Por: LUCIANA PÊSS (estudante de Ciências Sociais, disciplina Antropologia e Direitos Humanos da UFRGS)
Em seu texto “A Governamentalidade”, Foucault reconstrõe historicamente o surgimento do problema específico da população. Neste esforço de historicização, ele apresenta e contrapõe duas teorias que operaram ao longo da história enquanto estratégias diferenciadas de poder: as “teorias da soberania” e as teorias da arte de governar. Podemos perceber, nas críticas apresentadas por Foucault às teorias da soberania, alguns pontos muito importantes referentes ao entendimento que este autor tem da problemática do poder. Segundo o autor, a análise em termos de poder não deve postular, como dados iniciais, a soberania do Estado, a forma da lei ou a unidade global de uma dominação, pois estas são apenas suas formas terminais. Ele explicita assim seu pressuposto de que se deve compreender o poder, primeiro, como a multiplicidade de correlações de força imanentes ao domínio onde se exercem e constitutivas de sua organização.
Segundo Foucault o poder se exerce a partir de inúmeros pontos e em meio a relações desiguais e móveis. Não é, portanto, algo que se adquira, arrebate ou compartilhe, algo que se guarde ou deixe escapar. Assim temos que a condição de possibilidade do poder não deve ser procurada num foco único de soberania de onde partiriam formas derivadas e descendentes (como, por exemplo, no governo do soberano sobre seu principado) , ao contrário, é o suporte móvel das correlações de força que, devido a sua desigualdade, induzem continuamente estados de poder, localizados e instáveis (existem muitos governos e muitos poderes - pode-se governar uma casa, uma alma, uma criança, uma província, uma ordem religiosa, uma família -em relação aos quais o do príncipe governando seu Estado é apenas uma modalidade.). O poder para Foucault produz-se a cada instante em toda relação entre um ponto e outro, não é uma instituição nem uma estrutura, não é uma certa potência de que alguns sejam dotados, ele está em toda parte, provém de todos os lugares.
Em contraposição à Foucault, Bourdieu diz que seu intuito não é ver o poder em todos os lugares, mas vê-lo onde ele é mais completamente ignorado e, portanto, reconhecido, nos símbolos. Partindo da idéia de que o poder invisível dos símbolos só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem, Bourdieu empreende seus estudos para demonstrar a função integradora e – principalmente – política do símbolo. Segundo o autor, o poder simbólico é produzido no interior dos campos sociais, materializado em diversos tipos de capitais. Desta forma, os agentes detêm poder na medida em que são dotados do capital específico do campo em que estão inseridos.
O campo jurídico é, segundo Bourdieu, “o lugar de concorrência pelo monopólio de dizer o direito” no qual se defrontam agentes investidos de competência social e técnica, que consiste na capacidade reconhecida de interpretar um corpus de textos que consagram a visão legítima, justa, do mundo social. Bourdieu aponta para a existência de uma disputa interna ao campo jurídico – a disputa entre teóricos e práticos – e uma disputa externa ao campo – a disputa entre profissionais e profanos – caracterizada pelo esforço contínuo por parte dos profissionais de fundamentar a cisão entre eles e os profanos, indivíduos não inseridos no campo, despossuídos de capital jurídico.
Neste sentido, o trabalho de racionalização é um meio de “aumentar cada vez mais o desvio entre os vereditos armados do direito e as intuições ingênuas da equidade e fazer com que o sistema das normas jurídicas apareça aos que o impõem e mesmo aos que a ele estão sujeitos, como totalmente independente das relações de força que ele sanciona e consagra” (Bourdieu, 1989, p.212). A racionalização, compreendida enquanto utilização de uma linguagem diferenciada e demonstração de competência técnica por parte dos operadores de justiça, ilustra, portanto, a presença do poder simbólico nos rituais jurídicos[1], o que confere às decisões judiciais a eficácia simbólica exercida por toda a ação quando, ignorada no que tem de arbitrário, é reconhecida como legítima.
Bourdieu entende que os símbolos são os instrumentos por excelência da integração social, pois enquanto instrumentos de conhecimento e comunicação, permitem o consenso acerca do sentido do mundo social, o que contribui fundamentalmente para a reprodução da ordem. É, da mesma forma, enquanto instrumentos estruturados e estruturantes de comunicação e de conhecimento que os sistemas simbólicos cumprem a sua função política de imposição ou legitimação da dominação, que contribuem para assegurar a dominação de uma classe sobre a outra. Assim, o poder simbólico é um poder de construção da realidade e as produções simbólicas são instrumentos de dominação.
