sexta-feira, 28 de março de 2008

Enunciados científicos a título de ensaios, não preces I

Por: Katarina Peixoto (doutoranda em filosofia da UFRGS)

“O velho ideal científico da episteme, o ideal de um conhecimento científico absolutamente certo e demonstrável, revelou-se um fetiche. A exigência de objetividade científica torna inevitável que todo enunciado científico seja dado, e permaneça necessariamente, e para sempre, a título de ensaio.” Karl Popper

Pois é, gente amiga, posso dizer-lhes com toda galhardia, eu nunca pensei que estaria aqui citando Popper, o autor de uma das mais célebres porcarias de filosofia política. É que o cara, reza a lenda, é um epistemólogo e essa passagem do seu Lógica da Descoberta Científica atesta a modéstia anti-delirante que bem poderia ter acompanhado o pensador da ciência nas suas considerações, nada reflexivas, sobre a política. Também essa escolha de uma citação de Popper me ajude a dizer o que pretendo, sem suspeição de obscurantismo.

Interrogar a possibilidade de limite à fé pode ser buscar o instante em que a razão ou uma descoberta ou invenção do entendimento irrompe a nossa jaulinha de crenças. Também pode ser duvidar de que a crença ou a fé religiosa tenha algum papel, dentro ou fora das igrejas, salvo o de prejudicar o pensamento e a ciência. Se é certo que o universo de crenças não é necessariamente avesso ao da razão isso não torna a relação entre ambos menos complicada e cinza. E um olhar cuidadoso e modesto sobre a história do pensamento desde o grande combate que resultou no iluminismo não assegura a tese de um avanço irreversível no tratamento da relação entre Fé e Razão, assim, generalisticamente, conforme tentarei esclarecer. Tirando o otimismo delirante pré-oitocentos, os embates entre esclarecimento e obscurantismo nunca pareceram, nitidamente, correlatos aos embates entre fé e razão.

Tipo de briga em que todo esquematismo funciona como bala perdida.

Neste início de século XXI o espetáculo triunfante converteu a palavra ciência numa espécie de tábua de salvação religiosa. Foucault, na sua luminosa e produtiva paranóia, já havia-nos alertado sobre um dos aspectos mais tenebrosos dessa conversão, a saber, a politização da saúde, conforme se pode depreender desta passagem do seu Vontade de Saber: “Por milênios o homem permaneceu o que era para Aristóteles: um animal vivente e, além disso, capaz de existência política; o homem moderno é um animal em cuja política está em questão a sua vida de ser vivente”.[1] Foucault diagnostica o que chama de “limiar de modernidade biológica” como o ponto em que espécie e individuo – tomado como mero corpo – tornam-se o que é estratégico em política. Para nós todos, que lemos estas coisas agora, a imagem de que a política hoje parece-se mais com o atendimento de emergência de um hospital do SUS de grandes cidades vem logo à mente. Só que não é só esse caráter precário, urgente, atrasado e diminuído da política o que tem Foucault em mente. Ele está preocupado é com a conversão da saúde num tema estratégico do poder político, de tal maneira que uma visão apocalíptica, como esta, não cause surpresa alguma. Diz Foucault: “Resulta daí uma espécie de animalização do homem posta em prática através das mais sofisticadas técnicas políticas. Surgem então na história seja o difundir-se das possibilidades das ciências humanas e sociais, seja a simultânea possibilidade de proteger a vida e de autorizar o seu holocausto”. As possibilidades das ciências humanas e sociais não interessam, aqui. Não é com um estatuto ou com a ausência deste, nas ciências humanas, que estou preocupada. Mas a última frase é mesmo meio estonteante: o que pode querer dizer proteger a vida e autorizar a sua destruição?

Não precisa enveredar nas considerações, manifestos e quetais da Biopolítica, para nos assombrarmos com alguns acontecimentos, internos e externos ao debate científico. Quer dizer: não precisa recorrer a uma estrutura paranóica para denunciar outra. Tentarei não enveredar por esse caminho, porque há vidas humanas e muitas, em jogo. E a paranóia, ao contrário da fé, tem limite (ela precisa do outro para existir). O ponto é o que quer dizer confiar na ciência? O que se pode esperar do conhecimento científico e se há ou deve haver limites à investigação científica, para aquém das nhacas do “difundir” da bioética.

Tornou-se lugar comum, ao ponto de zeagá repercutir a título de notícia, a tese de que a crítica a qualquer autoridade da comunidade científica é obscurantista. Para além da intermitente guerra ideológica de que se alimenta o espetáculo (de que o caso da transgenia by Monsanto é só mais um exemplo, hoje substituído pela falcatrua triunfante dos desertos verdes), a crença na ciência tem cada vez mais se parecido com uma fé religiosa. Não é só o dogmatismo bocó de alguns professores ou jornalistas ou assessores de imprensa. É a certeza psicótica de que se faz a promessa cientificista dos dias que correm. Às vezes é como se o pesadelo da Terceira Internacional tivesse penetrado nos departamentos de genética e nos laboratórios privados que as grandes corporações químicas dos EUA financiam. Troço assustador. E, sobretudo, nada livre.

Mas eu falava da (boa) paranóia de Foucault, que aponta o caráter estratégico da vida biológica para a estratégia política do poder triunfante na “modernidade”. Por que? A seguir tentarei explicar. Porque a conversão do tratamento da violência numa questão de saúde – biológica – é nada mais que uma variante tenebrosa da fantasia malévola segundo a qual a sociedade deve ser uma comunidade de corpos sem cabeça, governados pelo monstruoso vigia do grande e nunca histórico museu de cérebros que atende pelo nome mágico de cientista.
[1] Citação feita por Agamben, em Homo Sacer, p. 11.
Texto escrito por Katarina Peixoto, publicado no blog: Palestina do Espetáculo Triunfante, em 30/02/2008.

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