sexta-feira, 22 de junho de 2007

Se as Raças Não Existem, É Inegável que Insistem!

José Carlos Gomes dos Anjos (doutor em antropologia social, professor do departamento de Sociologia da UFRGS)

Dizem especialistas que fazendo um cruzamento sistemático entre a pertença racial e os indicadores econômicos de renda, emprego, escolaridade, classe social, idade, situação familial e região ao longo de mais de 70 anos, desde 1929, chega-se à conclusão de que no Brasil, a condição racial constitui um fator de privilégio para brancos e de exclusão e desvantagem para os não-brancos. Do total dos universitários, 97% são brancos, sobre 2% de negros e 1% de descendentes de orientais. Sobre 22 milhões de brasileiros que vivem abaixo da linha da pobreza, 70% deles são negros. Sobre 53 milhões de brasileiros que vivem na pobreza, 63% deles são negros.
O carnaval se aproxima. Nossos sentidos estão adequados a uma partição de fenótipos por espaços sociais. Lemos rostos todos os dias, em cada lugar, como lemos nossos livros e desconfiamos de algumas proposições. Se sairmos de uma sala de aulas da UFRGS numa sexta à noite para irmos a uma quadra de escola de samba, nossa ontologia racial se impõe numa evidência: um fracionamento de espaços sociais por raças como se o território da universidade fosse dos brancos (daí meu mal estar cotidiano) e a quadra pertencesse aos negros (como reclama com sustentável dignidade, o passista). É evidente que são poucos negros em uma sala de aula da UFRGS para muito poucos brancos na escola de samba.
Apenas a Coordenação Nacional de Entidades Negras - CONEN agrega mais de trezentas entidades do movimento negro, Unegro e MNU são outras entidades nacionais com agremiações em quase todos os Estados brasileiros; qualquer um que tenha participado de reuniões iniciais de entidades do Movimento Negro sabe que o rito de iniciação no engajamento militante passa por cerimônias dolorosas de explicitação espontânea de vivências da condição de vítima de racismo; entre os não militantes é crescente o numero de depoimentos em agências como o SOS - Racismo, sem contar as delegacias nada preparadas para receber e muito menos contabilizar as denuncias de racismo. Mas a evidência insiste. Que essa partição espacial e essas denúncias evidenciam um racismo insistente e persistente, não basta a história, não bastam os números, não bastam os depoimentos dos negros, não basta a nossa sensibilidade de qualquer dia desses (passe por lá e saiba do que estamos falando!)?
Que a não existência do racismo possa ser decidida apesar dos depoimentos dos negros (e brancos), apesar dos números das estatísticas, isso surpreende! O que surpreende é a pergunta sobre esse lugar privilegiado de acesso ao real, essa arrogância epistêmica, esse protocolo que vence objetividades (tão desconstruíveis) e subjetividades (tão passiveis de serem relativizadas).
Meu caro divino, mas de onde você está falando cara-pálida? Que lugar inacessível é esse que te permite definir os objetos de meu mundo apesar de mim, os objetos do teu mundo apesar das tuas estatísticas? Como decides sem mim as fronteiras entre mim e ti, quando elas existem e quando não existem? O que te permite partir e repartir o mundo em crenças paranóicas e racistas de um conjunto de movimentos sociais negros e a verdade subjetiva de todo o resto supostamente não racializado? Apenas o olhar arrogante da tua bela ciência? O que te permite definir quando o que o “nativo” diz deve ser levado em conta e, sobretudo quem é o “nativo” que merece teu crédito? Esse lugar de enunciação que, supõe acesso tão privilegiado ao real, que vos permite dizer que não existe o racismo que sobre meu corpo insiste não é o sinal mais flagrante de vossa branquitude?
- se você disser que possui protocolos científicos muito mais razoáveis do que as dores que me colam à pele e reinventam a cada dia meu confinamento negro, te direi que é exatamente disso que estou falando: que queremos também um lugar sob esse sol que vos permite dizer coisas tão razoáveis (porque suspeito que continue a não ver as mesmas coisas que você vê, porque viemos de historicidades diferentes e nossas ontologias precisam ser negociadas para que encontremos mundos comuns). É essa necessária diplomacia que reclama presenças negras mais numerosas na universidade. E você pode não estar certo, sobre a inexistência do racismo!
Diz displicentemente, um dos maiores antropólogos brasileiros da atualidade que “já há coisas demais no mundo que não existem” para que o antropólogo continue se dando ao luxo do inventário das inexistências! Na disciplina, esse já displicente senso do (mal) estar entre ontologias variáveis não tem sido compartilhado como uma ética do cuidado com as existências, essas delicadas criaturas. Muitos de nossos colegas insistem em arbitrar sobre o que existe e o que não existe, desgraçadamente apesar das dores de “seus nativos”.
Está nos fundamentos dessa disciplina particularmente preparada para lidar com a alteridade que é a antropologia, a suspeita sistemática de que os objetos insistentes no mundo prévio do pesquisador possam não ser tudo o que existe. E que as dores, convicções e cosmologias dos outros também se referem a coisas que de fato existem e que talvez estejam além das ontologias “razoáveis” do pesquisador. Isso faz a felicidade da crítica sistemática ao etnocentrismo e institui a própria noção de alteridade que baliza a disciplina. Tem sido surpreendente a ausência dessa humildade disciplinar na voz de diversos cientistas sociais brasileiros quando lidam com a questão racial. Não seria básico perguntar antes de decretar a inexistência: “o que é o racismo que eles dizem que sofrem?”; “O que significa para eles o racismo?”; “quanto e como consigo traduzir esse afeto (modo de afetar o mundo e de ser afetado nele)?”
