sábado, 30 de junho de 2007
Cumprimentos pela Aprovação das Cotas na UFRGS
DIA HISTÓRICO!
Laura Lópes (doutoranda em antropologia social, UFRGS)
HOJE A UFRGS ESTÁ DE PARABÉNS!
quinta-feira, 28 de junho de 2007
Raça ou Classe? Enfim a questão foi resolvida, nos muros da João Pessoa em Porto Alegre
Finalmente na última semana de junho de 2007, ano do lançamento de mais um livro com o termo “divisões perigosas” (parece que o perigo fascina alguns antropólogos) para pensar raça no Brasil, o Rio Grande do Sul sai na frente e resolve nosso problema. Vamos por pontos: O espaço público como espaço de manifestação de opiniões é muitas vezes utilizado nas grandes e não apenas tão grandes cidades para pichações nazistas, bem como contra homossexuais. Então qual a novidade interessante nesta pichação?
Neste caso, não temos apenas uma frase direta simples ou o símbolo da suástica. Temos aqui uma articulação mais complexa que colabora na compreensão de algo que tenho pesquisado: Não há insulto racial gratuito. Em pesquisa sobre racismo no Rio Grande do sul, analisando 531 ocorrências de delegacia, foi possível registrar que 171 delas faziam referência a uma condição “anômica”, ou seja, determinada cor de pele é associada à delinqüência e imoralidade. Mas 152 destas ocorrências, relacionavam raça e condição social sugerindo que uma ordem social dada deveria estabelecer que determinados indivíduos pertencem a uma posição social inferior- no Rio de Janeiro, são os favelados, no Rio Grande do Sul, os vileiros, maloqueiros.
Quando um grupo social expressa seu descontentamento contra determinada ação política nos termos que foram expressos em Porto Alegre, estamos diante do problema que SEMPRE balizou discussões sobre raça e racismo no Brasil: o lugar, o espaço social não é disputado apenas com base no desejo por mobilidade social. A cozinha aqui é o sinônimo de todas as senzalas do país, de todos os lugares não vistos, não protagonizados, não iluminados. Quero opor a cozinha ao salão de atos da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, o espaço máximo da consagração, do rito de passagem que concretiza a conversão do capital econômico paterno em capital cultural essencial no século XXI. Este é o lugar dos desfiles de vestidos e fotos, o lugar do espetáculo. Não importa se não existem postos de emprego suficientes para os formandos da turma de direito, engenharia elétrica ou publicidade em 2007. Acima de tudo, este é o derradeiro momento de separação, diferenciação entre aquele estudante que fez uso durante quatro anos dos serviços do restaurante universitário e o funcionário público mal pago que seguirá por mais quatro anos servindo os novos rebentos, vindos da serra, do interior ou da Cidade Baixa. Este funcionário é negro, e nisto os pichadores foram precisos. Provavelmente, suas empregadas domésticas também o são. O fantasma que assombra estas mentes atávicas, insinua que em um futuro muito distante, os professores também poderiam ser negros, assim como os médicos e os juízes.
Portanto, proponho que para avançar nesta discussão, possamos abandonar a questão retórica sobre o problema da raça versus a classe no Brasil, em nome de uma discussão mais construtiva (ou mais séria). Raramente veremos um posicionamento racista (manifesto ou sutil) que não articule em alguma medida cor e pobreza, cor e posição social inferior, enfim, não precisamos eleger uma categoria em detrimento da outra como problemas matemáticos entre conjuntos que pertencem e não pertencem.
Negro na UFRGS “só se for na cozinha do RU”: o lado cruel da “democracia racial”.
A frase “ironicamente” inscrita em vermelho (do sangue que derramamos, real ou simbolicamente, daquele que ameaça nossa “estabilidade”) nos muros da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, deixa à mostra o lado sombrio e inaudito (apenas para os incautos que se arrogam o direito de decretar a inexistência do racismo no Brasil) do famoso preconceito racial à brasileira. A mim que sempre profanei o sagrado mito da democracia racial não surpreende nem um pouco. O que esta atitude de jovens, certamente, de classe média, demonstra é, além da já conhecida exclusão de classe, um aspecto que muitos de nós por ingenuidade, ignorância, covardia ou na pior das hipóteses (e talvez a mais freqüente) por uma postura mal intencionada de defesa do status quo branco, escondemos ao longo dos anos: a exclusão racial.
A leitura ávida que fiz nos últimos dias dos textos de colegas antropólogos (José Carlos dos Anjos, Cláudia Fonseca, Patrice Schuch e Denise Jardim) defendendo as cotas para negros na universidade - eu que já era favorável a qualquer tipo de ação que desestabilize e interpele o poder estabelecido a partir de um viés exclusivamente eurocêntrico na produção de conhecimento - fiquei com a única opção de, humildemente assinar embaixo endossando todas as suas argumentações.
Aliás, argumentos é o que buscamos o tempo todo neste embate, fundamentados em estatísticas, teorias clássicas e contemporâneas, fundamentos científicos. Para alguns antropólogos, contrários às cotas, falar em raça é ressuscitar os mortos, destacando a perversa biologização do conceito. Esquecem eles que raça aqui, como salienta José Carlos dos Anjos, é uma categoria sociológica e política. Todos os tipos de explicações já foram utilizadas para evitar a entrada de negros através de cotas na universidade. Apesar de tudo, quero crer que para o bem da nação não seremos tão estúpidos a ponto de impedir a implementação das cotas raciais na UFRGS.
Como não tenho argumentos inovadores para acrescentar a esta discussão, venho aqui apresentar o argumento a partir de minha própria história escolar como exemplo da repartição dos espaços sociais para brancos e não brancos no sistema de ensino. Branca e de classe média, se é que isto significa alguma coisa, me ressinto da falta de colegas que nos primeiros anos de escola (pública durante os longos anos de ensino fundamental e 2º grau) dividiam comigo as carteiras escolares.
À medida que me aproximava do ensino superior, foram ficando para trás, não sei bem onde, meninas e meninos negros e mulatos, que como eu tinham sonhos e projetos para o futuro (e pasmem os contra-cotas mais conservadores, sonhavam em ser médicos, advogados, psicólogos, cientistas). “Se os negros não vão pra universidade talvez seja por que eles não querem ir” já ouvi muitos dizerem.
Sabemos que o processo de democratização do país, sobretudo após a constituição de 1988, trouxe a intensificação da universalização do ensino, colocando muito mais crianças e jovens na escola, ou seja, aumentou também o número de crianças e jovens negros estudando, então, me parece que a ausência de negros na universidade é ainda mais problemática. Difícil não perceber que 2% de negros nas universidades é realmente muito pouco neste contexto “tão democrático” do ensino no Brasil.
Hoje, professora universitária, não encontro entre meus pares nenhum negro. O que aconteceu? Onde estão estes atores sociais que povoavam minha infância escolar e hoje, nos corredores das universidades são “vistos” (quando os percebemos) limpando o chão ou na cozinha como reivindicam os racistas da pichação citada anteriormente (ou o termo adequado seria nazistas?). “O racismo não existe porque o negro brasileiro sabe qual é o seu lugar”, devem estar dizendo baixinho para si mesmos alguns “bem intencionados” defensores da meritocracia. Também sou favorável a um sistema meritocrático desde que todos estejam em pé de igualdade para a disputa, o que não é o caso no Brasil.
É claro que existem negros em ascensão social (um bom argumento dos crentes na democracia racial), mas certamente suas profissões de um modo geral (e aí entram as estatísticas apresentadas por meus colegas) não passam nem perto da universidade, e se passam é em um número tão pequeno que só faz reforçar a lógica da exclusão racial.
Eu me pergunto se com esta atitude contrária às cotas não estamos contribuindo, ainda que de forma inconsciente, para uma pedagogia da subalternidade negra. Por acaso alguém acredita que o projeto de vida dos negros é se manter em exclusão por livre e espontânea vontade, terminando no Ensino Médio a sua participação no mundo do conhecimento formal? Ou acreditam que os negros são menos inteligentes ou menos competentes do que os brancos, por isso não chegam aos bancos universitários? Se alguém acredita nisto, sinto muito, mas seria de bom tom, assumir publicamente seu racismo, para que possamos saber claramente com quem estamos lidando.
Reforço aqui a discussão trazida brilhantemente por José Carlos dos Anjos, a respeito das repartições dos espaços sociais e me pergunto: que tipo de saber estamos produzindo quando impedimos uma parcela significativa da sociedade de construir junto conosco, dentro do espaço acadêmico, um debate científico sobre a realidade social brasileira, permeada insistentemente pela raça e pelo racismo? Quem sou eu, branca de classe média para acreditar que tenho o poder de decretar a existência ou não do racismo? Quando em minha vida sofri as conseqüências do racismo na minha pele clara e nos meus olhos verdes para afirmar de forma tão autoritária que raça e racismo são categorias inexistentes?
Se atuo cotidianamente em um espaço social no qual há uma inexistência ou invisibilidade flagrante daqueles que neste país sofrem constantemente as conseqüências nefastas da desigualdade racial, meu papel é permitir (e não impedir)que se abram as portas deste espaço irritantemente homogêneo para que a alteridade se apresente e fale de si mesma. Não posso falar em aula com meus alunos sobre a inexistência de raça e racismo se meu interlocutor é tão ou mais branco do que eu. Sinto a necessidade de alguém que me interpele e traga outros argumentos para a continuidade da discussão em um nível digno que possa ser legitimamente reconhecido como produção de conhecimento científico sobre o mundo.
Gilse Rodrigues, antropóloga e professora universitária da PUCRS.
POR QUE APOIAMOS COTAS RACIAIS E SOCIAIS NA UFRGS?
Apoiamos o sistema de cotas, considerando o contexto e realidade da educação no Brasil, os dados estatísticos sobre perfil de estudantes que ingressam em nossa universidade e a história política e social do país, especialmente no que diz respeito à inserção da população negra neste contexto, que se expressa na profunda desigualdade social e exclusão racial, assumida e reconhecida em vários fóruns nacionais e internacionais. Na III reunião Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata, realizada em Durban, na África do Sul, em agosto de 2001, o governo brasileiro reconheceu a discriminação racial no país e assumiu compromisso de implantar ações afirmativas.
