Gilse Rodrigues (Antropóloga e professora universitária da PUCRS).
A frase “ironicamente” inscrita em vermelho (do sangue que derramamos, real ou simbolicamente, daquele que ameaça nossa “estabilidade”) nos muros da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, deixa à mostra o lado sombrio e inaudito (apenas para os incautos que se arrogam o direito de decretar a inexistência do racismo no Brasil) do famoso preconceito racial à brasileira. A mim que sempre profanei o sagrado mito da democracia racial não surpreende nem um pouco. O que esta atitude de jovens, certamente, de classe média, demonstra é, além da já conhecida exclusão de classe, um aspecto que muitos de nós por ingenuidade, ignorância, covardia ou na pior das hipóteses (e talvez a mais freqüente) por uma postura mal intencionada de defesa do status quo branco, escondemos ao longo dos anos: a exclusão racial.
A leitura ávida que fiz nos últimos dias dos textos de colegas antropólogos (José Carlos dos Anjos, Cláudia Fonseca, Patrice Schuch e Denise Jardim) defendendo as cotas para negros na universidade - eu que já era favorável a qualquer tipo de ação que desestabilize e interpele o poder estabelecido a partir de um viés exclusivamente eurocêntrico na produção de conhecimento - fiquei com a única opção de, humildemente assinar embaixo endossando todas as suas argumentações.
Aliás, argumentos é o que buscamos o tempo todo neste embate, fundamentados em estatísticas, teorias clássicas e contemporâneas, fundamentos científicos. Para alguns antropólogos, contrários às cotas, falar em raça é ressuscitar os mortos, destacando a perversa biologização do conceito. Esquecem eles que raça aqui, como salienta José Carlos dos Anjos, é uma categoria sociológica e política. Todos os tipos de explicações já foram utilizadas para evitar a entrada de negros através de cotas na universidade. Apesar de tudo, quero crer que para o bem da nação não seremos tão estúpidos a ponto de impedir a implementação das cotas raciais na UFRGS.
Como não tenho argumentos inovadores para acrescentar a esta discussão, venho aqui apresentar o argumento a partir de minha própria história escolar como exemplo da repartição dos espaços sociais para brancos e não brancos no sistema de ensino. Branca e de classe média, se é que isto significa alguma coisa, me ressinto da falta de colegas que nos primeiros anos de escola (pública durante os longos anos de ensino fundamental e 2º grau) dividiam comigo as carteiras escolares.
À medida que me aproximava do ensino superior, foram ficando para trás, não sei bem onde, meninas e meninos negros e mulatos, que como eu tinham sonhos e projetos para o futuro (e pasmem os contra-cotas mais conservadores, sonhavam em ser médicos, advogados, psicólogos, cientistas). “Se os negros não vão pra universidade talvez seja por que eles não querem ir” já ouvi muitos dizerem.
Sabemos que o processo de democratização do país, sobretudo após a constituição de 1988, trouxe a intensificação da universalização do ensino, colocando muito mais crianças e jovens na escola, ou seja, aumentou também o número de crianças e jovens negros estudando, então, me parece que a ausência de negros na universidade é ainda mais problemática. Difícil não perceber que 2% de negros nas universidades é realmente muito pouco neste contexto “tão democrático” do ensino no Brasil.
Hoje, professora universitária, não encontro entre meus pares nenhum negro. O que aconteceu? Onde estão estes atores sociais que povoavam minha infância escolar e hoje, nos corredores das universidades são “vistos” (quando os percebemos) limpando o chão ou na cozinha como reivindicam os racistas da pichação citada anteriormente (ou o termo adequado seria nazistas?). “O racismo não existe porque o negro brasileiro sabe qual é o seu lugar”, devem estar dizendo baixinho para si mesmos alguns “bem intencionados” defensores da meritocracia. Também sou favorável a um sistema meritocrático desde que todos estejam em pé de igualdade para a disputa, o que não é o caso no Brasil.
É claro que existem negros em ascensão social (um bom argumento dos crentes na democracia racial), mas certamente suas profissões de um modo geral (e aí entram as estatísticas apresentadas por meus colegas) não passam nem perto da universidade, e se passam é em um número tão pequeno que só faz reforçar a lógica da exclusão racial.
