segunda-feira, 31 de março de 2008

"Consentimento" ou "Constrangimento" Informado? Para Além do Bem e do Mal, o debate tem que continuar...


Patrice Schuch (doutora em Antropologia Social, pesquisadora associada ao Núcleo de Antropologia e Cidadania da UFRGS)*

I - Introdução

Na semana passada fui convidada, pela ONG "Educadores para a Paz", a debater o projeto de pesquisa de um grupo de pesquisadores do Departamento de Medicina e Psicologia da PUCRS e de genética da UFRGS, acerca do estudo sobre agressividade e seus possíveis fatores associados. A análise será desenvolvida entre 50 adolescentes homicidas internados na Fundação de Atendimento Sócio-Educativo (FASE) do Rio Grande do Sul, de idades entre 15 e 21 anos, com um correspondente grupo de controle. O projeto prevê dois anos de trabalho e tem o financiamento da empresa GERDAU, com orçamento no valor de 120 mil reais.
O convite da ONG, sinal de seu sério engajamento na promoção da paz, permitiu-me conhecer o projeto a partir das entrevistas dadas pelos coordenadores da pesquisa, assim como o debate público ensejado pelas intenções do estudo. Sobretudo, deu-me a oportunidade para fazer um balanço avaliativo sobre as possibilidades e implicações desse tipo de trabalho, ensejando várias questões que considero importantes e necessárias de serem respondidas pela equipe de pesquisa, para subsidiar o debate público do tema. Precisamos conhecer melhor o projeto.
Mesmo considerando o perigo de colocar questões sobre o projeto a partir de entrevistas sobre o tema expostas na mídia - – não conheço o projeto original, em função da falta de acesso ao mesmo – e partindo do pressuposto do respeito ao trabalho dos pesquisadores, considero pertinente problematizar três fatores, na esperança de prosseguir a discussão: 1) o silêncio sobre a metodologia e as hipóteses que guiam a investigação dos aspectos sociais relacionados à agressividade; 2) o aparentemente sutil, mas importante, deslocamento do estudo sobre a agressividade para o estudo sobre a infração; 3) a vulnerabilidade do universo de pesquisa escolhido para o estudo: adolescentes internados na FASE. Este texto visa ampliar o alcance dessas interrogações, assim como retomar a discussão sobre a pesquisa e seus efeitos.

II- Sobre o “conhecer” perspectivo

O principal foco das discussões públicas sobre a pesquisa se deu nos meses de janeiro e fevereiro de 2008, a partir da publicação de uma apresentação sucinta do projeto na Folha de São Paulo, no final do ano de 2007. Prosseguiu-se uma série de reações que, muitas vezes, trabalharam com um conjunto de oposições um tanto quanto genéricas entre ciência/política, biologia/cultura, fatores genéticos/fatores sociais, que talvez não tenham contribuído o suficiente para avaliaras hipóteses da pesquisa, seus procedimentos de trabalho e possíveis implicações. Também ficaram em abertas questões de fundo, suscitadas a partir da discussão sobre o projeto de pesquisa, como o estatuto da ciência e suas implicações sociais, a problemática da violência e o sistema de justiça juvenil.
Tendo me dedicado há alguns anos sobre o estudo antropológico do conjunto de intervenções sociais dirigidas à infância e juventude, sinto-me à vontade para contribuir no prosseguimento de um debate que surgiu com muito gás no início deste ano, mas que, estranhamente, silenciou-se no seu desenvolvimento. Acredito que o projeto de pesquisa esteja sendo avaliado por comissões de ética das universidades propositoras, mas um longo debate ainda deve ser travado. Este envolve também os órgãos de justiça juvenil e as instituições diretamente implicadas na pesquisa - Juizado da Infância e Juventude, Ministério Público, Defensoria Pública e FASE –, além das entidades de política de atendimento à infância e juventude que, por lei - Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA, 1990) -, deve ser elaborada coletivamente. Isto significa implicar na discussão os vários órgãos representativos da política democrática e participativa almejada pela lei: Conselhos Municipais e Estaduais de Direitos da Criança e do Adolescente, ONG's, escolas, entidades de promoção e proteção de direitos humanos, instituições ligadas à segurança pública e à assistência social, universidades e centros de pesquisa, Conselhos profissionais, etc. Enfim, uma ampla rede de agentes e agências que são tão responsáveis pelas escolhas a serem realizadas e seus efeitos, como as Comissões de Ética da PUCRS e UFRGS.
Após uma longa história de existência da ciência e sua consolidação, hoje sabemos que existe uma relação muito estreita entre fatos científicos e problemas sociais. Longe de haver uma autonomia completa da ciência frente à sociedade, os saberes científicos são sempre parciais, provisórios e frutos de embates sociais que envolvem disputas diversas sobre o que pesquisar, em que grupos e de que forma. Todas essas questões constrangem o que será constituído como "científico" e passará a constar como enunciado de verdade. Como já referiu Nietzsche há muito tempo, noções como "puro sujeito do conhecimento", “conhecimento em si" e "razão pura" dependem de um "olho" que não pode ser absolutamente imaginado, um "olho" voltado para nenhuma direção, no qual as forças ativas e interpretativas que fazem com que ver seja "ver-algo" estejam imobilizadas e ausentes. Se pensarmos sob esse ponto de vista, a discussão sobre a ética da pesquisa não se restringe às Comissões de Ética das Universidades, mesmo com suas valiosas e imprescindíveis contribuições. Envolve, pois, debates sociais muito mais amplos. Silenciar, nesse debate, é tomar posição: fechar os "olhos".