As políticas de ingresso na universidade pública brasileira têm priorizado a lógica meritocrática, justificando-se a necessidade desta como forma de seleção já que “não há vagas para todos”. No entanto, esta lógica se afirma como um processo natural, sem que se problematize por que esta forma e não outra, quando os dados nos mostram que ela é excludente e discriminatória, não cumprindo com os princípios de uma educação pública que, se não é possível para todos, que o seja para aqueles que não terão possibilidades de acesso ao ensino privado e para negros e índios, historicamente marginalizados na divisão social brasileira. É preciso considerar aqui a análise do professor José Jorge de Carvalho (2006) na discussão da proposta de cotas na UnB. Segundo o autor, não há equivalência entre exclusão social de brancos e exclusão social de negros, porque apesar de termos no país alguns momentos de mobilidade social, o mesmo não se pode dizer quanto à mobilidade racial, que tem sido “extremamente restrita” no Brasil. Assim não podemos afirmar que estudantes brancos e negros pobres estão em igualdade de condições na luta pela ascensão social, pois o problema social e a desvantagem do negro são causados também pela discriminação racial. Concordarmos com a afirmação de que a renda familiar no Brasil é um fator importante para definição de quem entra na universidade e, portanto, defendemos cotas raciais, além das sociais, considerando que entre estudantes pobres, os negros sofrem desvantagens por estarem nas faixas de pior distribuição de renda em relação aos estudantes brancos, que já contam com uma vantagem de escolaridade frente aos negros.
Referências Bibliográficas:
CARVALHO, José Jorge de. Inclusão Étnica e Racial no Brasil: a questão das cotas no ensino superior. São Paulo: Attar, 2ª edição: 2006.
COMBATE DE IMAGENS
Ainda são possíveis outros argumentos a favor de ações afirmativas, tais como o são as cotas no ingresso do ensino universitário.
As cotas não terão a virtude de resolver e nem mesmo de minorar os problemas da pobreza do país. Elas são uma forma de tentar dissociar um determinado grupo étnico da imagem da miséria e outras mazelas de nossa sociedade.
Para o senso comum essa associação existe e não parece ter data para diluir-se; isto é, o senso comum brasileiro é racista e nem mesmo os casamentos interétnicos e sua prole mestiça têm acabado com isso. E porque permanece esse preconceito com os negros, se a escravidão que lhe deu origem já acabou há tanto tempo? Tomando o argumento de Wallerstein, alguém tem que fazer os trabalhos desqualificados mesmo na igualitária sociedade capitalista e democrática. Para viver integradamente em uma sociedade, alguns grupos tendem a adequar-se aos nichos profissionais que lhe são reservados.
O que as cotas podem favorecer é o surgimento de uma classe média negra, processo já em curso, de modo a tornar mais freqüente a imagem de negros em posições socialmente reconhecidas, autônomas. Isso teria efeito tanto sobre os próprios negros como sobre os outros. Nosso sistema econômico já produziu muitas crianças loiras faveladas, mas industriais negros praticamente não existem.
E porque esse grupo tem necessidade de um reforço institucional para isso, para esse combate de imagens? Uma razão é que a associação de um estamento inferior, causada por uma longa escravidão, a um traço fenotípico teve um efeito de longo prazo, certamente maior que as tranças que deveriam portar os chineses durante a dominação mandchu ou as tarjas do período nazista. A sociedade atual tem que se mostrar melhor que a do passado; há uma conta a ser paga e é preciso saldá-la. Enquanto as imagens negativas – extensas e amplas – de um determinado grupo étnico persistirem, um bônus social deve ser depositado, favorecendo esse mesmo grupo em sua luta contra as mesmas. A existência desta salvaguarda institucional, em si mesma, já um alerta de que a manutenção de uma confortável imagem de superioridade por parte dos brancos – obtida por herança – tem um tributo a pagar.
Regina Weber
Departamento de História/UFRGS
quarta-feira, 27 de junho de 2007
Cotas: razão e sensibilidade
Não vejo, pois, razão para tanto estardalhaço. Se houvesse uma proposta de mudar todo o sistema de avaliação da universidade, estabelecendo privilégios para determinadas classes de alunos, quaisquer que fossem, provavelmente eu seria contra. Mas o que está em discussão é apenas a flexibilização do ingresso, sem nem mesmo facultar os cotistas do concurso. Tenho razões suficientes para firmar minha convicção de que as mudanças no vestibular, visando incluir alunos de escola pública, negros e índios, não agridem a meritocracia. A universidade é um centro de produção e disseminação de capital simbólico, uma modalidade de capital que pode ser reconvertida em outros capitais e, portanto, servir como um potente mecanismo de propulsão social e econômica. O atual vestibular favorece os que têm acesso à ampla rede de ensino que se estruturou no seu entorno; treina, portanto, indivíduos para burlar, com “truques” diversos, o sacrossanto dispositivo meritocrático. O que um vestibular com cotas faz é servir como um catalizador para determinados segmentos de raça e de classe social.
A propósito, meus bisavós vieram da Itália. Não foi antes de 1875, quando chegaram ao Sul do Brasil as primeiras levas de imigrantes, nem depois de 1890, data de nascimento de um dos primeiros descendestes. É possível, inclusive, que tenham chegado em 1888, ano em que os escravos foram oficialmente alforriados. Coincidências à parte (muitos descendentes de cativos lutam até os nossos dias para legalizar suas glebas), meus bisavós foram contemplados com suas cotas de terras pelo governo brasileiro. Eles cultivaram-nas, depois trocaram por outras e por outras mais, espelhando descendentes por vários estados brasileiros. Tiveram méritos nesse processo, sem dúvida, mas na origem há uma concessão importante, não posso negar.
Sou a favor das cotas, pois os que até agora se manifestaram contrários a elas não me convenceram de que elas serão perniciosas à UFRGS, nem me impressionaram com conjecturas que semeiam o pânico em relação às mudanças. Também sou pelas cotas por uma escolha política, que como outras tantas escolhas do mesmo gênero dependem de sensibilidade.
segunda-feira, 25 de junho de 2007
Raça, Sociologicamente
José Carlos dos Anjos - Doutor em Antropologia – Professor do Departamento de Sociologia – IFCH/UFRGS.
Os espaços de interação que envolvem processos de recrutamento, filtragem e rusgas sociais, estão informados por esquemas geradores de apreciações e expectativas do tipo: "quando o negro não suja na entrada, suja na saída". Conceituar raça do ponto de vista sociológico é levar em conta o peso histórico do efeito agregado de milhares de reconhecimentos cotidianos ligeiros e insustentáveis como esse. Trata-se do efeito histórico de dispositivos objetivos e de disposições subjetivas para repartir e definir o lugar das pessoas tendo como uma das bases de apreciação o fenótipo. O "lugar de negro", esse execrável princípio de partição de populações, se faz evidente porque existe esse substrato material causador de impressões marcantes em disposições subjetivas preparadas para racializar.
Não é porque cientistas dizem que raças não existem que elas passam a não existir socialmente. Historicamente, a não existência de raças precisa ser praticada, imaginada em dispositivos institucionais concretos, tornada presença visível de negros nos espaços mais caros da nação, sob pena de ficarmos condenados à presença visível da insistência de raça.
A entrada nos campos mais especializados de concorrência social como é o caso das profissões liberais, a universidade, os mundos artísticos de elite, estão duplamente interditados aos negros. Em primeiro lugar pelas exigências vinculadas ao direito de entrada, condicionadas pelo peso das heranças (no caso do vestibular, o capital econômico que faculta o acesso a cursinhos, por exemplo).
Em segundo lugar, a cor da pele conforma um habitus racista que se expressa, sobretudo nos momentos de seleção para cargos e funções dos espaços sociais mais institucionalizados. O modo de funcionamento do racismo limita tanto mais as expectativas com relação a candidatos negros quanto mais elevados os níveis de concorrências. Mais ainda do que a ausência de capital econômico, cultural e social as trajetórias negras carregam uma herança (negativa) que se reproduz continuamente, que é o destino na forma como ele é socialmente construído e incorporado. Isto é, uma criança negra que não vê nenhum médico negro nas novelas e não tem nenhum parente médico dificilmente poderá desenhar para si um destino de médico. Uma família negra que sabe que um investimento custoso nos níveis iniciais de ensino não irá se reverter em possibilidade de entrada na faculdade para a sua criança dificilmente fará esse investimento por um longo período de tempo. Não se trata apenas, portanto de uma questão de desigualdade na distribuição de renda. Há uma desigualdade na distribuição de expectativas de ascensão social. É essa reorganização nacional da economia das expectativas que está hoje em jogo quando se fala em políticas afirmativas.
Palestra-Ato pelas Cotas Raciais e Sociais na UFRGS
Nesta terça-feira, 26/06, no Pantheon - IFCH.18:00 Campus do Vale - UFRGS.
Convide professores e estudantes!
Divulgue em suas listas!
Comitê pró-cotas raciais e sociais na UFRGS.
Ações Afirmativas na Educação: Relato de uma Trajetória
No momento em que, especialmente, a comunidade acadêmica discute a adoção de cotas sociais e raciais na UFRGS, venho a público expor minha trajetória profissional como fruto de um projeto coletivo alicerçado na perspectiva das ações afirmativas. O meu lugar de fala é de alguém que vem se construindo pessoal e profissionalmente, a partir dessa perspectiva.
Portanto, dialogo no terreno da concretude dessas ações e seus efeitos para a sociedade, esperando assim contribuir para um olhar que se projeta para além do “negro” objeto do debate, mas como sujeito. Em 1995 ingressei no pré-vestibular comunitário Zumbi dos Palmares, o qual se inseria em uma ótica de projeto alternativo de educação. Por essa ótica, privilegiava-se a educação popular atenta para as desigualdades sócio-raciais.
O curso funcionava com professores voluntários, em espaços cedidos, dentre eles uma sala na FACED – Faculdade de educação/UFRGS. Este foi meu primeiro contato com esta universidade e, foi a partir daí que resolvi adentrar o seleto grupo dos 2% de universitários negros brasileiros, pois aprendi nas aulas de cultura e cidadania do ZPPV que o acesso a educação constituía um direito primordial ao qual o segmento populacional a que pertenço vem sendo excluído.
Em 1854, o decreto 1.331A instituía a obrigatoriedade da escola primária para crianças maiores de 07 anos e a gratuidade das escolas primárias e secundárias da Corte, com exceção das crianças com moléstias contagiosas e escravas. No Brasil do século XX a Lei no 5.465/68, a qual vigorou até 1990 instituía cotas nas universidades públicas, por meio da chamada “Lei do Boi”, que prescrevia: “Os cursos de Agricultura e Veterinária, mantidos pela União, reservarão, anualmente, de preferência, de 50% de suas vagas a candidatos agricultores ou filhos destes, proprietários ou não de terras, que residam com suas famílias na zona rural e 30% a agricultores ou filhos destes, proprietários ou não de terras, que residam em cidades ou vilas que não possuam estabelecimentos de ensino médio.” No Brasil do século XXI, as ações afirmativas na educação, especialmente direcionada à população negra e indígena, são questionadas quanto a sua legitimidade !!