Que o racismo não exista, isso só não surpreende numa ligeireza jurídica que esvazia o conteúdo sociológico de uma relação de des-humanização na desgraçada formalidade da busca de evidência de interdição/proibição: se você chama o sujeito de negro sujo você o ofendeu, mas não interditou nada, portanto trata-se de ofensa e não de racismo! Que esse negro nunca mais tenha condições subjetivas de voltar ao lugar do insulto, isso não é um problema do jurista! Mas nós? Vamos nos ater a temporalidades tão confinadas, tão decepadas dos encadeamentos históricos mais substantivos?
Se raças de fato não existem, pelo menos no Brasil insistem! Insistem nos números, insistem nos depoimentos negros, assim como está presente nas vossas mais humanistas declarações de intenções a respeito de cotas na universidade.
Raça é algo que a modernidade não para de fazer inexistir, seja através dos atuais processos de controle de fluxos mundiais de populações ou no antigo projeto nazista de extermínio daquilo que seus ideólogos inventaram como a mais radical alteridade do povo alemão, ou através do processo de censura sobre o termo raça e ainda nas múltiplas formulações humanistas condenando o racismo... De todo o modo a gestão da inexistência insistente de raça é um dos problemas cosmopolíticos dos modernos: como repartir as coisas e pessoas que existem de modo que raças não existam convincentemente? É disso que as nossas estatísticas falam: as coisas que existem e que valem a pena (que são capitais, recursos para outras coisas, passaporte para outros caminhos) não estão suficientemente bem repartidas para que raças tanto não existam como não insistam.
Um de nossos problemas modernos é exatamente o da infinitude desse processo de fazer inexistir raças, a demorada implausibilidade de tornar convincente essa inexistência quando todas as demais partições de nossos espaços sociais parecem deixar flagrante a ausência da inexistência de raças.
Porque tanta insistência em demonstrar o que não existe, senão porque raça insiste em ser um problema histórico não passível de ser contornável apenas discursivamente? É da existência histórica dessa insistência, da existência dessas múltiplas políticas para fazer inexistir, que estamos falando. O que esta subjacente a tanta insistência? Um geneticista talvez possa deliberar sobre a existência de raças do ponto de vista biológico. Mas não pode decidir sobre nossas ansiedades para que se pare em falar em raças, sobre como produzir políticas de desracialização das mentalidades e dos dispositivos objetivos de produção de repartições de populações nos espaços sociais. Esse é o nosso problema histórico, social, nem minimamente genético.
O que está em jogo é que a polícia me reconhece como negro sem me pedir a carteira genética; que os meus colegas, francamente, imediatamente me reconhecem como negro sem um teste de DNA, apesar de cientistas e sua maldita hermenêutica da dúvida sistemática; meus alunos até desconfiam que meu excesso de melanina possa carregar junto outros excessos e, sobretudo muitas deficiências... É do peso histórico do efeito agregado de milhares de reconhecimentos cotidianos ligeiros e insustentáveis como esses que estamos falando. Trata-se de falar de raça do prisma sociológico e enquanto efeito histórico de dispositivos objetivos e de disposições subjetivas para repartir e definir o lugar das pessoas tendo como uma das bases de impressão (é preciso lembrar Goffman e a política da primeira impressão na estruturação das interações cotidianas?): o fenótipo. O “lugar de negro”, esse princípio de partição que muitos de nós gostaríamos de banir, se faz evidente porque existe esse substrato material causador de impressões marcantes em disposições subjetivas preparadas para racializar.
O anti-racismo ligeiro não percebe que a inexistência de raças não se faz por um passe de mágica de uma enunciação científica. Não é porque cientistas dizem que raças não existem que elas passam a não existir socialmente. Historicamente a não existência de raças precisa ser praticada, inventada, imaginada em dispositivos institucionais concretos, tornada presença visível de negros na ossatura institucional da nação até que se naturalize tal presença. Se a presença de negros, nos espaços mais caros da nação, não for tão visível a ponto de se tornar natural, estaremos condenados a ter a presença visível da insistência de raça.
É por isso que o problema das modalidades de inserção positiva e visível do negro brasileiro na ossatura institucional da nação em nada reclama os palpites políticos de cientistas da genética. Políticas relacionadas a patrimônio genético merecem bem uma atenção decisiva desses profissionais. Quanto a políticas afirmativas a favor de negros e indígenas, cabe perguntar a cada um dos partícipes da assembléia de quem sua sensibilidade especial lhe faz porta-voz: Dos negros, dos indígenas, dos brancos, de mestiços, da bandeira nacional, da mulata ardente, etc.? Essas entidades de fato não existem nos minúsculos mundos científicos dos geneticistas! Estes deveriam defender políticas de genes como cientistas e palpitar sobre raças do ponto de vista político como qualquer outra voz cidadã. Não deixa de surpreender, nesse surpreendente Brasil, que geneticistas tenham se tornado experts abalizados, consultáveis em políticas públicas referentes a dimensões históricas gigantescas e macroscópicas da nação brasileira. Para tanta pretensão deveriam agregar ao menos duas especialidades!