III – O que estamos “vendo”, afinal?

Pelo que foi possível deduzir a partir das fontes indiretas sobre o projeto, creio que o mesmo não estabelece, a priori, uma relação de causalidade entre biologia/genética e agressividade, o que o isenta de certas críticas. Seu objetivo seria entender o relacionamento entre quatro fatores no desenvolvimento da agressividade:
1) fatores cerebrais (a serem investigados através de ressonância magnética; a hipótese é de que haja deficiência ou atrofia no lobo frontal em pessoas mais agressivas);
2) elementos genéticos (a serem estudados através do estudo do DNA; idéia de que haja polimorfismos associados com eventos estressores que possam estar ligados à agressividade);
3) elementos psicológicos (a serem investigados através da aplicação de três questionários distintos: sobre traumas na infância; sobre histórico psicológico e escolar; sobre a presença de extrema agressividade que indique psicopatia. A hipótese é que eventos traumáticos marquem ainfância de pessoas mais agressivas);
4) fatores sociais (procedimentos não especificados ao longo dos debates públicos sobre a pesquisa; não há nenhuma informação sobre a presença de membro da equipe de trabalho com especialização científica em sociologia/antropologia/educação ou outras ciências humanas; O pesquisador Renato Flores diz que sua equipe será também responsável por essa avaliação, embora não haja maiores especificações sobre os procedimentos e hipóteses a serem adotados, nessa área).

3.1. O desaparecimento do social
Chamo a atenção de que, embora o ideário da pesquisa implique o estudo de quatro variáveis, a ênfase colocada é mesmo nos aspectos cerebrais e genéticos da agressividade - o entendimento da manifestação física da agressividade, nos termos dos pesquisadores. Mesmo que o estudo psicológico preveja métodos específicos de coleta de dados, ele não está relacionado – ao menos nas falas dos pesquisadores publicadas em entrevistas sobre o tema - com os estudos genéticos e cerebrais. Quanto aos aspectos sociais, há um estranho silêncio sobre a metodologia para sua apreensão, bem como a sua importância ao longo das análises a serem realizadas. É relevante que seja esclarecido, pelos propositores da pesquisa: qual a metodologia de pesquisa e as hipóteses que guiam o estudo dos aspectos sociais relativos ao desenvolvimento da agressividade? Sobretudo, de que forma está sendo pensada a sua relação com os demais elementos do estudo, isto é, com os elementos psicológicos, cerebrais e genéticos?
Isto porque não é possível desconsiderar os aspectos sociais ou subordiná-los à genética/biologia. Estudar seu relacionamento, entretanto, pode nos trazer informações importantes, ampliando o conhecimento sobre o tema. Hoje, não é novidade - nem para antropólogos, nem para biólogos – que é uma ilusão imaginar uma natureza humana constante, independentemente do tempo, lugar e circunstância. Ao mesmo tempo, sabe-se que é muito difícil traçar uma linha entre o que seria natural, universal e constante e o que é cultural, local e variável. Aquilo que um conhecido antropólogo norte-americano, Clifford Geertz, chamou de “hipótese estratificada” das relações entre o biológico, psicológico, social e cultural na vida humana - a idéia de uma separação entre “níveis” irredutíveis entre si – já foi substituída por uma “noção sintética”, que trabalha com o pressuposto de que a “natureza humana” não existe independentemente da “cultura”: o nosso sistema nervoso central é incapaz de dirigir nosso comportamento sem a orientação fornecida por sistemas de signos significantes. Ser humano não é apenas respirar, é controlar a respiração por técnicas específicas; não é apenas falar, é emitir palavras e frases apropriadas; não é apenas comer, é preferir certos alimentos. Em síntese, a cultura humana é um ingrediente e não um suplemento do pensamento humano.