Eu me pergunto se com esta atitude contrária às cotas não estamos contribuindo, ainda que de forma inconsciente, para uma pedagogia da subalternidade negra. Por acaso alguém acredita que o projeto de vida dos negros é se manter em exclusão por livre e espontânea vontade, terminando no Ensino Médio a sua participação no mundo do conhecimento formal? Ou acreditam que os negros são menos inteligentes ou menos competentes do que os brancos, por isso não chegam aos bancos universitários? Se alguém acredita nisto, sinto muito, mas seria de bom tom, assumir publicamente seu racismo, para que possamos saber claramente com quem estamos lidando.
Reforço aqui a discussão trazida brilhantemente por José Carlos dos Anjos, a respeito das repartições dos espaços sociais e me pergunto: que tipo de saber estamos produzindo quando impedimos uma parcela significativa da sociedade de construir junto conosco, dentro do espaço acadêmico, um debate científico sobre a realidade social brasileira, permeada insistentemente pela raça e pelo racismo? Quem sou eu, branca de classe média para acreditar que tenho o poder de decretar a existência ou não do racismo? Quando em minha vida sofri as conseqüências do racismo na minha pele clara e nos meus olhos verdes para afirmar de forma tão autoritária que raça e racismo são categorias inexistentes?
Se atuo cotidianamente em um espaço social no qual há uma inexistência ou invisibilidade flagrante daqueles que neste país sofrem constantemente as conseqüências nefastas da desigualdade racial, meu papel é permitir (e não impedir)que se abram as portas deste espaço irritantemente homogêneo para que a alteridade se apresente e fale de si mesma. Não posso falar em aula com meus alunos sobre a inexistência de raça e racismo se meu interlocutor é tão ou mais branco do que eu. Sinto a necessidade de alguém que me interpele e traga outros argumentos para a continuidade da discussão em um nível digno que possa ser legitimamente reconhecido como produção de conhecimento científico sobre o mundo.
Gilse Rodrigues, antropóloga e professora universitária da PUCRS.
A frase “ironicamente” inscrita em vermelho (do sangue que derramamos, real ou simbolicamente, daquele que ameaça nossa “estabilidade”) nos muros da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, deixa à mostra o lado sombrio e inaudito (apenas para os incautos que se arrogam o direito de decretar a inexistência do racismo no Brasil) do famoso preconceito racial à brasileira. A mim que sempre profanei o sagrado mito da democracia racial não surpreende nem um pouco. O que esta atitude de jovens, certamente, de classe média, demonstra é, além da já conhecida exclusão de classe, um aspecto que muitos de nós por ingenuidade, ignorância, covardia ou na pior das hipóteses (e talvez a mais freqüente) por uma postura mal intencionada de defesa do status quo branco, escondemos ao longo dos anos: a exclusão racial.
A leitura ávida que fiz nos últimos dias dos textos de colegas antropólogos (José Carlos dos Anjos, Cláudia Fonseca, Patrice Schuch e Denise Jardim) defendendo as cotas para negros na universidade - eu que já era favorável a qualquer tipo de ação que desestabilize e interpele o poder estabelecido a partir de um viés exclusivamente eurocêntrico na produção de conhecimento - fiquei com a única opção de, humildemente assinar embaixo endossando todas as suas argumentações.
Aliás, argumentos é o que buscamos o tempo todo neste embate, fundamentados em estatísticas, teorias clássicas e contemporâneas, fundamentos científicos. Para alguns antropólogos, contrários às cotas, falar em raça é ressuscitar os mortos, destacando a perversa biologização do conceito. Esquecem eles que raça aqui, como salienta José Carlos dos Anjos, é uma categoria sociológica e política. Todos os tipos de explicações já foram utilizadas para evitar a entrada de negros através de cotas na universidade. Apesar de tudo, quero crer que para o bem da nação não seremos tão estúpidos a ponto de impedir a implementação das cotas raciais na UFRGS.
Como não tenho argumentos inovadores para acrescentar a esta discussão, venho aqui apresentar o argumento a partir de minha própria história escolar como exemplo da repartição dos espaços sociais para brancos e não brancos no sistema de ensino. Branca e de classe média, se é que isto significa alguma coisa, me ressinto da falta de colegas que nos primeiros anos de escola (pública durante os longos anos de ensino fundamental e 2º grau) dividiam comigo as carteiras escolares.