Esquecem-se por vezes, alguns “cientistas” que a temporalidade das ciências não é a mesma das demais dimensões das mentalidades de nossa época. Que a mentalidade racista vem sendo praticada no Brasil há cinco séculos enquanto que as descobertas da genética sobre a inutilidade da categoria raça é algo bem mais recente, deveria ser trivial! Sobretudo, que a penetração na vida social das descobertas das ciências obedece a ritmos e está sujeita a reinterpretações imponderáveis, tardias e desconcertantes, também a essa altura deve ser trivial. Mas o problema dessas trivialidades é que são inconseqüentes para esse ligeiro pensamento anti-racista que, como diria o velho e bom hoje inominável, “confunde as coisas da lógica com a lógica das coisas”.
Então cabe repetir: para o bem e para o mal, só uma ínfima parcela dos brasileiros são cientistas. Não apenas muitos poucos detêm os rudimentos dos conhecimentos dos geneticistas, mas, mais ainda, nós os cientistas sociais precisamos lidar não apenas com o que existe de fato para os biólogos, mas também com os efeitos globais das práticas associadas ao que os demais brasileiros acreditam que existe. É disso que estamos falando, do efeito global de raça que muitos brasileiros de muitas maneiras diferentes praticam como “existências”.
E do que alguns “intelectuais” estão falando quando dizem que políticas afirmativas de corte racial são políticas perigosas? Do que mesmo eles têm medo? Qual é o tabu que faz com que não se explicite com a mesma insistência da declaração profética qual é o perigo real e quais os seus contornos? De onde viria o perigo? Quem seria o agressor? Que disposições subjetivas estariam por trás dessa onda devastadora do nosso sublime humanismo não-racista?
Será que eles temem que a nossa generosa cordialidade racial não resista ao teste de uma equiparação da presença de negros e brancos na universidade? Será que esse patrimônio da nação que é o mito da democracia racial não serve sequer para sustentar uma nova disposição moral que exige e desafia que negros estejam tão imediatamente quanto possível convivendo com brancos em número razoável em nosso campus? Será que eles acham que brancos não conseguem conviver com indígenas a não ser na relação pesquisador-objeto? Mas então para que “raios” serve esse tal de mito da democracia racial que tanto insistem que preservemos? Porque acreditar em cordialidade racial se isso não é de forma alguma assimilável a idéia de enfrentamento solidário de um problema de desigualdade que deixa visível a ausência de negros nos campus? Será que temem que suas quimeras estejam se arruinando ao primeiro teste? É o espectro do incêndio racista na casa de estudantes da UNB que consome suas veleidades da ausência brasileira de percepção racializada de mundo?
Se fosse apenas isso, precisaríamos nós, tão progressistas, de outras razões para desafiar disposições subjetivas tão hipócritas, mesquinhas e iníquas?
O pior é que talvez eles não concordem comigo sobre o caráter injusto de uma resposta violenta a política de cotas! No fundo, esses intelectuais ultra-humanistas, talvez concordem que esse ódio-racial-branco-nascente estaria justificado pela injustiça da “entrada não meritocrática de negros”! Talvez eles temam o potencial ainda não testado de seus próprios ódios raciais. Eles, tão humanistas!
Se assim for viva a ligeira cordialidade racial! Ela não sobrevive ao menor teste, mas sustenta nossos desencontrados sorrisos de corredor.
Já agora se deveria notar, antes que nos exijam uma comparação culturalmente exacerbada entre os EUA (da gota de sangue) e o Brasil (do branqueamento como fórmula de dissolução do racismo), que os diversos grupos racializados e estigmatizados por conta da noção de raça não carregam as mesmas historicidades. As fórmulas de equacionamento de suas dores e memórias de sofrimentos não são transferíveis esquematicamente. Será necessário recordar que, no Brasil, os judeus vêm passando, desde “o início da nação”, por um processo inacabado de branqueamento prenhe de dores? E que passar a ser reconhecido como branco não é igual a se desracializar? E que mesmo se fosse, as diferenças históricas e de substratos ontológicos impedem soluções similares para negros e judeus? Que gerações de negros vêm ensaiando o branqueamento sem que o quadro geral deixe de ser trágico, porque a branquitude é uma ideologia que carrega intrinsecamente uma noção de pureza que acusa todo o processo de purificação denunciável?
Para nós, os negros, a nova tragédia deriva do fato de que os donos de nossas ontologias passaram a decretar que o racismo que sobre nós insiste na verdade não existe!
Isso torna muito mais trágico o já agora “nosso” racismo, que deixou de ser denunciável. Não se trata de uma operação intelectual nova, mas a escola paulista (Florestan, Bastide, Iani...) que respondeu a demanda da Unesco sobre a harmonia racial brasileira já nos havia aliviado em parte do fardo dessa inexistência.
Se já é difícil conviver com um racismo efetivamente existente, como imaginam o fato da inexistência do racismo que me fere em cada detalhe do cotidiano? Se já era difícil o racismo real, agora, vivemos, nós os negros, o trágico do racismo inexistente como um bando de paranóicos racistas? O problema cosmopolítico é que esse é um bando grande demais para uma mania passível de ser resolvida numa instituição psiquiátrica que já não seja um outro mundo!