3.2. O deslocamento da “agressividade” para a “infração”
E os homens diferem. Diferem não somente na construção de símbolos, mas na sua leitura e atribuição de significados a atos e comportamentos específicos. Não obstante, várias tentativas foram feitas no intuito de alcançar “pontos invariantes de referência” de conhecimento sobre o homem, assim como explicações, no âmbito da natureza, acerca de comportamentos considerados socialmente desviantes. Essas tentativas se caracterizam por uma forma de conhecimento tipológico, o qual nos informa mais sobre os processos de constituição de estigmas sociais do que sobre as causas biológicas/genéticas de sua existência. Em geral, tendem a trabalhar com variáveis que são supostamente percebidas como tendo uma essência natural ou orgânica – por exemplo, a agressividade – deixando-se de lado um conjunto de atributos sociais envolvidos no percurso interpretativo que transforma um ato qualquer, em um ato agressivo. No caso do estudo dos pesquisadores da PUCRS e UFRGS ainda há um deslocamento mais sutil: o que transforma a pergunta sobre a agressividade e seus fatores de relação, com as interrogações sobre o crime/infração e sua constituição.
Embora a pesquisa esteja direcionada para a investigação dos fatores relacionados ao desenvolvimento da agressividade, o universo de pesquisa escolhido – adolescentes homicidas internados na FASE, com um correspondente grupo de controle – é representativo de outro universo, constituído por adolescentes constituídos legalmente como infratores. Há um deslocamento importante que deve ser questionado: da agressividade à condenação legal, a infração. Diferentemente do atributo da “agressividade”, a categoria “infrator” é aplicada àqueles que, sujeitos ao sistema de justiça juvenil, foram considerados culpados por atos definidos em lei específica como crime ou contravenção penal - homicídio. Isto implica em dizer que o recorte do universo da pesquisa se dá pelo filtro de uma definição jurídica específica e não somente pela posse de um determinado atributo – agressividade. Temos aí dois procedimentos distintos: de um lado, a abstração da “agressividade” na questão orientadora da pesquisa; de outro lado, sua objetivação no universo de estudo definido pela pesquisa: adolescentes constituídos como “infratores” pelo sistema de justiça. A abstração da agressividade tem por efeito sua objetivação no grupo de infratores.
Entre os adolescentes considerados infratores, há adolescentes que poderiam ser considerados agressivos, certamente, mas eles não são representativos do universo de pessoas agressivas. Pode-se ter agressivos que não sejam constituídos como infratores, na medida em que a população de adolescentes infratores – como mostrado em várias pesquisas - é representativa de um estrato socialmente vulnerável: jovens do sexo masculino, pobres, com pouca escolaridade, sem trabalho e com proporcionalmente maior presença de negros e pardos. Recortar a pesquisa no universo dos adolescentes infratores arrisca esconder os complexos elementos de constituição jurídica e social desse personagem que, de outro lado, passa a ser naturalmente associado a maior agressividade e não a maior vulnerabilidade frente ao sistema de justiça.
Entender os fatores relacionados à constituição do infrator requereria, sem dúvida, um outro estudo: aquele que se detivesse na análise do funcionamento do próprio sistema de justiça juvenil e seus fundamentos. Seria preciso estudar tal sistema, assim como investigar determinados marcadores sociais de diferença (classe, gênero, raça/etnia, etc) que atuam de modo articulado na produção das desigualdades no Brasil, inclusive à desigualdade no acesso aos bens jurídicos e de proteção e promoção de direitos, que se materializam em maiores ou menores vulnerabilidades frente ao sistema de justiça.

