Denise Fagundes Jardim (Antropóloga – Professora do Departamento de antropologia – IFCH/UFRGS, Núcleo de Antropologia e Cidadania)
Há uma grande probabilidade de que os egressos da universidade, em especial, aqueles formados pelas ciências humanas, conheçam muito da história do Brasil a partir do enfoque dos brasileiros como parte do mundo dos civilizados. É provável que conheçam nossa história entrelaçada a escravidão de negros e aprisionamento de indígenas como uma "etapa superada" das relações sociais neste nosso mundo social.
Há, também, uma forte probabilidade que esse egresso dominem argumentos de um debate constitutivo da antropologia como ciência, quando no século XIX os profissionais se debatiam com os parâmetros de cientificidade e atuavam científica e politicamente denunciando o quanto o racismo encontrava na ciência as bases de sustentação para classificações fenotípicas e de presunção de inferioridade e superioridade racial.
Há uma enorme probabilidade, sabendo que esses alunos se tornarão profissionais no âmbito do Brasil, que tenham um conhecimento bastante fundamentado e seja extremamente articulados para falar sobre esse Brasil, denunciar injustiças sociais e, de alguma maneira, outorgar-se no direito e no dever de "melhorar" a sociedade.
É provável que repitam genericamente que o Brasil tem uma dívida histórica com o segmento negro e indígena, e que os capítulos recentes da história do Brasil republicano não vem cumprindo com as promessas de igualdade de oportunidades.
Mas, há também uma enorme possibilidade que os mesmos sujeitos que falam sobre o Brasil não estejam sendo preparados nas universidades para vivenciar a diversidade cultural e as desigualdades, se não como um Brasil que se localiza fora da universidade, em um lugar distante.
As cotas são fundamentais para a universidade, para uma sala de aula diversificada em que, nem o professor possa tecer suas teorias, nem os alunos façam afirmações, sem ter de submete-la às objeções de seus colegas, com experiências diversas.
É claro que advogo as cotas como algo que pode ser proveitoso para as ciências humanas, mas lembro dos livros de etnomatemática indígena publicados recentemente por antropólogos, das aulas de orientação espacial que recebemos entre os quilombolas em Mormaça.
Portanto, deve haver coisas que não imagino e que me inclinam a acolher o ingresso de cotistas como uma abertura para novos problemas e desafios científicos. Talvez eles nem venham, nem cotistas, nem desafios científicos. Mas não há problemas, me contento em entrar em sintonia com meu século e com a necessidade de uma ciência que se descolonize e que, no caso da UFRGS, se desprovincialize.
As cotas e ações afirmativas tem o mérito de fazer sair do armário algumas presunções sobre a raça. Não só as que circulam de forma ampla entre aqueles que tem a experiência-de-perto sobre o ônus da classificação e a vivência dos "tribunais cotidianos", como me lembra a colega Daisy Barcellos. Esta é uma experiência que fica opaca quando vista de longe pelos que, do alto de seus condomínios, os observam. Lembro que muita gente teve que reconhecer, por contraste, de que é "quase-branco" e isso já foi um enorme passo para pensarmos sobre a quem socialmente nos dirigimos quando falamos de raça? O debate transformou o indizível em uma realidade que permite inspecionar quais as situações que convertem uma diferença, em uma desigualdade.
Sou contra "tribunais raciais", inclusive os cotidianos. Defendo a autodeclaração. Não me agrada a idéia de tribunais que checam a veracidade da auto declaração de cor ou origem, que te colocam como objeto e não como sujeito histórico. Ou, que te "incitam a falar de si como um dos pobres perseguidos do mundo" e não com a dignidade de quem veio ao mundo para negociar novas perspectivas e políticas públicas. Em um ambiente tão crítico, o constrangimento moral é um dos mecanismos de evasão escolar que não é uma inovação na universidade.
Acredito que as cotas aprovadas tornam-se a nossa responsabilidade de inclusão de negros e indígenas na universidade. Passamos da promessa para a difícil tarefa de não comprovar as teses contrárias às cotas e diplomar os ingressantes.
Deveríamos aproveitar a oportunidade para pensar sobre novas formas de refletir e pensar sobre a evasão escolar, sobre políticas estudantis dignas, sobre uma sala de aula pautada pela prática do questionamento e do diálogo. Tudo o que inclui e promove a permanência de cotistas deve promover a vida acadêmica das unidades e dos demais estudantes.