José Carlos dos Anjos
Dr. em Antropologia e Professor do Departamento de Sociologia
IFCH - UFRGS

Mérito e Cotas: dois lados da mesma moeda

André Marenco (cientista político, professor da UFRGS)

Os argumentos de críticos e defensores de políticas afirmativas convergem em um ponto: para ambos, haveria uma oposição entre a instituição da meritocracia como regra para recrutamento acadêmico e a implantação de mecanismos compensatórios, sociais ou raciais. Adversários das cotas, retomando uma espécie de retórica da ameaça (Hirschman, 1992) afirmam que sua adoção eliminaria o mérito e o conhecimento prévio, premiando os menos capazes, com efeitos agregados sob a forma de mediocrização universitária. Defensores das cotas subestimam o significado racionalizador de instituições meritocráticas, resumindo a discussão com o argumento de que fins socialmente justos justificam a adoção dos meios necessários para atingi-los.
O equívoco de ambos consiste em não perceber a coerência existente entre meritocracia e a adoção de uma regra de cotas como procedimento para a ocupação de vagas universitárias. Em suas origens, meritocracia surge como alternativa ao status herdado pelo nascimento como critério para ocupação de postos públicos. Trata-se de substituir ascription por achievement, premiando a capacidade individual e não o berço na configuração da hierarquia social. A ironia é que vantagens adscritivas foram capazes de adaptar-se às novas regras impostas pela individualização das sociedades modernas, reconvertendo capital econômico e social familiar, em capital escolar (Bourdieu, 1989, Boltanski, 1982). Investindo, desde o ensino fundamental, na formação escolar de seus herdeiros, famílias bem providas asseguram sua continuidade no interior das instituições universitárias de maior prestígio e qualidade, que oferecem títulos e diplomas mais valorizados no mercado, reproduzindo hierarquias plutocráticas dissimuladas em capacidade intelectual individual.
A conversão de exames vestibulares em simulacros de mérito individual não deve induzir-nos ao desprezo pela relevância de regras meritocráticas, como condição para o estabelecimento de instituições racionais e impessoais. Trata-se de controlar as distorsões provocadas pela origem social, neutralizando o efeito path-dependent berço=diploma=renda.
John Rawls, o maior expoente do liberalismo político do século XX, ao apresentar sua concepção de justiça como eqüidade, ressalta que as desigualdades sociais e econômicas para serem aceitáveis, devem satisfazer duas condições: estar ligadas a posições abertas a todos, segundo condições de igualdade de oportunidades, e, beneficiar aos membros menos favorecidos da sociedade (Rawls, 1971). Quem quer ser liberal, que ao menos seja coerente, e honre o significado desta consigna.
Meritocracia constitui um sistema distributivo, que confere de modo desigual vagas e títulos universitários, premiando a capacidade, responsabilidade e talento individuais. Para que seja justo, é preciso que esteja baseado em uma efetiva igualdade de oportunidades, julgando apenas o esforço e competência individual, e não o sobrenome (o que, parece óbvio, não constitui mérito próprio). Desta forma, instituir um sistema de cotas é a alternativa eficaz e racional para assegurar um indispensável critério meritocrático, como procedimento para o recrutamento aos bancos universitários.