3.3. A Vulnerabilidade do Universo de Pesquisa: “consentimento” ou “constrangimento informado”?
O recorte desse grupo, entretanto, pode trazer graves conseqüências sociais, entre as quais a mais evidente é a sua correspondente estigmatização, procedimento que vai, inclusive, na contramão das políticas de atendimento à infância e juventude. Após longos anos de enfrentamento de estigmas sociais, a atual FASE (antiga FEBEM) passou por uma série de reconfigurações institucionais, na tentativa de modificar o paradigma correcional-repressivo vigente na maior parte de sua história. A orientação legal, proposta pelo ECA, de que todas as crianças e adolescentes são “sujeitos de direitos” e de “proteção integral” permitiu que crianças e adolescentes, na medida em que são considerados pessoas em desenvolvimento, recebam legalmente o estatuto da prioridade de atendimento e tenham defendido seu “melhor interesse”. Esse estatuto especial, atribuído a crianças e adolescentes, expressa uma grande preocupação em termos de proteção e promoção desses sujeitos, orientações que se coadunam com a política internacional de direitos. Transformá-los, através de um procedimento metodológico de pesquisa, em alvos privilegiados da objetivação da agressividade significa um retrocesso para as políticas de proteção de direitos.
Chamo a atenção para a importância de se levar em conta também o contexto político contemporâneo, em que consta no Congresso Nacional uma proposta para o rebaixamento da idade penal de 18 para 16 anos. Esse debate não é novo e é alimentado por casos excepcionais de jovens que cometem um número considerável de atos infracionais e que, embora tenham que ser considerados no direcionamento das políticas de atendimento, representam um número ínfimo dos casos. O crescente discurso acerca da violência e sua disseminação no Brasil – discurso que serve para legitimar, muitas vezes, atos condizentes com estados de exceção de direitos – alimenta o medo e, mais do que contribuir na criação de alternativas eficazes de atendimento, reproduzindo a intolerância e colocando em risco a própria idéia de democracia. A antropóloga Teresa Caldeira já salientou o desdobramento particular do que chamou da “fala do crime”, estudando o contexto paulista: o crescimento da segurança privada e a reclusão de certos grupos sociais em “enclaves fortificados” (condomínios luxuosos). De acordo com essa autora, a “fala do crime” constrói uma reordenação simbólica do mundo, elaborando preconceitos e naturalizando a percepção de certos grupos como perigosos. Prosseguindo nos seus argumentos, é possível pensar um outro tipo de reclusão, o encarceramento nas prisões e internatos, daqueles que são constituídos como perigosos, recebendo maior controle social e policial do seu comportamento.
Adolescentes são um desses grupos, pois em que pese o investimento na reconfiguração das políticas de atendimento, sua construção não se realiza sem ambigüidades. Se considerarmos a primeira década de atendimento pós-promulgação do ECA, veremos que houve um considerável incremento de unidades de internação de adolescentes que, paralelamente ao processo de regionalização e diminuição do tamanho de suas estruturas, aumentaram também a sua lotação total. Em 1991 havia apenas 5 instituições destinadas a atender 241 adolescentes infratores, ao passo que no ano 2000 já havia 14 instituições para atender uma população muito maior, 700 jovens. Mais recentemente, no início de 2008, existiam 16 unidades da nova Fundação de Atendimento Sócio-Educativo (FASE), atendendo uma população de 1100 adolescentes. Embora os dados existentes sejam precários, há um relativo consenso de uma não relação de correspondência entre a proporção do aumento no aprisionamento juvenil e no percentual de crimes cometidos por adolescentes. Mesmo se houvesse, ainda assim seria possível refletir acerca da preferência do tratamento prisional ou do regime de “internação em estabelecimento educativo” como forma de combate/resposta ao crime.
Legalmente, existem inúmeras outras medidas sócio-educativas a serem executadas em “meio-aberto”, como a liberdade assistida, prestação de serviços à comunidade, advertência e obrigação de reparar o dano. No entanto, uma análise das políticas mostra que o incremento do encarceramento pode estar relacionado à não prioridade dada às medidas abertas, ou mesmo precariedade de sua efetivação. Na capital do estado, o primeiro projeto de municipalização das medidas sócio-educativas em meio aberto foi apresentado em 1999, pelo Juizado da Infância e Juventude. O Programa de Municipalização das Medidas Sócio-educativas em Meio Aberto (PEMSE) foi criado somente a partir de junho de 2000, chegando a etapa final de implementação no ano