Acreditei e me inseri na temática das relações raciais, sendo orientada pelo único professor negro do curso, exemplo de outra cota de inclusão. Em 2004 ingresso no mestrado de antropologia social. Agora, ainda que ao lado de uma colega moçambicana, a cota percentual de inclusão se mantém inalterada. Em 2006, torno-me professora universitária atuante e nos diferentes contextos observo que a cota perdura.
Vera Rodrigues
Mestre em antropologia social/UFRGS
Professora no curso de ciências sociais/URCAMP - Ciência política/Faculdade Montserrat.
POR QUE NÃO COTAS NA UFRGS?
Perdoem o tom irônico desse texto – mas fico pasma com esses argumentos pois, ao meu ver, revelam uma lógica profundamente racista. Pergunto – se não existe racismo no Brasil, como explicamos que, casualmente, os negros são os mais pobres, os mais doentes, os menos escolarizados da população? Se não é por causa da discriminação racial, deve ser por incompetência mesmo.... Quanto à questão do “racismo institucional”, podem me explicar por que a porcentagem de negros no sistema prisional continua a bater todos os recordes? Além do “mero” efeito da pobreza desproporcional entre negros, pesquisadores como Sergio Adorno já demonstraram que, diante de acusações semelhantes, o réu negro é preso e condenado com muito mais freqüência do que seu cúmplice branco...
Aliás, é difícil entender como os anti-cotistas podem se abraçar aos argumentos sofistas de um jornalista, Ali Kamel, já amplamente criticado por sua total incompreensão da estatística (ver Luis Nassif ) quando os estatísticos mais qualificados do pais, trabalhando no IBGE e PNUD chegam a conclusões completamente opostas. (*Blog de Nassif: http://z001.ig.com.br/ig/04/39/946471/blig/luisnassifeconomia/2006_10.html)
É como se os anti-cotistas estivessem comprando integralmente a noção da “democracia racial” – mito cunhado por Gilberto Freyre e já amplamente criticado por cientistas sociais durante esses últimos trinta anos. Claro que não existe segregação racial ou racismo no Brasil – do ponto de vista dos brancos que já têm acesso às benesses do ensino superior. Esses não têm preconceito contra “pessoas de cor”, desde que elas aceitem se conformar ao lugar delas indicado pelas regras “universais” de nossa seleção. Será que algum jovem afro-brasileiro já mostrou ressentimento pelo fato de que não encontra praticamente nunca um médico ou dentista negro? De que, conforme o IBGE, o negro brasileiro, em 2000, ganha na média a metade do que ganhava o branco brasileiro em 1980 (com valores corrigidos)? De que um colega branco tem mais de cem vezes as chances de entrar na universidade (obrigada André). Bem – talvez haja um pouco de ressentimento – mas esse ressentimento não é nada em relação ao ódio racial que os brancos vão sentir se imaginam que algum negro está “burlando” o sistema (que sempre funcionou tão bem!) e passando na frente da fila. É assim que devemos entender o argumento dos anti-cotistas?
Se a maioria desses argumentos soam absurdos, há alguns que expressam uma dúvida compreensível. Será que cotas na universidade pública vão servir para combater a discriminação racial e desigualdade social no Brasil? É evidente que, nessa sociedade complexa, não é possível prever todas as variáveis que vão influenciar os resultados – positivos e problemáticos – das cotas. É também evidente que uma política isolada não surtirá por si só grande efeito. Por outro lado, a situação atual é intolerável para qualquer cidadão consciente do grau de desigualdade (racial e social) em nosso país.
Já existem mais de trinta instituições no país experimentando diferentes formas de cotas e, ao que tudo indica, não ocorreu nenhum cataclismo. Na grande maioria de casos, as cotas não semearam conflitos raciais entre os estudantes, não provocaram a perda de prestígio, nem a repentina degringolada de qualidade do ensino superior. Em outras palavras, a experiência com cotas – tal como a experiência com cotas para mulheres, indígenas,”nordestinos”, ou qualquer outra categoria -- rende resultados diversos que valem a pena ser observados, analisados para reconhecer erros e ir aprimorando o sistema. Mas, para tanto, temos que ter a coragem de ensaiar novas políticas. A luta contra o assustador status quo tem que começar em algum lugar. E onde melhor do que numa instituição que se preza por sua reflexão crítica e politicamente engajada?
domingo, 24 de junho de 2007
Cálculo de Probabilidade sobre a Implementação das Cotas
Há uma grande probabilidade de que os egressos da universidade, em especial, aqueles formados pelas ciências humanas, conheçam muito da história do Brasil a partir do enfoque dos brasileiros como parte do mundo dos civilizados. É provável que conheçam nossa história entrelaçada a escravidão de negros e aprisionamento de indígenas como uma "etapa superada" das relações sociais neste nosso mundo social.
Há, também, uma forte probabilidade que esse egresso dominem argumentos de um debate constitutivo da antropologia como ciência, quando no século XIX os profissionais se debatiam com os parâmetros de cientificidade e atuavam científica e politicamente denunciando o quanto o racismo encontrava na ciência as bases de sustentação para classificações fenotípicas e de presunção de inferioridade e superioridade racial.
Há uma enorme probabilidade, sabendo que esses alunos se tornarão profissionais no âmbito do Brasil, que tenham um conhecimento bastante fundamentado e seja extremamente articulados para falar sobre esse Brasil, denunciar injustiças sociais e, de alguma maneira, outorgar-se no direito e no dever de "melhorar" a sociedade.
É provável que repitam genericamente que o Brasil tem uma dívida histórica com o segmento negro e indígena, e que os capítulos recentes da história do Brasil republicano não vem cumprindo com as promessas de igualdade de oportunidades.
Mas, há também uma enorme possibilidade que os mesmos sujeitos que falam sobre o Brasil não estejam sendo preparados nas universidades para vivenciar a diversidade cultural e as desigualdades, se não como um Brasil que se localiza fora da universidade, em um lugar distante.
As cotas são fundamentais para a universidade, para uma sala de aula diversificada em que, nem o professor possa tecer suas teorias, nem os alunos façam afirmações, sem ter de submete-la às objeções de seus colegas, com experiências diversas.
É claro que advogo as cotas como algo que pode ser proveitoso para as ciências humanas, mas lembro dos livros de etnomatemática indígena publicados recentemente por antropólogos, das aulas de orientação espacial que recebemos entre os quilombolas em Mormaça.
Portanto, deve haver coisas que não imagino e que me inclinam a acolher o ingresso de cotistas como uma abertura para novos problemas e desafios científicos. Talvez eles nem venham, nem cotistas, nem desafios científicos. Mas não há problemas, me contento em entrar em sintonia com meu século e com a necessidade de uma ciência que se descolonize e que, no caso da UFRGS, se desprovincialize.
As cotas e ações afirmativas tem o mérito de fazer sair do armário algumas presunções sobre a raça. Não só as que circulam de forma ampla entre aqueles que tem a experiência-de-perto sobre o ônus da classificação e a vivência dos "tribunais cotidianos", como me lembra a colega Daisy Barcellos. Esta é uma experiência que fica opaca quando vista de longe pelos que, do alto de seus condomínios, os observam. Lembro que muita gente teve que reconhecer, por contraste, de que é "quase-branco" e isso já foi um enorme passo para pensarmos sobre a quem socialmente nos dirigimos quando falamos de raça? O debate transformou o indizível em uma realidade que permite inspecionar quais as situações que convertem uma diferença, em uma desigualdade.
Sou contra "tribunais raciais", inclusive os cotidianos. Defendo a autodeclaração. Não me agrada a idéia de tribunais que checam a veracidade da auto declaração de cor ou origem, que te colocam como objeto e não como sujeito histórico. Ou, que te "incitam a falar de si como um dos pobres perseguidos do mundo" e não com a dignidade de quem veio ao mundo para negociar novas perspectivas e políticas públicas. Em um ambiente tão crítico, o constrangimento moral é um dos mecanismos de evasão escolar que não é uma inovação na universidade.
Acredito que as cotas aprovadas tornam-se a nossa responsabilidade de inclusão de negros e indígenas na universidade. Passamos da promessa para a difícil tarefa de não comprovar as teses contrárias às cotas e diplomar os ingressantes.
Deveríamos aproveitar a oportunidade para pensar sobre novas formas de refletir e pensar sobre a evasão escolar, sobre políticas estudantis dignas, sobre uma sala de aula pautada pela prática do questionamento e do diálogo. Tudo o que inclui e promove a permanência de cotistas deve promover a vida acadêmica das unidades e dos demais estudantes.
O que me incomoda é que o tribunal já começou e abre seus trabalhos dizendo que preconceito não existe porque raça não existe. Que espécie de retórica monocromática é essa? Ela é "puramente" científica ou está engajada em colocar um "pé na porta?" Uma coisa é tecer uma teoria sobre o mundo, outra coisa é discorrer sobre o seu mundo social mais próximo e abolir a possibilidade de falar sobre raça porque não é cientificamente correto.
De outra parte, a cota não é uma unanimidade entre os negros e devemos respeitar esse fato.
Muitos estudantes e formados negros no Brasil têm o mérito de diplomar-se na universidade, ingressando por vestibular. Há mérito e muito investimento nisso. Há também um custo familiar, uma série de saberes, como se comportar, como não errar, como ser, no mínimo, perfeito. Nenhum destes formados, por certo, pensara até então, o efeito de ter o apoio do Estado. Apenas o ônus de ser visto como um diferente.
Ocorre que algumas vozes negras são veiculadas e dizem que "não precisam de cotas". Já se antecipam ao bombardeio racista que o incriminaria por passar "por baixo dos panos". Devemos respeitar a experiência e a escolha de cotistas e não cotistas ao se submeter ao vestibular através do sistema de cotas. Devemos sim nos ater sobre como vamos lidar com as perversidades do racismo que espreita nossas relações, que não são o futuro das cotas, mas nosso presente.
Portanto, nosso problema atual não é se as cotas servem ou não para promover situações de igualdade de condições e de acesso à universidade. Isso já foi votado pelo congresso. Não podemos ter a arrogância de dizer "aqui não, neste pedaço eu que mando". Somos tão somente funcionários federais. As vagas não são "nossas" e sim, vagas da universidade pública.