O que me incomoda é que o tribunal já começou e abre seus trabalhos dizendo que preconceito não existe porque raça não existe. Que espécie de retórica monocromática é essa? Ela é "puramente" científica ou está engajada em colocar um "pé na porta?" Uma coisa é tecer uma teoria sobre o mundo, outra coisa é discorrer sobre o seu mundo social mais próximo e abolir a possibilidade de falar sobre raça porque não é cientificamente correto.
De outra parte, a cota não é uma unanimidade entre os negros e devemos respeitar esse fato.
Muitos estudantes e formados negros no Brasil têm o mérito de diplomar-se na universidade, ingressando por vestibular. Há mérito e muito investimento nisso. Há também um custo familiar, uma série de saberes, como se comportar, como não errar, como ser, no mínimo, perfeito. Nenhum destes formados, por certo, pensara até então, o efeito de ter o apoio do Estado. Apenas o ônus de ser visto como um diferente.
Ocorre que algumas vozes negras são veiculadas e dizem que "não precisam de cotas". Já se antecipam ao bombardeio racista que o incriminaria por passar "por baixo dos panos". Devemos respeitar a experiência e a escolha de cotistas e não cotistas ao se submeter ao vestibular através do sistema de cotas. Devemos sim nos ater sobre como vamos lidar com as perversidades do racismo que espreita nossas relações, que não são o futuro das cotas, mas nosso presente.
Portanto, nosso problema atual não é se as cotas servem ou não para promover situações de igualdade de condições e de acesso à universidade. Isso já foi votado pelo congresso. Não podemos ter a arrogância de dizer "aqui não, neste pedaço eu que mando". Somos tão somente funcionários federais. As vagas não são "nossas" e sim, vagas da universidade pública.
Há uma grande probabilidade de que sem as cotas é a universidade quem está perdendo: perdendo em aprender a lidar com os desafios da diversidade. Sim, a diversidade não é o paraíso, tampouco é o Brasil.
O que não podemos é preparar um inferno para os cotistas.
Esse não seria o nosso inferno futuro, não há uma catástrofe que se anuncia, apenas vozes divergentes e creio que podemos conviver com a divergência. O que não podemos conviver é com o totalitarismo monocórdico que sustenta que as diferenças trazem problemas. Não é necessário temer aquilo que já presenciamos.
Afinal, há uma grande probabilidade de que já estejamos sentindo todos os sintomas da implementação de cotas de ingresso de negros e indígenas na universidade. O sistema de cotas, inclusive pelo que exige de troca de idéias e abertura de novas atitudes, possivelmente já começou.
Há uma grande probabilidade de que os egressos da universidade, em especial, aqueles formados pelas ciências humanas, conheçam muito da história do Brasil a partir do enfoque dos brasileiros como parte do mundo dos civilizados. É provável que conheçam nossa história entrelaçada a escravidão de negros e aprisionamento de indígenas como uma "etapa superada" das relações sociais neste nosso mundo social.
Há, também, uma forte probabilidade que esse egresso dominem argumentos de um debate constitutivo da antropologia como ciência, quando no século XIX os profissionais se debatiam com os parâmetros de cientificidade e atuavam científica e politicamente denunciando o quanto o racismo encontrava na ciência as bases de sustentação para classificações fenotípicas e de presunção de inferioridade e superioridade racial.
Há uma enorme probabilidade, sabendo que esses alunos se tornarão profissionais no âmbito do Brasil, que tenham um conhecimento bastante fundamentado e seja extremamente articulados para falar sobre esse Brasil, denunciar injustiças sociais e, de alguma maneira, outorgar-se no direito e no dever de "melhorar" a sociedade.
É provável que repitam genericamente que o Brasil tem uma dívida histórica com o segmento negro e indígena, e que os capítulos recentes da história do Brasil republicano não vem cumprindo com as promessas de igualdade de oportunidades.
Mas, há também uma enorme possibilidade que os mesmos sujeitos que falam sobre o Brasil não estejam sendo preparados nas universidades para vivenciar a diversidade cultural e as desigualdades, se não como um Brasil que se localiza fora da universidade, em um lugar distante.
As cotas são fundamentais para a universidade, para uma sala de aula diversificada em que, nem o professor possa tecer suas teorias, nem os alunos façam afirmações, sem ter de submete-la às objeções de seus colegas, com experiências diversas.
É claro que advogo as cotas como algo que pode ser proveitoso para as ciências humanas, mas lembro dos livros de etnomatemática indígena publicados recentemente por antropólogos, das aulas de orientação espacial que recebemos entre os quilombolas em Mormaça.
Portanto, deve haver coisas que não imagino e que me inclinam a acolher o ingresso de cotistas como uma abertura para novos problemas e desafios científicos. Talvez eles nem venham, nem cotistas, nem desafios científicos. Mas não há problemas, me contento em entrar em sintonia com meu século e com a necessidade de uma ciência que se descolonize e que, no caso da UFRGS, se desprovincialize.