de 2002. Mesmo assim, somente em algumas comarcas do estado o atendimento foi municipalizado. No Brasil, dados do “Levantamento Nacional do Atendimento Sócio-educativo ao Adolescente em Conflito com a Lei”, realizado em 2006, apontam que apenas 60% das capitais brasileiras haviam implantado a municipalização das medidas sócio-educativas em meio aberto. Sem a intenção de culpabilizar os agentes responsáveis pela execução sócio-educativa ou mesmo aqueles responsáveis pela sua determinação legal, o que interessa aqui é possibilitar a reflexão acerca dos complexos fatores que se interpõem para produzir uma série de ambigüidades que a implementação de uma legislação de proteção e promoção dos direitos da criança e do adolescente traz à tona. Sobretudo, mostra o quanto esse grupo é alvo de um grande controle social punitivo.
Por mais que acreditemos que as unidades da FASE ou qualquer outro estabelecimento de internação de adolescentes contemplem todas as garantias de direitos, ainda assim a internação é uma situação coercitiva e de alto controle do comportamento e da ação. Por isso, é uma situação de maior suscetibilidade aos poderes institucionais de qualquer ordem: administrativos, jurídicos ou mesmo científicos. Estudos realizados em prisões de certos estados norte-americanos que permitem a realização de pesquisas com encarcerados mostram que há uma grande disposição dos internados em participarem das pesquisas, uma vez que elas trazem alguns benefícios secundários. Motivos financeiros (a participação em pesquisa pode ser paga, em alguns casos), a idéia de retribuição moral à sociedade como pagamento do “mal” causado, a esperança de ter um tratamento diferenciado e melhor do que os demais encarcerados, a negociação de uma auto-imagem institucional positiva e o acesso a recursos escassos nas prisões, como tratamentos de saúde (nos casos das pesquisas médicas), constrangem as tomadas de posição dos sujeitos. Nesse ambiente, falar em “escolha” de participação em pesquisas torna-se altamente problemático.
Por essas e outras razões provenientes de abusos cometidos por pesquisadores em presos que foram transformados em “cobaias humanos”, o governo norte-americano decidiu, a partir de 1970, restringir a realização de pesquisas com seres humanos dentro das prisões. Orientou, então, que as pesquisas desta natureza passassem a ser permitidas somente quando fosse comprovado o benefício direto dos seus resultados para a população estudada. Mesmo assim, em alguns estados, como a Califórnia (estado americano com a maior população de presos), legislações estaduais não permitem, atualmente, nenhum tipo de pesquisa com seres humanos encarcerados. A visão, apoiada por organizações de defesa de direitos humanos, é de que prisões superlotadas e sem programas eficientes de saúde são contextos de grande vulnerabilidade e onde a liberdade individual encontra-se cerceada de várias formas. Como falar em liberdade de escolha, nesse contexto?
Sem dúvida, a população carcerária pode se beneficiar dos resultados de pesquisas sobre problemas diversos, mas para isso não é preciso que seja o universo da pesquisa em si. Pesquisa é diferente de tratamento clínico, e se a voluntariedade de participação em pesquisas conduz-se pela esperança de benefícios desse tipo é preciso questionar o contexto das prisões e as condições de vida dos sujeitos ali colocados.
Interrogações desse tipo devem ser feitas também no caso brasileiro, onde a maior parte das regulações éticas de pesquisa com seres humanos baseia-se na discussão acerca do uso do “consentimento informado”. Neste instrumento, o pesquisado consente ser estudado mediante informações sobre o tipo de pesquisa e seus procedimentos, manifestando explicitamente, através de assinatura, concordância com a participação no estudo. Como os debates norte-americanos sugerem, assim como as professoras da UFRGS Claudia Fonseca e Carmen Craidy já salientaram em cuidadoso texto sobre a proposta da pesquisa porto-alegrense, pensar a ética das e nas pesquisas vai muito além do “consentimento informado”: requer a conjugação de fatores diversos, desde os objetivos, quanto os procedimentos de pesquisa; a análise das intenções, mas também dos possíveis efeitos dos estudos; uma compreensão do contexto social e político em que as pesquisas são realizadas e a situação dos grupos particulares objetivados como seus universos. Sem todo esse cuidado, uma grande problemática de estudo pode se transformar em fardo para aqueles que são estudados. Do “consentimento informado” podemos passar para o “constrangimento informado”, em muito se distanciando da produção de um conhecimento que interaja criativamente com os debates sociais que alimentam as preocupações de nossa época.