A probabilidade de um branco ingressar na universidade é, no Brasil, 137 vezes superior a de um negro. O percentual de negros com diploma universitário hoje no Brasil equivale ao dos Estados Unidos dos anos 40, quando leis segregacionistas estaduais impediam negros de frequentar, como alunos, universidades para brancos. Equivale ao percentual de negros com diploma na África do Sul, durante o apartheid (PNUD, 2005). Frente a estes números, questionar se existe racismo ou se a implantação de cotas raciais poderiam introduzir o racismo no Brasil, é um modo de tergiversar sobre o problema. Na ausência de oportunidades e de mobilidade social reais, conflitos raciais estão presentes da pior forma possível, traduzidos nos indicadores de violência e criminalidade, enquando nossa classe média vive seu Baile da Ilha Fiscal, falando em harmonia racial e talento individual.
Políticas afirmativas devem oferecer oportunidades de mobilidade social inter-geracional, projetando as condições para a constituição de uma ampla classe média negra, que incremente uma economia de mercado no Brasil. Trata-se de ir além da hipocrisia de falar em cursos técnicos e profissionalizantes para jovens pobres e negros, como se fosse suficiente oferecer a estes a auspiciosa perspectiva de serem, no futuro, balconistas, garçons ou recepcionistas. Teremos harmonia racial quando for corriqueiro consultar-nos com médicos negros, sermos julgados por magistrados negros, dirigidos por executivos negros e ensinados por professores negros. Mas, talvez, seja isso precisamente que amedronta nossa classe média.

terça-feira, 19 de junho de 2007

POR QUE COTAS NA UFRGS?

Patrice Schuch (antropóloga, pesquisadora associada ao Núcleo de Antropologia e Cidadania da UFRGS, bolsista de pós-doutorado Jr do CNPq).

A UFRGS está discutindo a implantação do sistema de cotas raciais para ingresso no vestibular. Embora as polêmicas mais acirradas estejam sendo efetuadas dentro dos muros da universidade, este debate interessa a todos nós. A desigualdade racial não é privilégio dos campos universitários. Contudo, a forma de ingresso em tais espaços tem contribuído para o agravamento das disparidades das relações raciais na sociedade brasileira e não para sua superação. A implantação do sistema de cotas visa tornar essa realidade menos desigual. No entanto, essa medida vem sendo criticada, sobretudo, através de três argumentos principais: 1) o que fundamenta a desigualdade na sociedade brasileira seria a estrutura de classe e não as relações raciais; 2) a noção de raça seria uma falácia, uma vez que tal conceito foi negado pela genética; 3) a idéia de que a implantação das cotas levaria a uma “racialização” da sociedade brasileira. O que os três argumentos têm em comum é uma essencialização notável das diferenças e uma desconsideração das sutis, mas graves, opressões constitutivas das relações de raça no Brasil.

Embora fundamental, a estruturação das relações de classe é insuficiente para a compreensão das dinâmicas de constituição da subordinação social em nosso país e, em especial, para a avaliação do perfil dos jovens universitários. Estudos recentes das ciências sociais têm extrapolado as dicotomias generalizantes para abarcar a exploração das diferenças entre classes sociais e no interior das classes sociais. As intersecções entre raça e classe, por exemplo, revelam que a sociedade está recortada por múltiplas camadas de subordinação que não podem ser reduzidas unicamente à questão de classe. Entre os mais pobres, ainda assim os negros têm menor acesso aos recursos sociais básicos do que os brancos e são as maiores vítimas de violência social e policial. A imbricação entre raça e classe, por outro lado, produz a inusitada situação em que, na universidade com maior percentual de professores negros – a Universidade de Brasília – esse percentual seja de apenas 1%. Na UFRGS, menos de 2% dos estudantes e 0,3% dos professores são negros. A raça é, assim, um fator importante de subordinação social, seja entre a classe mais rica, seja entre a classe mais pobre.

