sexta-feira, 28 de março de 2008

Insondáveis

Por: Luis Fernando Veríssimo

Como não estamos equipados para conhecer o mais fundo do mar ou do nosso cérebro, só nos resta especular sobre os monstros cegos que o habitam. Já se disse que o fundo do mar e a mente humana são os últimos territórios inexplorados da Terra. Ninguém sabe o que, exatamente, se passa nos dois abismos, e os instrumentos para estudá-los são insuficientes. Ainda não desenvolveram uma sonda capaz de resistir à pressão e penetrar a escuridão do fundo mais profundo do mar e mostrar o que tem lá. E nosso cérebro é tão complexo que nem um cérebro complexo como o nosso ainda conseguiu entendê-lo.
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Um dos mistérios envolvendo o cérebro que me fascinam é o da hipnose.
Ninguém tem o poder mágico de hipnotizar ninguém, mas a hipnose existe. O que significa que você pode hipnotizar quem você quiser - desde que o outro acredite no seu poder. Faça um teste. Apresente alguém ao seu grupo como um hipnotizador profissional, com diploma do Instituto de Altos Estudos Mesméricos de Zurique. Veja quantos do grupo ele consegue hipnotizar, embora nunca tenha feito isso antes na vida. Basta você ser convincente. O cérebro de quem acreditou em você está pronto para ser mandado e fará tudo que o "hipnotizador" ordenar - inclusive transformar o sujeito numa barra de ferro. Qualquer um pode hipnotizar qualquer um que acreditar que ele pode. O que talvez explique alguns sucessos na vida política.
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Outra coisa que existe é a doença psicossomática. A doença imaginária com sintomas e efeitos reais. Há casos até de gravidez psicossomática, em que a barriga da mulher cresce e o bebê que não está ali se mexe. Paralisia, cegueira - não há doença ou aflição humana que o cérebro não possa produzir sozinho, independente da verdade fisiológica. As causas são psicológicas, pertencem às profundezas da mente, mas o sofrimento é real.
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O cérebro predisposto a ser comandado e a realidade das doenças psicossomáticas, de certa maneira, legitimam os milagres e desculpam o curandeirismo. O aleijado que levanta e anda em transe religioso está sendo curado, não importa muito se da conseqüência de uma doença real ou do domínio obscuro da sua mente sobre os seus órgãos. Uma das igrejas neopentecostais distribui rosas mágicas entre seus fiéis com o poder, atestado por fiéis, até de curar o câncer. Nossa primeira reação é a de lamentar essa exploração primária da fé ingênua, mas ela responde à fome de salvação e milagres com um símbolo de simplicidade. O inimigo é o complicado, é o insondável. Contra todas as coisas inexplicáveis, o corpo, a mente, o sofrimento e a morte, uma rosa onipotente.
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Como não estamos equipados para conhecer o mais fundo do mar ou do nosso cérebro, só nos resta especular sobre os monstros cegos que o habitam. As memórias reptilianas que dizem que temos corresponderiam aos moluscos que se criam perto das fendas de vulcões submarinos, teriam a mesma origem num miasma sulfuroso. Nossos impulsos atávicos seriam como enguias gigantescas que, se chegassem à superfície, trariam terror e destruição. Mas como nunca vamos vê-los, nem os monstros do abismo nem os do nosso cérebro, já que a escuridão no fundo é intransponível, resignemo-nos à ignorância, que é a forma mais cômoda de sabedoria. E se você for experimentar fazer hipnotismo, lembre-se de que o pêndulo na frente do nariz do outros e as palavras "Você está ficando com sono, suas pálpebras estão começando a pesar..." são dispensáveis. Se o outro acreditou no seu poder, você tem o poder.
Texto escrito por Luis Fernando Veríssimo, publicado no jornal Zero Hora em 24 fevereiro 2008.

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