As cotas e ações afirmativas tem o mérito de fazer sair do armário algumas presunções sobre a raça. Não só as que circulam de forma ampla entre aqueles que tem a experiência-de-perto sobre o ônus da classificação e a vivência dos "tribunais cotidianos", como me lembra a colega Daisy Barcellos. Esta é uma experiência que fica opaca quando vista de longe pelos que, do alto de seus condomínios, os observam. Lembro que muita gente teve que reconhecer, por contraste, de que é "quase-branco" e isso já foi um enorme passo para pensarmos sobre a quem socialmente nos dirigimos quando falamos de raça? O debate transformou o indizível em uma realidade que permite inspecionar quais as situações que convertem uma diferença, em uma desigualdade.
Sou contra "tribunais raciais", inclusive os cotidianos. Defendo a autodeclaração. Não me agrada a idéia de tribunais que checam a veracidade da auto declaração de cor ou origem, que te colocam como objeto e não como sujeito histórico. Ou, que te "incitam a falar de si como um dos pobres perseguidos do mundo" e não com a dignidade de quem veio ao mundo para negociar novas perspectivas e políticas públicas. Em um ambiente tão crítico, o constrangimento moral é um dos mecanismos de evasão escolar que não é uma inovação na universidade.
Acredito que as cotas aprovadas tornam-se a nossa responsabilidade de inclusão de negros e indígenas na universidade. Passamos da promessa para a difícil tarefa de não comprovar as teses contrárias às cotas e diplomar os ingressantes.
Deveríamos aproveitar a oportunidade para pensar sobre novas formas de refletir e pensar sobre a evasão escolar, sobre políticas estudantis dignas, sobre uma sala de aula pautada pela prática do questionamento e do diálogo. Tudo o que inclui e promove a permanência de cotistas deve promover a vida acadêmica das unidades e dos demais estudantes.
O que me incomoda é que o tribunal já começou e abre seus trabalhos dizendo que preconceito não existe porque raça não existe. Que espécie de retórica monocromática é essa? Ela é "puramente" científica ou está engajada em colocar um "pé na porta?" Uma coisa é tecer uma teoria sobre o mundo, outra coisa é discorrer sobre o seu mundo social mais próximo e abolir a possibilidade de falar sobre raça porque não é cientificamente correto.
De outra parte, a cota não é uma unanimidade entre os negros e devemos respeitar esse fato.
Muitos estudantes e formados negros no Brasil têm o mérito de diplomar-se na universidade, ingressando por vestibular. Há mérito e muito investimento nisso. Há também um custo familiar, uma série de saberes, como se comportar, como não errar, como ser, no mínimo, perfeito. Nenhum destes formados, por certo, pensara até então, o efeito de ter o apoio do Estado. Apenas o ônus de ser visto como um diferente.
Ocorre que algumas vozes negras são veiculadas e dizem que "não precisam de cotas". Já se antecipam ao bombardeio racista que o incriminaria por passar "por baixo dos panos". Devemos respeitar a experiência e a escolha de cotistas e não cotistas ao se submeter ao vestibular através do sistema de cotas. Devemos sim nos ater sobre como vamos lidar com as perversidades do racismo que espreita nossas relações, que não são o futuro das cotas, mas nosso presente.
Portanto, nosso problema atual não é se as cotas servem ou não para promover situações de igualdade de condições e de acesso à universidade. Isso já foi votado pelo congresso. Não podemos ter a arrogância de dizer "aqui não, neste pedaço eu que mando". Somos tão somente funcionários federais. As vagas não são "nossas" e sim, vagas da universidade pública.
Há uma grande probabilidade de que sem as cotas é a universidade quem está perdendo: perdendo em aprender a lidar com os desafios da diversidade. Sim, a diversidade não é o paraíso, tampouco é o Brasil.
O que não podemos é preparar um inferno para os cotistas.
Esse não seria o nosso inferno futuro, não há uma catástrofe que se anuncia, apenas vozes divergentes e creio que podemos conviver com a divergência. O que não podemos conviver é com o totalitarismo monocórdico que sustenta que as diferenças trazem problemas. Não é necessário temer aquilo que já presenciamos.
Afinal, há uma grande probabilidade de que já estejamos sentindo todos os sintomas da implementação de cotas de ingresso de negros e indígenas na universidade. O sistema de cotas, inclusive pelo que exige de troca de idéias e abertura de novas atitudes, possivelmente já começou.
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