Ignorar a persistência da raça é, portanto, desconsiderar que a cor da pele, no Brasil, continua sendo uma chave de leitura para ordenar o real, mesmo que seus fundamentos biológicos já tenham sido ultrapassados há tempos. As estatísticas oficiais do IBGE são claras a esse respeito, basta querer lê-las. Se considerarmos a taxa de mortalidade infantil, por exemplo, vemos que há anos o percentual de incidência desse problema tem sido maior para negros do que para os brancos. Além disso, os negros morrem, em média, mais cedo do que os brancos. As causas das mortes também são diferentes, segundo pesquisa do Ministério da Saúde, publicada em 2004: enquanto para a população negra a principal causa de morte vem de homicídios, acidentes de trânsito, suicídios e outras mortes consideradas violentas, para os brancos a principal causa de morte são as doenças circulatórias. Dados recentes de uma pesquisa do Ministério do Desenvolvimento Social apontam outras situações desiguais: entre os quilombolas, a proporção de crianças de até cinco anos desnutridas é 76,1% maior do que o restante da população brasileira. O ingresso nos bancos universitários reproduz essa tendência desigual: segundo os dados levantados pelo PNUD no "Relatório de Desenvolvimento Humano Brasil 2005: Racismo, pobreza e violência", no ano de 2000 o percentual dos homens negros com mais de 30 anos de idade que tinha diploma de graduação (2,7%) era inferior ao mesmo dado registrado para os homens brancos em 1960 (3%), quarenta anos atrás.

Tais dados são contundentes no argumento de que a sociedade brasileira estrutura-se de forma efetiva também a partir da noção de raça. Denominar uma tentativa de transformação das desiguais relações raciais no Brasil como racista é se esquivar de participar de um processo de renegociação mais ampla do sentido de pertencimento e inclusão social. A sociedade brasileira precisa discutir que tipo de relações sociais quer construir. A universidade tem uma tarefa importante a cumprir nesse sentido, tanto politizando o debate acerca de uma suposta harmonia racial, quanto no desenvolvimento de mecanismos para o combate de desigualdades raciais persistentes e silenciadas há muito.

PETIÇÃO PARA IMPLEMENTAÇÃO DE COTAS RACIAIS NA UFRGS

POR UMA UNIVERSIDADE PÚBLICA E POPULAR!!

Entre no endereço abaixo e assine:
http://www.petitiononline.com/lutacota/petition.html

segunda-feira, 18 de junho de 2007

Artigo: Divisões Perigosas ou Unidade Duvidosa?

Marcio Goldman, professor de antropologia da UFRJ/Museu Nacional

Divisões Perigosas dá continuidade a uma conhecida intervenção política contra o Estatuto da Igualdade Racial e a Lei de Cotas em tramitação no Congresso Nacional: de seus 46 artigos, dois terços já foram publicados em jornais e revistas de grande circulação nacional (11 deles na Folha). Seu argumento não é menos conhecido: qualquer política pública em benefício dos que sofrem discriminação racial é perigosa e corresponde a uma forma de racismo.
Se a intervenção é política, sua legitimidade é buscada na qualificação profissional dos autores. O que permitiria esperar mais rigor nos textos e uma maior clareza na explicitação das opções intelectuais adotadas. Mas não é difícil perceber, desde o título, os pressupostos de Divisões Perigosas: falar em raça é “perigoso” porque “divide” uma unidade transcendente, a humanidade (alguns preferem a sociedade ou a identidade nacional), e porque, garantem os cientistas naturais que colaboram no livro, “raça” não existe. O que “existe” é, de um lado, o “código genético”; de outro, completam os cientistas sociais, a estrutura e os valores da sociedade brasileira (que, asseguram, não é racista).
Se raça foi durante muito tempo um conceito tido por científico, o reconhecimento de que certezas passadas da ciência não passam, hoje, de erros, deveria levar a uma certa modéstia, não a novas certezas mais uma vez disseminadas com “autoridade científica”.
Intelectuais acostumados a lidar com a construção social do conhecimento, a inextricável mistura de ciência e interesses e a pôr os fenômenos em seu contexto, deveriam admitir que a recusa do conceito de raça pela genética não sign ifica a “descoberta” de que raças não existem. E que essa recusa não tem o poder de fazer calar categorias homônimas utilizadas por outros agentes sociais em suas lutas.
Isso não ocorre apenas quando se evoca a ciência para garantir a inexistência das raças, mas também quando se opõe a “verdadeira” história da África ou a estrutura “real” da sociedade brasileira ao que se considera meras ilusões. “Desessencializar” é tarefa complexa, especialmente quando, via de regra, consiste na substituição de uma essência por outra.
“Raça” não é nem uma coisa cuja existência ou inexistência poderia ser arbitrada pela ciência, nem um simples recorte equivocadamente efetuado em uma unidade originária. É uma categoria que pode ordenar de diferentes maneiras a diversidade do real e da experiência. Q uando os movimentos negros falam em raça, não estão se referindo a genótipos ou a louváveis ideais abstratos de igualdade, mas a experiências coletivas de discriminação e resistência. Quando o combate às desigualdades raciais assume a forma de políticas públicas é para enfrentar o racismo no campo sociopolítico, não apenas no das ideologias e preconceitos.
Ao silenciar sobre as lutas e reivindicações dos movimentos minoritários, o livro converte alvos do racismo em racistas potenciais e confunde o combate à discriminação com “políticas raciais” inventadas por intelectuais influenciados por idéias estrangeiras e políticos em busca de votos. E ao se concentrar nas “falsas idéias” e não no conteúdo efetivo das práticas racistas, acaba por associar essas lutas e essas políticas à Ku Klux Klan, ao apartheid e até ao nazismo, disseminando um medo que não sabemos bem de quê ou de quem é. Talvez de uma experiência sociopolítica visando modificar o quadro geral de desigualdade e exclusão no qual vivemos.