Há uma grande probabilidade de que sem as cotas é a universidade quem está perdendo: perdendo em aprender a lidar com os desafios da diversidade. Sim, a diversidade não é o paraíso, tampouco é o Brasil.
O que não podemos é preparar um inferno para os cotistas.
Esse não seria o nosso inferno futuro, não há uma catástrofe que se anuncia, apenas vozes divergentes e creio que podemos conviver com a divergência. O que não podemos conviver é com o totalitarismo monocórdico que sustenta que as diferenças trazem problemas. Não é necessário temer aquilo que já presenciamos.
Afinal, há uma grande probabilidade de que já estejamos sentindo todos os sintomas da implementação de cotas de ingresso de negros e indígenas na universidade. O sistema de cotas, inclusive pelo que exige de troca de idéias e abertura de novas atitudes, possivelmente já começou.
sábado, 23 de junho de 2007
Poema - por Jose Miguel Nieto Olivar (Pós-graduação em Antropologia Social, UFRGS)
un gruñido en lugar del silencio
o la suprema torpeza
del que gran esfuerzo invierte en aparecer
Carcomido por su aliento
el moribundo blasfema
sin percibir que antes del tiempo
su paupérrima soberbia era ya rio de caudal muerto
Y bajo tu cuerpo prometido,
el Mundo.
(aquel lugar del que niegas las existencia)
Delicadas constructoras
que por muchas y desarmadas
te engullen, como a un pajarito blanco de pocos días.
Uma Breve Revista a Gilberto Freyre - Anotações sobre Genética e Cultura
A universidade pública foi e está sendo construída pelo sangue e suor de todos os brasileiros. Apesar de todos terem o mesmo direito de entrar na universidade, criaram-se mecanismos para filtrar a entrada de certas parcelas da população "menos privilegiadas". Uma população cuja pele sofreu o chicote da escravidão e sofre hoje pela exclusão, cujos olhos e ouvidos foram testemunhas do escárnio e hoje testemunham o escárnio e a hipocrisia, cujas bocas foram amordaçadas pelo discurso da “cordialidade brasileira” que depois se transformou no discurso da "democracia racial". E, ainda querem que fiquem assim amordaçadas dizendo que não exista um tal "preconceito racial" no Brasil, que a ciência genética comprovou por X e Y que Brasil é a população com menos diferenças raciais do mundo. Bom, pode ser que nossas células entre si se entendam. Mas, cá para nós, quando a coisa chega ao nível sistêmico macro corporal inserida numa cultura a coisa muda de figura completamente!! Então aquelas semelhanças a nível celular se tornam em diferenças escancaradas e até reforçadas por práticas e discursos sociais às vezes sutis e às vezes violentos. Como nossa atuação sobre a vida em sociedade está limitado à realidade dos corpos inseridos na cultura, então este conhecimento sobre a genética brasileira não ajuda em nada para ajudar a resolver as disparidades da circulação dos corpos de todos as etnias brasileiras nos diversos segmentos da nossa sociedade.O maior problema em tudo isto é a questão do medo. Há um medo de que as instituições de ensino superior do Brasil vão entrar em crise e perder seu valor e não sei mais o que de tão negativo que as cotas raciais vão provocar, muito mais que toda a corrupção (realizada aliás por brancos) jamais poderia fazer de ruim para o Brasil. Parece que vai ser o fim do mundo para o ensino superior do Brasil. Isto deve ser uma piada de mau gosto. Ora, é mais do que comprovada que onde há integração de culturas e conhecimentos de pessoas de diversas origens há crescimento mútuo entre todos, ninguém perde. E esta integração, também, não está pré-condicionada a uma equivalência de grau de instrução. O crescimento intelectual não ocorre por causa de uma equivalência de notas mas na capacidade de dialogar e trocar experiências, avaliando os dados e elaborando novas propostas a partir das conclusões. E tudo isto sob a ótica de seus pares. Democracia é saber dialogar. A universidade não precisa dialogar sobre a necessidade ou não sobre as cotas, é a única forma de remediar um século de exclusão. O desafio para a maioria (branca) dos que estão na universidade é saber dialogar com seus novos colegas de pele mais escura cujas origens são bem diferentes daquelas dos seus antepassados. Como disse Nietzsche (mais ou menos) o que não me mata me deixa mais forte. As cotas não vão matar o ensino superior do Brasil nem deixa-lo capenga, muito menos, de modo algum, prejudicado. Ou seja, somente quando se vai ao encontro àquilo de que se tem medo é que poderá realmente encontrar a si mesmo e o outro, valorizando-se mutuamente. Neste sentido, acredito que Brasil poderá estar num caminho de uma verdadeira re-descoberta de si mesmo. E isto é o que pode dar medo... o novo Brasil, pois algo no velho Brasil terá que morrer (transformar-se, deixar de ser, muita coisa terá que mudar e muitas vidas mudarão...), e é por isto que muitas pessoas preferem que as coisas continuem como estão. E aí é que mora o verdadeiro problema, a depressão, a impotência, a inércia. Estes sim podem matar o Brasil mesmo.
sexta-feira, 22 de junho de 2007
Se as Raças Não Existem, É Inegável que Insistem!
Dizem especialistas que fazendo um cruzamento sistemático entre a pertença racial e os indicadores econômicos de renda, emprego, escolaridade, classe social, idade, situação familial e região ao longo de mais de 70 anos, desde 1929, chega-se à conclusão de que no Brasil, a condição racial constitui um fator de privilégio para brancos e de exclusão e desvantagem para os não-brancos. Do total dos universitários, 97% são brancos, sobre 2% de negros e 1% de descendentes de orientais. Sobre 22 milhões de brasileiros que vivem abaixo da linha da pobreza, 70% deles são negros. Sobre 53 milhões de brasileiros que vivem na pobreza, 63% deles são negros.
O carnaval se aproxima. Nossos sentidos estão adequados a uma partição de fenótipos por espaços sociais. Lemos rostos todos os dias, em cada lugar, como lemos nossos livros e desconfiamos de algumas proposições. Se sairmos de uma sala de aulas da UFRGS numa sexta à noite para irmos a uma quadra de escola de samba, nossa ontologia racial se impõe numa evidência: um fracionamento de espaços sociais por raças como se o território da universidade fosse dos brancos (daí meu mal estar cotidiano) e a quadra pertencesse aos negros (como reclama com sustentável dignidade, o passista). É evidente que são poucos negros em uma sala de aula da UFRGS para muito poucos brancos na escola de samba.
Apenas a Coordenação Nacional de Entidades Negras - CONEN agrega mais de trezentas entidades do movimento negro, Unegro e MNU são outras entidades nacionais com agremiações em quase todos os Estados brasileiros; qualquer um que tenha participado de reuniões iniciais de entidades do Movimento Negro sabe que o rito de iniciação no engajamento militante passa por cerimônias dolorosas de explicitação espontânea de vivências da condição de vítima de racismo; entre os não militantes é crescente o numero de depoimentos em agências como o SOS - Racismo, sem contar as delegacias nada preparadas para receber e muito menos contabilizar as denuncias de racismo. Mas a evidência insiste. Que essa partição espacial e essas denúncias evidenciam um racismo insistente e persistente, não basta a história, não bastam os números, não bastam os depoimentos dos negros, não basta a nossa sensibilidade de qualquer dia desses (passe por lá e saiba do que estamos falando!)?
Que a não existência do racismo possa ser decidida apesar dos depoimentos dos negros (e brancos), apesar dos números das estatísticas, isso surpreende! O que surpreende é a pergunta sobre esse lugar privilegiado de acesso ao real, essa arrogância epistêmica, esse protocolo que vence objetividades (tão desconstruíveis) e subjetividades (tão passiveis de serem relativizadas).
Meu caro divino, mas de onde você está falando cara-pálida? Que lugar inacessível é esse que te permite definir os objetos de meu mundo apesar de mim, os objetos do teu mundo apesar das tuas estatísticas? Como decides sem mim as fronteiras entre mim e ti, quando elas existem e quando não existem? O que te permite partir e repartir o mundo em crenças paranóicas e racistas de um conjunto de movimentos sociais negros e a verdade subjetiva de todo o resto supostamente não racializado? Apenas o olhar arrogante da tua bela ciência? O que te permite definir quando o que o “nativo” diz deve ser levado em conta e, sobretudo quem é o “nativo” que merece teu crédito? Esse lugar de enunciação que, supõe acesso tão privilegiado ao real, que vos permite dizer que não existe o racismo que sobre meu corpo insiste não é o sinal mais flagrante de vossa branquitude?
- se você disser que possui protocolos científicos muito mais razoáveis do que as dores que me colam à pele e reinventam a cada dia meu confinamento negro, te direi que é exatamente disso que estou falando: que queremos também um lugar sob esse sol que vos permite dizer coisas tão razoáveis (porque suspeito que continue a não ver as mesmas coisas que você vê, porque viemos de historicidades diferentes e nossas ontologias precisam ser negociadas para que encontremos mundos comuns). É essa necessária diplomacia que reclama presenças negras mais numerosas na universidade. E você pode não estar certo, sobre a inexistência do racismo!
Diz displicentemente, um dos maiores antropólogos brasileiros da atualidade que “já há coisas demais no mundo que não existem” para que o antropólogo continue se dando ao luxo do inventário das inexistências! Na disciplina, esse já displicente senso do (mal) estar entre ontologias variáveis não tem sido compartilhado como uma ética do cuidado com as existências, essas delicadas criaturas. Muitos de nossos colegas insistem em arbitrar sobre o que existe e o que não existe, desgraçadamente apesar das dores de “seus nativos”.
Está nos fundamentos dessa disciplina particularmente preparada para lidar com a alteridade que é a antropologia, a suspeita sistemática de que os objetos insistentes no mundo prévio do pesquisador possam não ser tudo o que existe. E que as dores, convicções e cosmologias dos outros também se referem a coisas que de fato existem e que talvez estejam além das ontologias “razoáveis” do pesquisador. Isso faz a felicidade da crítica sistemática ao etnocentrismo e institui a própria noção de alteridade que baliza a disciplina. Tem sido surpreendente a ausência dessa humildade disciplinar na voz de diversos cientistas sociais brasileiros quando lidam com a questão racial. Não seria básico perguntar antes de decretar a inexistência: “o que é o racismo que eles dizem que sofrem?”; “O que significa para eles o racismo?”; “quanto e como consigo traduzir esse afeto (modo de afetar o mundo e de ser afetado nele)?”