IV- Considerações (por ora) Finais: Por uma Multiplicação dos “Olhares”

Não raro ouvimos por aí frases como: “qualquer pesquisa vem bem”, “a pesquisa sempre vai trazer um maior conhecimento”, “prejudicar não vai”. Nem sempre. É preciso discutir as pesquisas, conhecê-las, analisar seus pressupostos e procedimentos, criticá-las e fazer desse debate uma agência para a formulação de novos saberes e engajamento de cientistas e aqueles que são, na falta de melhor palavra, leigos. Isso requer uma reconfiguração de posturas frente ao estatuto da ciência, que envolve tanto os cientistas, quanto os não cientistas. No caso específico da pesquisa aqui discutida, isso significa continuar debatendo questões importantes, que não estão suficientemente entendidas a respeito da realização de um estudo tão socialmente polêmico.
Meu desejo foi lançar algumas questões acerca da importância de se entender melhor a forma de relacionamento, prevista pela pesquisa, entre as variáveis cerebrais, genéticas, psicológicas e sociais, assim como sua associação com agressividade. Também destaquei um deslize nos termos da proposta da pesquisa, que parte de questões relacionadas à agressividade para objetivá-la no universo de adolescentes infratores. Esse procedimento arrisca aumentar os já históricos processos de estigmatização dessa população que, de outro lado, encontra-se extremamente vulnerável frente aos poderes diversos – inclusive científicos – na situação de encarceramento. Essa última condição é, como vimos, motivo para impedir a realização de pesquisas com seres humanos em situação prisional no estado da Califórnia/EUA, sendo relevante pensarmos sobre o assunto aqui no Brasil, principalmente se considerarmos os processos históricos que vêm constituindo crianças e adolescentes como “sujeito de direitos” e de “proteção integral”.
Apesar de ter uma posição a respeito da pesquisa – acredito que suas interrogações são válidas, mas seus procedimentos são problemáticos no que diz respeito à escolha do universo: adolescentes, “infratores” e encarcerados (o que por sua vez, compromete a lógica do estudo) – este texto não é um manifesto a favor ou contra. Objetivo clamar por uma ampliação das oportunidades de julgamento sobre as pesquisas e suas possibilidades de efetivação - das comissões de ética científicas para outras entidades diversas. A tentativa aqui foi de argüir no sentido de uma ampliação dos termos do debate, para além das posições normativas/legalistas do “certo” ou do “errado”. A necessidade é de multiplicar as redes de conversação e formação de uma comunidade reflexiva em torno de um conjunto de problemas que podem aparecer como questões de pesquisas, mas que não se esgotam nesses procedimentos. A discussão ampliada das propostas conduz a posicionamentos embasados que não se expressam em simples práticas de “censura” à pesquisa, mas sim de considerações preciosas que tem a ver com a responsabilidade de cada um no conjunto das decisões tomadas.
Multiplicando perspectivas e situando-as a partir de seus espaços de enunciação, a “verdade” que aparece como única subitamente se pluraliza. O “olho de lugar nenhum” transforma-se em um “olho situado”, localizado e não transcendente. Um olho que tem responsabilidades e que deve ser comprometido por estas, uma vez que também está implicado na produção das verdades parciais. Significa alcançar posicionamentos, provocar afetos, interagir. Voltando a Nietzsche, encerro com uma questão: “Mas eliminar a vontade inteiramente, suspender os afetos todos sem exceção, supondo que o conseguíssemos: como? – não seria castrar o intelecto?...”

* Texto escrito em 31/03/2008.
Para leitura de outros textos e crônicas sobre o assunto, visite o blog “Práticas de Justiça e Diversidade Cultural”: http://prticasdejustiaediversidadecultural.blogspot.com/

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