(Resenha de "Divisões Perigosas", organizado por Peter Fry e Ivone Maggie. Este texto foi escrito pelo antropólogo Marcio Goldman - MN/UFRJ - e publicado na Folha de São Paulo em 16/06/2007).

quinta-feira, 7 de junho de 2007

Sugestão de Documentário: "ESTAMIRA" - de Marcos Prado


"Mire-veja: Estamira. Esta mira. Esta mirada. Este jeito de olhar. Esse modo particular de ver. A singularidade do ser. Para além dos delírios, dos sintomas, todos facilmente enquadráveis numa classificação epidemiológica, um discurso. Absurdo, mas não sempre. E não sem sentido. Ela repete freqüentemente seu nome: Estamira. E parece estar dizendo: mire-veja, ouça-me, encare o meu ponto de vista. Respeite-me. Acredite-me. No final ela diz algo como: eu trago a boa sorte, mas a minha sorte não é boa" (texto de Renan Barbosa · São Paulo, 28/4/2007).


Estamira por Estamira...

MISSÃO
A minha missão, além d’eu ser Estamira, é revelar a verdade, somente a verdade. Seja mentira, seja capturar a mentira e tacar na cara, ou então ensinar a mostrar o que eles não sabem, os inocentes… Não tem mais inocente, não tem. Tem esperto ao contrário, esperto ao contrário tem, mas inocente não tem não.
CONTROLE
Tem o controle remoto superior natural, e tem o controle remoto artificial. O controle remoto é uma força quase igual assim, mais ou menos igual à luz, à força elétrica, a eletricidade, sabe. Agora, é o seguinte, no homem, na carne e no sangue tem os nervos. Os nervos da carne sanguínea vem a ser os fios elétrico. Agora, os deuses, que são os cientistas técnico, eles controlam. Ele vê aonde ele conseguiu. Os cientistas, determinados trocadilos, ele consegue. Porque o controle remoto não queima, torce. O cientista tem o medidor que controla. Igual o ferro, o ferro ali. Aquele que tem os número, tem pra lã, tem pra… é… Tão simples, né?

SOBRE DEUS
Que Deus é esse? Que Jesus é esse, que só fala em guerra e não sei o quê?! Não é ele que é o próprio trocadilo? Só pra otário, pra esperto ao contrário, bobado, bestalhado. Quem já teve medo de dizer a verdade, largou de morrer? Largou? Quem ando com Deus dia e noite, noite e dia na boca ainda mais com os deboches, largou de morrer? Quem fez o que ele mandou, o que o da quadrilha dele manda, largou de morrer? Largou de passar fome? Largou de miséria? Ah, não dá!

LUCIDEZ
Tem o lúcido, daquele que eu escrevi lá. Que o lúcido é isso aqui. Tem o ciente. O ciente é o saber, do qual Jesus não sabe ler, nem escrever, mas ele aprendeu toda coisa de tanto ele ver o lucidar. “A tua lucidez não te deixa ver…”. A inlucidez e a lucidez. A lucideze e a inlucidez. Tá bom. E o sentimento, né? Consciente, lúcido e ciente e tem o sentimento. Tá bom. O que fica pegando a… colhendo, gravando, é o sentimento.