Que o racismo não exista, isso só não surpreende numa ligeireza jurídica que esvazia o conteúdo sociológico de uma relação de des-humanização na desgraçada formalidade da busca de evidência de interdição/proibição: se você chama o sujeito de negro sujo você o ofendeu, mas não interditou nada, portanto trata-se de ofensa e não de racismo! Que esse negro nunca mais tenha condições subjetivas de voltar ao lugar do insulto, isso não é um problema do jurista! Mas nós? Vamos nos ater a temporalidades tão confinadas, tão decepadas dos encadeamentos históricos mais substantivos?
Se raças de fato não existem, pelo menos no Brasil insistem! Insistem nos números, insistem nos depoimentos negros, assim como está presente nas vossas mais humanistas declarações de intenções a respeito de cotas na universidade.
Raça é algo que a modernidade não para de fazer inexistir, seja através dos atuais processos de controle de fluxos mundiais de populações ou no antigo projeto nazista de extermínio daquilo que seus ideólogos inventaram como a mais radical alteridade do povo alemão, ou através do processo de censura sobre o termo raça e ainda nas múltiplas formulações humanistas condenando o racismo... De todo o modo a gestão da inexistência insistente de raça é um dos problemas cosmopolíticos dos modernos: como repartir as coisas e pessoas que existem de modo que raças não existam convincentemente? É disso que as nossas estatísticas falam: as coisas que existem e que valem a pena (que são capitais, recursos para outras coisas, passaporte para outros caminhos) não estão suficientemente bem repartidas para que raças tanto não existam como não insistam.
Um de nossos problemas modernos é exatamente o da infinitude desse processo de fazer inexistir raças, a demorada implausibilidade de tornar convincente essa inexistência quando todas as demais partições de nossos espaços sociais parecem deixar flagrante a ausência da inexistência de raças.
Porque tanta insistência em demonstrar o que não existe, senão porque raça insiste em ser um problema histórico não passível de ser contornável apenas discursivamente? É da existência histórica dessa insistência, da existência dessas múltiplas políticas para fazer inexistir, que estamos falando. O que esta subjacente a tanta insistência? Um geneticista talvez possa deliberar sobre a existência de raças do ponto de vista biológico. Mas não pode decidir sobre nossas ansiedades para que se pare em falar em raças, sobre como produzir políticas de desracialização das mentalidades e dos dispositivos objetivos de produção de repartições de populações nos espaços sociais. Esse é o nosso problema histórico, social, nem minimamente genético.
O que está em jogo é que a polícia me reconhece como negro sem me pedir a carteira genética; que os meus colegas, francamente, imediatamente me reconhecem como negro sem um teste de DNA, apesar de cientistas e sua maldita hermenêutica da dúvida sistemática; meus alunos até desconfiam que meu excesso de melanina possa carregar junto outros excessos e, sobretudo muitas deficiências... É do peso histórico do efeito agregado de milhares de reconhecimentos cotidianos ligeiros e insustentáveis como esses que estamos falando. Trata-se de falar de raça do prisma sociológico e enquanto efeito histórico de dispositivos objetivos e de disposições subjetivas para repartir e definir o lugar das pessoas tendo como uma das bases de impressão (é preciso lembrar Goffman e a política da primeira impressão na estruturação das interações cotidianas?): o fenótipo. O “lugar de negro”, esse princípio de partição que muitos de nós gostaríamos de banir, se faz evidente porque existe esse substrato material causador de impressões marcantes em disposições subjetivas preparadas para racializar.
O anti-racismo ligeiro não percebe que a inexistência de raças não se faz por um passe de mágica de uma enunciação científica. Não é porque cientistas dizem que raças não existem que elas passam a não existir socialmente. Historicamente a não existência de raças precisa ser praticada, inventada, imaginada em dispositivos institucionais concretos, tornada presença visível de negros na ossatura institucional da nação até que se naturalize tal presença. Se a presença de negros, nos espaços mais caros da nação, não for tão visível a ponto de se tornar natural, estaremos condenados a ter a presença visível da insistência de raça.
É por isso que o problema das modalidades de inserção positiva e visível do negro brasileiro na ossatura institucional da nação em nada reclama os palpites políticos de cientistas da genética. Políticas relacionadas a patrimônio genético merecem bem uma atenção decisiva desses profissionais. Quanto a políticas afirmativas a favor de negros e indígenas, cabe perguntar a cada um dos partícipes da assembléia de quem sua sensibilidade especial lhe faz porta-voz: Dos negros, dos indígenas, dos brancos, de mestiços, da bandeira nacional, da mulata ardente, etc.? Essas entidades de fato não existem nos minúsculos mundos científicos dos geneticistas! Estes deveriam defender políticas de genes como cientistas e palpitar sobre raças do ponto de vista político como qualquer outra voz cidadã. Não deixa de surpreender, nesse surpreendente Brasil, que geneticistas tenham se tornado experts abalizados, consultáveis em políticas públicas referentes a dimensões históricas gigantescas e macroscópicas da nação brasileira. Para tanta pretensão deveriam agregar ao menos duas especialidades!
Esquecem-se por vezes, alguns “cientistas” que a temporalidade das ciências não é a mesma das demais dimensões das mentalidades de nossa época. Que a mentalidade racista vem sendo praticada no Brasil há cinco séculos enquanto que as descobertas da genética sobre a inutilidade da categoria raça é algo bem mais recente, deveria ser trivial! Sobretudo, que a penetração na vida social das descobertas das ciências obedece a ritmos e está sujeita a reinterpretações imponderáveis, tardias e desconcertantes, também a essa altura deve ser trivial. Mas o problema dessas trivialidades é que são inconseqüentes para esse ligeiro pensamento anti-racista que, como diria o velho e bom hoje inominável, “confunde as coisas da lógica com a lógica das coisas”.
Então cabe repetir: para o bem e para o mal, só uma ínfima parcela dos brasileiros são cientistas. Não apenas muitos poucos detêm os rudimentos dos conhecimentos dos geneticistas, mas, mais ainda, nós os cientistas sociais precisamos lidar não apenas com o que existe de fato para os biólogos, mas também com os efeitos globais das práticas associadas ao que os demais brasileiros acreditam que existe. É disso que estamos falando, do efeito global de raça que muitos brasileiros de muitas maneiras diferentes praticam como “existências”.
E do que alguns “intelectuais” estão falando quando dizem que políticas afirmativas de corte racial são políticas perigosas? Do que mesmo eles têm medo? Qual é o tabu que faz com que não se explicite com a mesma insistência da declaração profética qual é o perigo real e quais os seus contornos? De onde viria o perigo? Quem seria o agressor? Que disposições subjetivas estariam por trás dessa onda devastadora do nosso sublime humanismo não-racista?
Será que eles temem que a nossa generosa cordialidade racial não resista ao teste de uma equiparação da presença de negros e brancos na universidade? Será que esse patrimônio da nação que é o mito da democracia racial não serve sequer para sustentar uma nova disposição moral que exige e desafia que negros estejam tão imediatamente quanto possível convivendo com brancos em número razoável em nosso campus? Será que eles acham que brancos não conseguem conviver com indígenas a não ser na relação pesquisador-objeto? Mas então para que “raios” serve esse tal de mito da democracia racial que tanto insistem que preservemos? Porque acreditar em cordialidade racial se isso não é de forma alguma assimilável a idéia de enfrentamento solidário de um problema de desigualdade que deixa visível a ausência de negros nos campus? Será que temem que suas quimeras estejam se arruinando ao primeiro teste? É o espectro do incêndio racista na casa de estudantes da UNB que consome suas veleidades da ausência brasileira de percepção racializada de mundo?
Se fosse apenas isso, precisaríamos nós, tão progressistas, de outras razões para desafiar disposições subjetivas tão hipócritas, mesquinhas e iníquas?
O pior é que talvez eles não concordem comigo sobre o caráter injusto de uma resposta violenta a política de cotas! No fundo, esses intelectuais ultra-humanistas, talvez concordem que esse ódio-racial-branco-nascente estaria justificado pela injustiça da “entrada não meritocrática de negros”! Talvez eles temam o potencial ainda não testado de seus próprios ódios raciais. Eles, tão humanistas!
Se assim for viva a ligeira cordialidade racial! Ela não sobrevive ao menor teste, mas sustenta nossos desencontrados sorrisos de corredor.
Já agora se deveria notar, antes que nos exijam uma comparação culturalmente exacerbada entre os EUA (da gota de sangue) e o Brasil (do branqueamento como fórmula de dissolução do racismo), que os diversos grupos racializados e estigmatizados por conta da noção de raça não carregam as mesmas historicidades. As fórmulas de equacionamento de suas dores e memórias de sofrimentos não são transferíveis esquematicamente. Será necessário recordar que, no Brasil, os judeus vêm passando, desde “o início da nação”, por um processo inacabado de branqueamento prenhe de dores? E que passar a ser reconhecido como branco não é igual a se desracializar? E que mesmo se fosse, as diferenças históricas e de substratos ontológicos impedem soluções similares para negros e judeus? Que gerações de negros vêm ensaiando o branqueamento sem que o quadro geral deixe de ser trágico, porque a branquitude é uma ideologia que carrega intrinsecamente uma noção de pureza que acusa todo o processo de purificação denunciável?
Para nós, os negros, a nova tragédia deriva do fato de que os donos de nossas ontologias passaram a decretar que o racismo que sobre nós insiste na verdade não existe!
Isso torna muito mais trágico o já agora “nosso” racismo, que deixou de ser denunciável. Não se trata de uma operação intelectual nova, mas a escola paulista (Florestan, Bastide, Iani...) que respondeu a demanda da Unesco sobre a harmonia racial brasileira já nos havia aliviado em parte do fardo dessa inexistência.
Se já é difícil conviver com um racismo efetivamente existente, como imaginam o fato da inexistência do racismo que me fere em cada detalhe do cotidiano? Se já era difícil o racismo real, agora, vivemos, nós os negros, o trágico do racismo inexistente como um bando de paranóicos racistas? O problema cosmopolítico é que esse é um bando grande demais para uma mania passível de ser resolvida numa instituição psiquiátrica que já não seja um outro mundo!