À medida que me aproximava do ensino superior, foram ficando para trás, não sei bem onde, meninas e meninos negros e mulatos, que como eu tinham sonhos e projetos para o futuro (e pasmem os contra-cotas mais conservadores, sonhavam em ser médicos, advogados, psicólogos, cientistas). “Se os negros não vão pra universidade talvez seja por que eles não querem ir” já ouvi muitos dizerem.
Sabemos que o processo de democratização do país, sobretudo após a constituição de 1988, trouxe a intensificação da universalização do ensino, colocando muito mais crianças e jovens na escola, ou seja, aumentou também o número de crianças e jovens negros estudando, então, me parece que a ausência de negros na universidade é ainda mais problemática. Difícil não perceber que 2% de negros nas universidades é realmente muito pouco neste contexto “tão democrático” do ensino no Brasil.
Hoje, professora universitária, não encontro entre meus pares nenhum negro. O que aconteceu? Onde estão estes atores sociais que povoavam minha infância escolar e hoje, nos corredores das universidades são “vistos” (quando os percebemos) limpando o chão ou na cozinha como reivindicam os racistas da pichação citada anteriormente (ou o termo adequado seria nazistas?). “O racismo não existe porque o negro brasileiro sabe qual é o seu lugar”, devem estar dizendo baixinho para si mesmos alguns “bem intencionados” defensores da meritocracia. Também sou favorável a um sistema meritocrático desde que todos estejam em pé de igualdade para a disputa, o que não é o caso no Brasil.
É claro que existem negros em ascensão social (um bom argumento dos crentes na democracia racial), mas certamente suas profissões de um modo geral (e aí entram as estatísticas apresentadas por meus colegas) não passam nem perto da universidade, e se passam é em um número tão pequeno que só faz reforçar a lógica da exclusão racial.
Eu me pergunto se com esta atitude contrária às cotas não estamos contribuindo, ainda que de forma inconsciente, para uma pedagogia da subalternidade negra. Por acaso alguém acredita que o projeto de vida dos negros é se manter em exclusão por livre e espontânea vontade, terminando no Ensino Médio a sua participação no mundo do conhecimento formal? Ou acreditam que os negros são menos inteligentes ou menos competentes do que os brancos, por isso não chegam aos bancos universitários? Se alguém acredita nisto, sinto muito, mas seria de bom tom, assumir publicamente seu racismo, para que possamos saber claramente com quem estamos lidando.
Reforço aqui a discussão trazida brilhantemente por José Carlos dos Anjos, a respeito das repartições dos espaços sociais e me pergunto: que tipo de saber estamos produzindo quando impedimos uma parcela significativa da sociedade de construir junto conosco, dentro do espaço acadêmico, um debate científico sobre a realidade social brasileira, permeada insistentemente pela raça e pelo racismo? Quem sou eu, branca de classe média para acreditar que tenho o poder de decretar a existência ou não do racismo? Quando em minha vida sofri as conseqüências do racismo na minha pele clara e nos meus olhos verdes para afirmar de forma tão autoritária que raça e racismo são categorias inexistentes?
Se atuo cotidianamente em um espaço social no qual há uma inexistência ou invisibilidade flagrante daqueles que neste país sofrem constantemente as conseqüências nefastas da desigualdade racial, meu papel é permitir (e não impedir)que se abram as portas deste espaço irritantemente homogêneo para que a alteridade se apresente e fale de si mesma. Não posso falar em aula com meus alunos sobre a inexistência de raça e racismo se meu interlocutor é tão ou mais branco do que eu. Sinto a necessidade de alguém que me interpele e traga outros argumentos para a continuidade da discussão em um nível digno que possa ser legitimamente reconhecido como produção de conhecimento científico sobre o mundo.
Gilse Rodrigues, antropóloga e professora universitária da PUCRS.
Um comentário:
Olá. Parabéns pelo texto. É sempre bom saber a opinião de quem está do outro lado. E principalmente quando essa opinião está de acordo com a nossa.
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