extensão das funções psíquicas diferenciadas no córtex. Mas supondo que encontrasse o tal traço comum, seja genético ou neurológico, o que teria demonstrado com isso?Cada vez que encontre uma certa extensão de representação funcional cortical localizada adequadamente terei um violinista? Ou encontrando a correspondente a meu achado, terei um flautista? Ou seja lá o que for que venha a se achar, terei um violento? Poderia se inventar uma medicação para produzir violinistas entre os quéchuas? Ou um "quenista" entre os poloneses?Os jesuítas já convenceram os guaranis não somente a tocar, mas também a fabricar violinos. Não pode se dizer que foi uma experiência afortunada. E, do outro lado, vocês já viram um esquimó tocando cavaquinho?
Pesquisar tanto as alterações na estrutura cerebral quanto o ambiente psicossocial que envolve e pode caracterizar grupos de jovens violentos pode nos ajudar a confirmar algo que já sabemos com bastante aproximação: que a violência, na generalidade dos casos, não é intrínseca a uma condição genética (embora possa haver casos isolados que apresentem essa condição) nem intrínseca a uma constituição neurológica originária (embora alterações neurológicas em raros casos específicos possam provocar ou propiciar tal comportamento). Embora para Julian Huxley, primeiro Secretário Geral da Unesco, de 1946 a 1948, várias vezes presidente da Eugenics Society, reconhecido cientista e pai do conhecido escritor Aldous Huxley (autor do famoso romance Admirável Mundo Novo): "...são essas pessoas das grandes cidades, que os assistentes sociais conhecem muito bem, que parecem desinteressar-se de tudo e continuam simplesmente sua existência vazia no meio de uma extrema pobreza e sujeira... Aqui poderia ser útil a esterilização voluntária ou métodos imunológicos de esterilização..." E não descarta as soluções totalitárias (ele mesmo utiliza esse termo).
É esclarecedor levarmos em conta que nos últimos 10 anos (segundo a Rede de Informação Tecnológica Latino-americana) houve um aumento de 31,3% de mortes violentas de jovens de 15 a 24 anos no nosso país. Seguramente essa mudança não pode ser atribuída a qualquer mudança genética ou neurológica, embora seja provável que por causa da variação das condições psicosociais tenham se produzido modificações nos sistemas de alerta, irritabilidade, limiares de alarme, sinais de angústia e agressivização dos jovens, que os predispõem a serem agentes ou vítimas de atos violentos. É bem provável, e até necessário, que alguma enzima, alguma proteína tenha se modificado.
Imaginemos que uma pesquisa para comprovar tal modificação seja proposta pelos israelenses tomando como amostra, privilegiada pela presença de manifestações violentas, os palestinos. Ou que na Alemanha dos anos de 1940 fosse proposta uma tal pesquisa tomando os judeus rebeldes de Varsóvia como "sujeitos". Ou os armênios como objeto de pesquisa dos turcos. Ou os irlandeses como objeto de pesquisa dos cientistas britânicos. Ou uma classe social tomasse nessa posição de objeto de estudo a outra classe social, ou um grupo cultural a outro, ou, ainda, os adultos aos adolescentes. São suposições (embora algumas dessas pesquisas já se tenham, de um modo ou outro, realizado) que nos ajudam a pensar não somente no benefício de aumentar nossos conhecimentos, de ficarmos melhor orientados para proteger as vítimas passivas e as vítimas ativas da violência, mas também quais as conseqüências para os sujeitos - já subordinados, oprimidos ou em situação de fragilidade - tomados como objetos de pesquisa onde são colocados como massa identificada por um defeito de conduta, com o inevitável, então, risco de despersonalização.
E ainda, se ao encontrarmos alguma característica orgânica associada à conduta violenta estivéssemos dispostos a supor ela, pela sua mera presença, fator causal, estaríamos introduzindo o risco de colocar o sujeito como portador de um mal crônico e essencial: o mal de ser portador do mal.

ALFREDO JERUSALINSKY (Do diário apócrifo de Frankenstein).

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