José Carlos dos Anjos
Dr. em Antropologia e Professor do Departamento de Sociologia
IFCH - UFRGS
Mérito e Cotas: dois lados da mesma moeda
O equívoco de ambos consiste em não perceber a coerência existente entre meritocracia e a adoção de uma regra de cotas como procedimento para a ocupação de vagas universitárias. Em suas origens, meritocracia surge como alternativa ao status herdado pelo nascimento como critério para ocupação de postos públicos. Trata-se de substituir ascription por achievement, premiando a capacidade individual e não o berço na configuração da hierarquia social. A ironia é que vantagens adscritivas foram capazes de adaptar-se às novas regras impostas pela individualização das sociedades modernas, reconvertendo capital econômico e social familiar, em capital escolar (Bourdieu, 1989, Boltanski, 1982). Investindo, desde o ensino fundamental, na formação escolar de seus herdeiros, famílias bem providas asseguram sua continuidade no interior das instituições universitárias de maior prestígio e qualidade, que oferecem títulos e diplomas mais valorizados no mercado, reproduzindo hierarquias plutocráticas dissimuladas em capacidade intelectual individual.
A conversão de exames vestibulares em simulacros de mérito individual não deve induzir-nos ao desprezo pela relevância de regras meritocráticas, como condição para o estabelecimento de instituições racionais e impessoais. Trata-se de controlar as distorsões provocadas pela origem social, neutralizando o efeito path-dependent berço=diploma=renda.
John Rawls, o maior expoente do liberalismo político do século XX, ao apresentar sua concepção de justiça como eqüidade, ressalta que as desigualdades sociais e econômicas para serem aceitáveis, devem satisfazer duas condições: estar ligadas a posições abertas a todos, segundo condições de igualdade de oportunidades, e, beneficiar aos membros menos favorecidos da sociedade (Rawls, 1971). Quem quer ser liberal, que ao menos seja coerente, e honre o significado desta consigna.
Meritocracia constitui um sistema distributivo, que confere de modo desigual vagas e títulos universitários, premiando a capacidade, responsabilidade e talento individuais. Para que seja justo, é preciso que esteja baseado em uma efetiva igualdade de oportunidades, julgando apenas o esforço e competência individual, e não o sobrenome (o que, parece óbvio, não constitui mérito próprio). Desta forma, instituir um sistema de cotas é a alternativa eficaz e racional para assegurar um indispensável critério meritocrático, como procedimento para o recrutamento aos bancos universitários.
A probabilidade de um branco ingressar na universidade é, no Brasil, 137 vezes superior a de um negro. O percentual de negros com diploma universitário hoje no Brasil equivale ao dos Estados Unidos dos anos 40, quando leis segregacionistas estaduais impediam negros de frequentar, como alunos, universidades para brancos. Equivale ao percentual de negros com diploma na África do Sul, durante o apartheid (PNUD, 2005). Frente a estes números, questionar se existe racismo ou se a implantação de cotas raciais poderiam introduzir o racismo no Brasil, é um modo de tergiversar sobre o problema. Na ausência de oportunidades e de mobilidade social reais, conflitos raciais estão presentes da pior forma possível, traduzidos nos indicadores de violência e criminalidade, enquando nossa classe média vive seu Baile da Ilha Fiscal, falando em harmonia racial e talento individual.
Políticas afirmativas devem oferecer oportunidades de mobilidade social inter-geracional, projetando as condições para a constituição de uma ampla classe média negra, que incremente uma economia de mercado no Brasil. Trata-se de ir além da hipocrisia de falar em cursos técnicos e profissionalizantes para jovens pobres e negros, como se fosse suficiente oferecer a estes a auspiciosa perspectiva de serem, no futuro, balconistas, garçons ou recepcionistas. Teremos harmonia racial quando for corriqueiro consultar-nos com médicos negros, sermos julgados por magistrados negros, dirigidos por executivos negros e ensinados por professores negros. Mas, talvez, seja isso precisamente que amedronta nossa classe média.
quinta-feira, 21 de junho de 2007
terça-feira, 19 de junho de 2007
POR QUE COTAS NA UFRGS?
A UFRGS está discutindo a implantação do sistema de cotas raciais para ingresso no vestibular. Embora as polêmicas mais acirradas estejam sendo efetuadas dentro dos muros da universidade, este debate interessa a todos nós. A desigualdade racial não é privilégio dos campos universitários. Contudo, a forma de ingresso em tais espaços tem contribuído para o agravamento das disparidades das relações raciais na sociedade brasileira e não para sua superação. A implantação do sistema de cotas visa tornar essa realidade menos desigual. No entanto, essa medida vem sendo criticada, sobretudo, através de três argumentos principais: 1) o que fundamenta a desigualdade na sociedade brasileira seria a estrutura de classe e não as relações raciais; 2) a noção de raça seria uma falácia, uma vez que tal conceito foi negado pela genética; 3) a idéia de que a implantação das cotas levaria a uma “racialização” da sociedade brasileira. O que os três argumentos têm em comum é uma essencialização notável das diferenças e uma desconsideração das sutis, mas graves, opressões constitutivas das relações de raça no Brasil.
Embora fundamental, a estruturação das relações de classe é insuficiente para a compreensão das dinâmicas de constituição da subordinação social em nosso país e, em especial, para a avaliação do perfil dos jovens universitários. Estudos recentes das ciências sociais têm extrapolado as dicotomias generalizantes para abarcar a exploração das diferenças entre classes sociais e no interior das classes sociais. As intersecções entre raça e classe, por exemplo, revelam que a sociedade está recortada por múltiplas camadas de subordinação que não podem ser reduzidas unicamente à questão de classe. Entre os mais pobres, ainda assim os negros têm menor acesso aos recursos sociais básicos do que os brancos e são as maiores vítimas de violência social e policial. A imbricação entre raça e classe, por outro lado, produz a inusitada situação em que, na universidade com maior percentual de professores negros – a Universidade de Brasília – esse percentual seja de apenas 1%. Na UFRGS, menos de 2% dos estudantes e 0,3% dos professores são negros. A raça é, assim, um fator importante de subordinação social, seja entre a classe mais rica, seja entre a classe mais pobre.
Ignorar a persistência da raça é, portanto, desconsiderar que a cor da pele, no Brasil, continua sendo uma chave de leitura para ordenar o real, mesmo que seus fundamentos biológicos já tenham sido ultrapassados há tempos. As estatísticas oficiais do IBGE são claras a esse respeito, basta querer lê-las. Se considerarmos a taxa de mortalidade infantil, por exemplo, vemos que há anos o percentual de incidência desse problema tem sido maior para negros do que para os brancos. Além disso, os negros morrem, em média, mais cedo do que os brancos. As causas das mortes também são diferentes, segundo pesquisa do Ministério da Saúde, publicada em 2004: enquanto para a população negra a principal causa de morte vem de homicídios, acidentes de trânsito, suicídios e outras mortes consideradas violentas, para os brancos a principal causa de morte são as doenças circulatórias. Dados recentes de uma pesquisa do Ministério do Desenvolvimento Social apontam outras situações desiguais: entre os quilombolas, a proporção de crianças de até cinco anos desnutridas é 76,1% maior do que o restante da população brasileira. O ingresso nos bancos universitários reproduz essa tendência desigual: segundo os dados levantados pelo PNUD no "Relatório de Desenvolvimento Humano Brasil 2005: Racismo, pobreza e violência", no ano de 2000 o percentual dos homens negros com mais de 30 anos de idade que tinha diploma de graduação (2,7%) era inferior ao mesmo dado registrado para os homens brancos em 1960 (3%), quarenta anos atrás.
Tais dados são contundentes no argumento de que a sociedade brasileira estrutura-se de forma efetiva também a partir da noção de raça. Denominar uma tentativa de transformação das desiguais relações raciais no Brasil como racista é se esquivar de participar de um processo de renegociação mais ampla do sentido de pertencimento e inclusão social. A sociedade brasileira precisa discutir que tipo de relações sociais quer construir. A universidade tem uma tarefa importante a cumprir nesse sentido, tanto politizando o debate acerca de uma suposta harmonia racial, quanto no desenvolvimento de mecanismos para o combate de desigualdades raciais persistentes e silenciadas há muito.
PETIÇÃO PARA IMPLEMENTAÇÃO DE COTAS RACIAIS NA UFRGS
Entre no endereço abaixo e assine:
http://www.petitiononline.com/lutacota/petition.html
segunda-feira, 18 de junho de 2007
Artigo: Divisões Perigosas ou Unidade Duvidosa?
Marcio Goldman, professor de antropologia da UFRJ/Museu Nacional
Divisões Perigosas dá continuidade a uma conhecida intervenção política contra o Estatuto da Igualdade Racial e a Lei de Cotas em tramitação no Congresso Nacional: de seus 46 artigos, dois terços já foram publicados em jornais e revistas de grande circulação nacional (11 deles na Folha). Seu argumento não é menos conhecido: qualquer política pública em benefício dos que sofrem discriminação racial é perigosa e corresponde a uma forma de racismo.
Se a intervenção é política, sua legitimidade é buscada na qualificação profissional dos autores. O que permitiria esperar mais rigor nos textos e uma maior clareza na explicitação das opções intelectuais adotadas. Mas não é difícil perceber, desde o título, os pressupostos de Divisões Perigosas: falar em raça é “perigoso” porque “divide” uma unidade transcendente, a humanidade (alguns preferem a sociedade ou a identidade nacional), e porque, garantem os cientistas naturais que colaboram no livro, “raça” não existe. O que “existe” é, de um lado, o “código genético”; de outro, completam os cientistas sociais, a estrutura e os valores da sociedade brasileira (que, asseguram, não é racista).
Se raça foi durante muito tempo um conceito tido por científico, o reconhecimento de que certezas passadas da ciência não passam, hoje, de erros, deveria levar a uma certa modéstia, não a novas certezas mais uma vez disseminadas com “autoridade científica”.
Intelectuais acostumados a lidar com a construção social do conhecimento, a inextricável mistura de ciência e interesses e a pôr os fenômenos em seu contexto, deveriam admitir que a recusa do conceito de raça pela genética não sign ifica a “descoberta” de que raças não existem. E que essa recusa não tem o poder de fazer calar categorias homônimas utilizadas por outros agentes sociais em suas lutas.
Isso não ocorre apenas quando se evoca a ciência para garantir a inexistência das raças, mas também quando se opõe a “verdadeira” história da África ou a estrutura “real” da sociedade brasileira ao que se considera meras ilusões. “Desessencializar” é tarefa complexa, especialmente quando, via de regra, consiste na substituição de uma essência por outra.