Já Foucault, aborda o potencial produtivo do poder em outros termos. Ele sugere que pensemos o poder em termos de sua positividade, o que significa dizer que o poder não apenas restringe, proíbe, mas sobretudo cria. Segundo Foucault é o biopoder que produz os sujeitos. Neste sentido afirma que as relações de poder são, ao mesmo tempo, intencionais e não subjetivas, não há poder que se exerça sem uma série de miras e objetivos, entretanto não devemos buscar a equipe que preside sua racionalidade, nem a casta que governa, nem os grupos que controlam os aparelhos de Estado; a racionalidade do poder é a das táticas muitas vezes bem explícitas no nível limitado em que se inscrevem que, encadeando-se entre si, invocando-se e se propagando, encontrando em outra parte apoio e condição, esboçam finalmente dispositivos de conjunto (a lógica é clara e as miras decifráveis), porém neste ponto parece já não haver mais ninguém para tê-las concebido e poucos para formulá-las. Podemos ver claramente aqui outro contraponto entre Foucault e Bourdieu: Enquanto para o segundo o poder simbólico é um instrumento de dominação, que produz o discurso dominado e o dominante, para o primeiro o poder vem de baixo, não há no princípio das relações de poder uma oposição binária e global entre dominadores e dominados, não há discurso dominado e dominante, mas uma complexa rede de relações capilares de poder, na qual o símbolo é apenas um instrumento.
A antropologia interpretativa de Clifford Geertz também toma o direito como objeto, assim como Bourdieu, mas o faz, obviamente, a partir de uma perspectiva diferente. Os sujeitos, que não encontram espaço algum na análise de Foucault, adquirem grande relevância na perspectiva de Geertz, na medida em que a análise interpretativa parte de três pontos chave: o contexto (onde, em que época e inscritos em que sistema cultural estão os nativos, quais as redes de significado que os permeiam), os atores sociais (quem são os nativos e de que forma estão situados nesta rede) e as formas simbólicas (veículos de expressão dos significados em jogo, formas culturais “com que” e “através das quais” os nativos falam). Assim, ao estudar os sistemas jurídicos, Geertz concentra sua visão no significado, no modo como os atores sociais fazem sentido daquilo que fazem.
Segundo Geertz, o direito aqui, acolá, ou em qualquer parte do mundo, é parte de uma forma específica de imaginar a realidade. Assim, o autor apresenta uma perspectiva segundo a qual fatos e leis não estão polarizados, mas estão, ao contrário, intimamente relacionados - na medida em que os fatos são construídos socialmente por todos os elementos jurídicos, que dizem respeito a uma forma específica de imaginar a realidade, da qual o direito, e portanto as leis, é parte - e ilustra sua visão do direito enquanto um artesanato local, que apresenta um mundo no qual suas próprias descrições fazem sentido.
Neste sentido, parece pertinente argumentar que o que está em jogo para Geertz não é o poder tal como o vemos em Bourdieu ou Foucault. O ponto central para este autor não são as correlações de força, as relações de poder ou as disputas por capital, Geertz foca sua atenção na maneira pela qual as instituições legais traduzem a linguagem da imaginação para a linguagem da decisão, criando assim um sentido de justiça determinado. E este fenômeno, que é, aliás, a base de toda a cultura, é o processo de representação. “A descrição de um fato de tal forma que possibilite aos advogados defendê-lo, aos juízes ouvi-lo, e aos jurados solucioná-lo, nada mais é que uma representação”, a representação jurídica do fato, na qual “trata-se basicamente, não do que aconteceu, e sim do que aconteceu aos olhos do direito”.
Apesar de não trazer contribuições para as análises em termos de poder, Geertz nos fornece, ainda assim, uma perspectiva interessante para pensar a temática da implantação e construção de direitos. Se é verdade que o direito é um artesanato local, que funciona a luz do saber local, e é portanto parte de uma maneira específica de imaginar a realidade; e que as instituições legais criam uma sensibilidade jurídica determinada ao traduzir a linguagem da imaginação (linguagem do “se então” das normas genéricas) para a linguagem da decisão (linguagem do “como portanto” dos casos concretos), podemos concluir que a implantação e construção de direitos só pode concretizar-se na medida em que estes direitos “novos” dialoguem com os sentidos de justiça determinados de cada cultura, façam sentido dentro da visão de mundo específica daquela sociedade.
[1] Outros símbolos que conferem eficácia e legitimidade aos rituais de julgamento são a vestimenta e a hexis corporal dos juízes, promotores e advogados, bem como a disposição espacial dos lugares na sala de audiências.
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2 comentários:
primeiramente gostaria de parabenizar pelo texto.
Tem tudo haver com meu trabalho por isso gostaria de receber mais materiais que trabalhem a influencia do simbolo na populçao sendo ou nao carater de dominaçao
Excelente trabalho, sintetiza de forma brilhante e elucidativa os principais aspectos referentes a três importantes linhas de pensamento, sem dúvida acrescentou muito em minha pesquisa.
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