“Raça” não é nem uma coisa cuja existência ou inexistência poderia ser arbitrada pela ciência, nem um simples recorte equivocadamente efetuado em uma unidade originária. É uma categoria que pode ordenar de diferentes maneiras a diversidade do real e da experiência. Q uando os movimentos negros falam em raça, não estão se referindo a genótipos ou a louváveis ideais abstratos de igualdade, mas a experiências coletivas de discriminação e resistência. Quando o combate às desigualdades raciais assume a forma de políticas públicas é para enfrentar o racismo no campo sociopolítico, não apenas no das ideologias e preconceitos.
Ao silenciar sobre as lutas e reivindicações dos movimentos minoritários, o livro converte alvos do racismo em racistas potenciais e confunde o combate à discriminação com “políticas raciais” inventadas por intelectuais influenciados por idéias estrangeiras e políticos em busca de votos. E ao se concentrar nas “falsas idéias” e não no conteúdo efetivo das práticas racistas, acaba por associar essas lutas e essas políticas à Ku Klux Klan, ao apartheid e até ao nazismo, disseminando um medo que não sabemos bem de quê ou de quem é. Talvez de uma experiência sociopolítica visando modificar o quadro geral de desigualdade e exclusão no qual vivemos.(Resenha de "Divisões Perigosas", organizado por Peter Fry e Ivone Maggie. Este texto foi escrito pelo antropólogo Marcio Goldman - MN/UFRJ - e publicado na Folha de São Paulo em 16/06/2007).
quinta-feira, 7 de junho de 2007
Sugestão de Documentário: "ESTAMIRA" - de Marcos Prado
Tem o controle remoto superior natural, e tem o controle remoto artificial. O controle remoto é uma força quase igual assim, mais ou menos igual à luz, à força elétrica, a eletricidade, sabe. Agora, é o seguinte, no homem, na carne e no sangue tem os nervos. Os nervos da carne sanguínea vem a ser os fios elétrico. Agora, os deuses, que são os cientistas técnico, eles controlam. Ele vê aonde ele conseguiu. Os cientistas, determinados trocadilos, ele consegue. Porque o controle remoto não queima, torce. O cientista tem o medidor que controla. Igual o ferro, o ferro ali. Aquele que tem os número, tem pra lã, tem pra… é… Tão simples, né?
SOBRE DEUS
Que Deus é esse? Que Jesus é esse, que só fala em guerra e não sei o quê?! Não é ele que é o próprio trocadilo? Só pra otário, pra esperto ao contrário, bobado, bestalhado. Quem já teve medo de dizer a verdade, largou de morrer? Largou? Quem ando com Deus dia e noite, noite e dia na boca ainda mais com os deboches, largou de morrer? Quem fez o que ele mandou, o que o da quadrilha dele manda, largou de morrer? Largou de passar fome? Largou de miséria? Ah, não dá!
LUCIDEZ
Tem o lúcido, daquele que eu escrevi lá. Que o lúcido é isso aqui. Tem o ciente. O ciente é o saber, do qual Jesus não sabe ler, nem escrever, mas ele aprendeu toda coisa de tanto ele ver o lucidar. “A tua lucidez não te deixa ver…”. A inlucidez e a lucidez. A lucideze e a inlucidez. Tá bom. E o sentimento, né? Consciente, lúcido e ciente e tem o sentimento. Tá bom. O que fica pegando a… colhendo, gravando, é o sentimento.
TRABALHO
Foi combinado alimentai-vos o corpo com o suor do próprio rosto, não foi com sacrifício. Sacrifício é uma coisa, agora, trabalhar é outra coisa. Absoluto. Absoluto. Eu, Estamira, que vos digo ao mundo inteiro, a todos, trabalhar, não sacrificar.
COMUNISMO
Todos homens tem que ser iguais, tem que ser comunistas. Comunismo. Comunismo é a igualidade. Não é obrigado todos trabalhar num serviço só, não é obrigado todos comer uma coisa só, mas a igualidade é a ordenança que deu quem revelou o homem o único condicional, e o homem é o único condicional seja que cor for.
TERRA
A Terra disse, ela falava, agora que ela já tá morta, ela disse que então ela não seria testemunha de nada. Olha o quê que aconteceu com ela. Eu fiquei de mal com ela uma porção de tempo, e falei pra ela que até que ela provasse o contrário. Ela me provou o contrário, a Terra. Ela me provou o contrário porque ela é indefesa. A Terra é indefesa.
A minha carne, o sangue, é indefesa, como a Terra; mas eu, a minha áurea não é indefesa não. Se queimar os espaço todinho, e eu tô no meio, pode queimar, eu tô no meio, invisível. Se queimar meu sentimento, minha carne, meu sangue, se for pra o bem, se for pra verdade, pra o bem, pela lucidez de todos os seres, pra mim pode ser agora, nesse segundo, e eu agradeço ainda.
Eu Estamira sou a visão de cada um.
Ninguém pode viver sem mim. Ninguém pode viver sem Estamira. E eu me sinto orgulho e tristeza por isso. Porque eles, os astros Negativos ofensivos, sujam os espaço e quer-me. Quer-me, e suja tudo.
A criação toda é abstrata. Os espaço inteiro é abstrato. A água é abstrato. O fogo é abstrato. Tudo é abstrato. Estamira também é abstrato.
terça-feira, 5 de junho de 2007
Poder, Direito e Cultura: esboço sobre as obras de Foucault, Bourdieu e Geertz
Em seu texto “A Governamentalidade”, Foucault reconstrõe historicamente o surgimento do problema específico da população. Neste esforço de historicização, ele apresenta e contrapõe duas teorias que operaram ao longo da história enquanto estratégias diferenciadas de poder: as “teorias da soberania” e as teorias da arte de governar. Podemos perceber, nas críticas apresentadas por Foucault às teorias da soberania, alguns pontos muito importantes referentes ao entendimento que este autor tem da problemática do poder. Segundo o autor, a análise em termos de poder não deve postular, como dados iniciais, a soberania do Estado, a forma da lei ou a unidade global de uma dominação, pois estas são apenas suas formas terminais. Ele explicita assim seu pressuposto de que se deve compreender o poder, primeiro, como a multiplicidade de correlações de força imanentes ao domínio onde se exercem e constitutivas de sua organização.
Segundo Foucault o poder se exerce a partir de inúmeros pontos e em meio a relações desiguais e móveis. Não é, portanto, algo que se adquira, arrebate ou compartilhe, algo que se guarde ou deixe escapar. Assim temos que a condição de possibilidade do poder não deve ser procurada num foco único de soberania de onde partiriam formas derivadas e descendentes (como, por exemplo, no governo do soberano sobre seu principado) , ao contrário, é o suporte móvel das correlações de força que, devido a sua desigualdade, induzem continuamente estados de poder, localizados e instáveis (existem muitos governos e muitos poderes - pode-se governar uma casa, uma alma, uma criança, uma província, uma ordem religiosa, uma família -em relação aos quais o do príncipe governando seu Estado é apenas uma modalidade.). O poder para Foucault produz-se a cada instante em toda relação entre um ponto e outro, não é uma instituição nem uma estrutura, não é uma certa potência de que alguns sejam dotados, ele está em toda parte, provém de todos os lugares.
Em contraposição à Foucault, Bourdieu diz que seu intuito não é ver o poder em todos os lugares, mas vê-lo onde ele é mais completamente ignorado e, portanto, reconhecido, nos símbolos. Partindo da idéia de que o poder invisível dos símbolos só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem, Bourdieu empreende seus estudos para demonstrar a função integradora e – principalmente – política do símbolo. Segundo o autor, o poder simbólico é produzido no interior dos campos sociais, materializado em diversos tipos de capitais. Desta forma, os agentes detêm poder na medida em que são dotados do capital específico do campo em que estão inseridos.
O campo jurídico é, segundo Bourdieu, “o lugar de concorrência pelo monopólio de dizer o direito” no qual se defrontam agentes investidos de competência social e técnica, que consiste na capacidade reconhecida de interpretar um corpus de textos que consagram a visão legítima, justa, do mundo social. Bourdieu aponta para a existência de uma disputa interna ao campo jurídico – a disputa entre teóricos e práticos – e uma disputa externa ao campo – a disputa entre profissionais e profanos – caracterizada pelo esforço contínuo por parte dos profissionais de fundamentar a cisão entre eles e os profanos, indivíduos não inseridos no campo, despossuídos de capital jurídico.
Neste sentido, o trabalho de racionalização é um meio de “aumentar cada vez mais o desvio entre os vereditos armados do direito e as intuições ingênuas da equidade e fazer com que o sistema das normas jurídicas apareça aos que o impõem e mesmo aos que a ele estão sujeitos, como totalmente independente das relações de força que ele sanciona e consagra” (Bourdieu, 1989, p.212). A racionalização, compreendida enquanto utilização de uma linguagem diferenciada e demonstração de competência técnica por parte dos operadores de justiça, ilustra, portanto, a presença do poder simbólico nos rituais jurídicos[1], o que confere às decisões judiciais a eficácia simbólica exercida por toda a ação quando, ignorada no que tem de arbitrário, é reconhecida como legítima.
Bourdieu entende que os símbolos são os instrumentos por excelência da integração social, pois enquanto instrumentos de conhecimento e comunicação, permitem o consenso acerca do sentido do mundo social, o que contribui fundamentalmente para a reprodução da ordem. É, da mesma forma, enquanto instrumentos estruturados e estruturantes de comunicação e de conhecimento que os sistemas simbólicos cumprem a sua função política de imposição ou legitimação da dominação, que contribuem para assegurar a dominação de uma classe sobre a outra. Assim, o poder simbólico é um poder de construção da realidade e as produções simbólicas são instrumentos de dominação.
Já Foucault, aborda o potencial produtivo do poder em outros termos. Ele sugere que pensemos o poder em termos de sua positividade, o que significa dizer que o poder não apenas restringe, proíbe, mas sobretudo cria. Segundo Foucault é o biopoder que produz os sujeitos. Neste sentido afirma que as relações de poder são, ao mesmo tempo, intencionais e não subjetivas, não há poder que se exerça sem uma série de miras e objetivos, entretanto não devemos buscar a equipe que preside sua racionalidade, nem a casta que governa, nem os grupos que controlam os aparelhos de Estado; a racionalidade do poder é a das táticas muitas vezes bem explícitas no nível limitado em que se inscrevem que, encadeando-se entre si, invocando-se e se propagando, encontrando em outra parte apoio e condição, esboçam finalmente dispositivos de conjunto (a lógica é clara e as miras decifráveis), porém neste ponto parece já não haver mais ninguém para tê-las concebido e poucos para formulá-las. Podemos ver claramente aqui outro contraponto entre Foucault e Bourdieu: Enquanto para o segundo o poder simbólico é um instrumento de dominação, que produz o discurso dominado e o dominante, para o primeiro o poder vem de baixo, não há no princípio das relações de poder uma oposição binária e global entre dominadores e dominados, não há discurso dominado e dominante, mas uma complexa rede de relações capilares de poder, na qual o símbolo é apenas um instrumento.
A antropologia interpretativa de Clifford Geertz também toma o direito como objeto, assim como Bourdieu, mas o faz, obviamente, a partir de uma perspectiva diferente. Os sujeitos, que não encontram espaço algum na análise de Foucault, adquirem grande relevância na perspectiva de Geertz, na medida em que a análise interpretativa parte de três pontos chave: o contexto (onde, em que época e inscritos em que sistema cultural estão os nativos, quais as redes de significado que os permeiam), os atores sociais (quem são os nativos e de que forma estão situados nesta rede) e as formas simbólicas (veículos de expressão dos significados em jogo, formas culturais “com que” e “através das quais” os nativos falam). Assim, ao estudar os sistemas jurídicos, Geertz concentra sua visão no significado, no modo como os atores sociais fazem sentido daquilo que fazem.
Segundo Geertz, o direito aqui, acolá, ou em qualquer parte do mundo, é parte de uma forma específica de imaginar a realidade. Assim, o autor apresenta uma perspectiva segundo a qual fatos e leis não estão polarizados, mas estão, ao contrário, intimamente relacionados - na medida em que os fatos são construídos socialmente por todos os elementos jurídicos, que dizem respeito a uma forma específica de imaginar a realidade, da qual o direito, e portanto as leis, é parte - e ilustra sua visão do direito enquanto um artesanato local, que apresenta um mundo no qual suas próprias descrições fazem sentido.
Neste sentido, parece pertinente argumentar que o que está em jogo para Geertz não é o poder tal como o vemos em Bourdieu ou Foucault. O ponto central para este autor não são as correlações de força, as relações de poder ou as disputas por capital, Geertz foca sua atenção na maneira pela qual as instituições legais traduzem a linguagem da imaginação para a linguagem da decisão, criando assim um sentido de justiça determinado. E este fenômeno, que é, aliás, a base de toda a cultura, é o processo de representação. “A descrição de um fato de tal forma que possibilite aos advogados defendê-lo, aos juízes ouvi-lo, e aos jurados solucioná-lo, nada mais é que uma representação”, a representação jurídica do fato, na qual “trata-se basicamente, não do que aconteceu, e sim do que aconteceu aos olhos do direito”.
Apesar de não trazer contribuições para as análises em termos de poder, Geertz nos fornece, ainda assim, uma perspectiva interessante para pensar a temática da implantação e construção de direitos. Se é verdade que o direito é um artesanato local, que funciona a luz do saber local, e é portanto parte de uma maneira específica de imaginar a realidade; e que as instituições legais criam uma sensibilidade jurídica determinada ao traduzir a linguagem da imaginação (linguagem do “se então” das normas genéricas) para a linguagem da decisão (linguagem do “como portanto” dos casos concretos), podemos concluir que a implantação e construção de direitos só pode concretizar-se na medida em que estes direitos “novos” dialoguem com os sentidos de justiça determinados de cada cultura, façam sentido dentro da visão de mundo específica daquela sociedade.
[1] Outros símbolos que conferem eficácia e legitimidade aos rituais de julgamento são a vestimenta e a hexis corporal dos juízes, promotores e advogados, bem como a disposição espacial dos lugares na sala de audiências.
segunda-feira, 4 de junho de 2007
O que aconteceria se os ricos tivessem mais filhos e os pobres menos filhos?
Economista com doutorado em Ciências Sociais pela UnB, coordenador do Centro Internacional de Pobreza da ONU no Ipea. Autor de: MEDEIROS, Marcelo . O que faz os ricos ricos: o outro lado da desigualdade brasileira. São Paulo: Hucitec, 2005.
ÉPOCA - A grande sacada de sua tese foi inverter o foco e estudar os ricos para discutir desigualdade. Parece óbvio, mas nunca tinha sido feito. Como teve a idéia?
Marcelo Medeiros - A idéia básica é o seguinte: o grande problema do Brasil é a desigualdade. Para reduzi-la é preciso redistribuir a renda. A questão era que conhecíamos bem o grupo que vai receber os recursos, mas conhecíamos pouco o grupo que vai ceder os recursos. Se a gente quer de fato reduzir a desigualdade, vamos ter de chegar ao grupo dos mais ricos. Não se trata de deixá-los sem renda nenhuma, não vamos ter de fazer uma expropriação de todas as riquezas, mas eles vão ter de ceder recursos. É indiscutível isso.
ÉPOCA - É difícil estudar os ricos?
Medeiros - Tive de enfrentar uma série de problemas metodológicos para chegar até eles. Eu precisava de uma definição de ricos. Optei por criar uma linha de riqueza. Mas, se existe controvérsia para a linha de pobreza, ela é muito maior numa linha de riqueza. As pessoas têm dificuldade para aceitar o que é uma pessoa rica. Então tive de usar princípios muito sólidos e uma idéia muito simples. Criei uma linha de riqueza definida a partir dos pobres e da desigualdade. Nunca tive a pretensão de dar uma resposta definitiva. Queria dar o primeiro passo. Hoje, a linha da riqueza estaria em torno de R$ 3.500 per capita. Em uma família de quatro pessoas, estaríamos falando de uma renda de cerca de R$ 14 mil. Esses podem não ser ''os ricos'', mas são ''os mais ricos'', o 1% da população que detém 11% da renda. São o grupo prioritário para ceder recursos.
ÉPOCA - Sempre que você apresentava o trabalho, havia protestos. Se, por princípio, numa sociedade capitalista a maioria quer ser rica, por que eles não querem ser reconhecidos como ricos?
Medeiros - As pessoas sempre reagem diante da definição de rico. Pesquisas realizadas em outros países mostram que, quando é pedido que as pessoas se classifiquem entre pobres, classe média e ricos, elas tendem a se classificar no meio. Os pobres como classe média e os ricos também. O que fazem é usar eufemismos para justificar sua posição. Os pobres dizem que são da classe média baixa, os ricos da classe média alta.
ÉPOCA - O que está por trás disso?
Medeiros - Não querer se entender como elite numa sociedade desigual. Só há duas escolhas: ou você aceita a desigualdade, ou aceita que é elite e tem a responsabilidade de reduzir a desigualdade, o que vai implicar algum tipo de perda. Falar de riqueza implica falar de redistribuição e implica reduzir privilégios, reduzir vantagens de quem está no poder. A reação de quem vai perder é imediata.
ÉPOCA - Você desmonta vários mitos sobre a origem da riqueza…
Medeiros - Eu senti que o debate sobre redistribuição de renda no Brasil enfrentaria uma discussão de caráter moral antes de enfrentar uma discussão de caráter técnico. As pessoas vão dizer que são ricas por merecimento: ''Eu mereço porque trabalhei muito, porque estudei, porque me esforço etc.'' O que eu faço é testar essas grandes explicações. Constato, por exemplo, que os pobres trabalham tanto ou mais que os ricos. Provo do ponto de vista quantitativo, com dados do IBGE, que contemplam todos os trabalhadores brasileiros, inclusive os informais. Depois testo se são ricos porque botam mais pessoas no mercado de trabalho, se é porque recebem mais aposentadorias e pensões, se é porque têm mais educação etc. Testo cada uma dessas grandes justificativas e provo que elas não explicam a riqueza.
ÉPOCA - O que explica, então?
Medeiros - Os resultados do trabalho não permitem dizer por que os ricos são ricos. Permitem derrubar uma série de explicações clássicas sobre por que os ricos são ricos. É possível especular. Uma possibilidade forte é o fato de terem educação de elite e conseguirem ocupar os melhores postos de trabalho. Mas seguramente não é só isso. Eles têm uma boa rede de relações, o que permite o acesso aos melhores postos de trabalho, começar a carreira numa posição mais elevada. Receberam uma série de heranças, não só financeira. Existe um fenômeno de reprodução das elites ao longo das gerações. Comparado com os padrões de mobilidade social em vários países do mundo, o brasileiro não é alto. É muito difícil que alguém que não é rico se torne rico no Brasil.
ÉPOCA - Qual é a importância política de jogar o foco sobre os ricos?
Medeiros - A discussão da desigualdade no Brasil sempre foi muito calcada na idéia de que você vai reduzir desigualdade via educação. Esse é o primeiro ponto forte. O segundo é que você não tem de dar o peixe, mas ensinar a pescar. Mas há duas questões que precisamos entender. Educação é crucial para a sociedade brasileira, mas o impacto da educação sobre a desigualdade vai demorar décadas para ser sentido porque é investimento de longo prazo. Mesmo que a gente eduque as crianças num sistema educacional perfeito, leva décadas até que essas crianças bem educadas sejam maioria no mercado de trabalho. E a gente tem um problema de curto prazo para resolver. Política de assistência é crucial para o combate da pobreza no curto e médio prazo. As pessoas precisam entender que por dez, 20 anos vai ser fundamental dar o peixe enquanto se ensina a pescar.
ÉPOCA - Nesse sentido, seu trabalho quebrou fantasias bem arraigadas no senso comum e mesmo na academia…
Medeiros - Mais do senso comum que da academia. Existiam algumas fantasias no Brasil sobre o que vai acabar com a pobreza e reduzir a desigualdade. Uma delas é que as mulheres são pobres porque têm muitos filhos. Só 3% das famílias brasileiras têm mais que três filhos com menos de 10 anos, sinal de que as pessoas já têm poucos filhos, não é preciso aumentar o controle da população. Bate-se muito nessa tecla porque isso transfere para os pobres o problema da pobreza. São pobres porque tiveram muitos filhos. É confortável acreditar nisso. Por outro lado, você pode justificar que é rico porque foi responsável e teve poucos filhos. Então eu vou e testo. O que aconteceria se os ricos tivessem mais filhos e os pobres menos filhos? E a resposta é evidente. O tamanho das famílias dos ricos é bem próximo ao da massa das famílias brasileiras. O fato de sua família ser metade da família do outro não explica por que você tem uma renda 27 vezes maior.
(Entrevista publicada na Revista Época, disponível on line: http://revistaepoca.globo.com/Epoca/0,6993,EPT868921-1666,00.html
Reportagem enviada pela aluna Ana Paula Arosi - disciplina Antropologia e Direitos Humanos)