TRABALHO
Foi combinado alimentai-vos o corpo com o suor do próprio rosto, não foi com sacrifício. Sacrifício é uma coisa, agora, trabalhar é outra coisa. Absoluto. Absoluto. Eu, Estamira, que vos digo ao mundo inteiro, a todos, trabalhar, não sacrificar.

COMUNISMO
Todos homens tem que ser iguais, tem que ser comunistas. Comunismo. Comunismo é a igualidade. Não é obrigado todos trabalhar num serviço só, não é obrigado todos comer uma coisa só, mas a igualidade é a ordenança que deu quem revelou o homem o único condicional, e o homem é o único condicional seja que cor for.

TERRA
A Terra disse, ela falava, agora que ela já tá morta, ela disse que então ela não seria testemunha de nada. Olha o quê que aconteceu com ela. Eu fiquei de mal com ela uma porção de tempo, e falei pra ela que até que ela provasse o contrário. Ela me provou o contrário, a Terra. Ela me provou o contrário porque ela é indefesa. A Terra é indefesa.
A minha carne, o sangue, é indefesa, como a Terra; mas eu, a minha áurea não é indefesa não. Se queimar os espaço todinho, e eu tô no meio, pode queimar, eu tô no meio, invisível. Se queimar meu sentimento, minha carne, meu sangue, se for pra o bem, se for pra verdade, pra o bem, pela lucidez de todos os seres, pra mim pode ser agora, nesse segundo, e eu agradeço ainda.

ABSTRATO
Eu Estamira sou a visão de cada um.
Ninguém pode viver sem mim. Ninguém pode viver sem Estamira. E eu me sinto orgulho e tristeza por isso. Porque eles, os astros Negativos ofensivos, sujam os espaço e quer-me. Quer-me, e suja tudo.
A criação toda é abstrata. Os espaço inteiro é abstrato. A água é abstrato. O fogo é abstrato. Tudo é abstrato. Estamira também é abstrato.
(Textos retirados do site: www.estamira.com.br)

terça-feira, 5 de junho de 2007

Poder, Direito e Cultura: esboço sobre as obras de Foucault, Bourdieu e Geertz

Por: LUCIANA PÊSS (estudante de Ciências Sociais, disciplina Antropologia e Direitos Humanos da UFRGS)

Em seu texto “A Governamentalidade”, Foucault reconstrõe historicamente o surgimento do problema específico da população. Neste esforço de historicização, ele apresenta e contrapõe duas teorias que operaram ao longo da história enquanto estratégias diferenciadas de poder: as “teorias da soberania” e as teorias da arte de governar. Podemos perceber, nas críticas apresentadas por Foucault às teorias da soberania, alguns pontos muito importantes referentes ao entendimento que este autor tem da problemática do poder. Segundo o autor, a análise em termos de poder não deve postular, como dados iniciais, a soberania do Estado, a forma da lei ou a unidade global de uma dominação, pois estas são apenas suas formas terminais. Ele explicita assim seu pressuposto de que se deve compreender o poder, primeiro, como a multiplicidade de correlações de força imanentes ao domínio onde se exercem e constitutivas de sua organização.
Segundo Foucault o poder se exerce a partir de inúmeros pontos e em meio a relações desiguais e móveis. Não é, portanto, algo que se adquira, arrebate ou compartilhe, algo que se guarde ou deixe escapar. Assim temos que a condição de possibilidade do poder não deve ser procurada num foco único de soberania de onde partiriam formas derivadas e descendentes (como, por exemplo, no governo do soberano sobre seu principado) , ao contrário, é o suporte móvel das correlações de força que, devido a sua desigualdade, induzem continuamente estados de poder, localizados e instáveis (existem muitos governos e muitos poderes - pode-se governar uma casa, uma alma, uma criança, uma província, uma ordem religiosa, uma família -em relação aos quais o do príncipe governando seu Estado é apenas uma modalidade.). O poder para Foucault produz-se a cada instante em toda relação entre um ponto e outro, não é uma instituição nem uma estrutura, não é uma certa potência de que alguns sejam dotados, ele está em toda parte, provém de todos os lugares.
Em contraposição à Foucault, Bourdieu diz que seu intuito não é ver o poder em todos os lugares, mas vê-lo onde ele é mais completamente ignorado e, portanto, reconhecido, nos símbolos. Partindo da idéia de que o poder invisível dos símbolos só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem, Bourdieu empreende seus estudos para demonstrar a função integradora e – principalmente – política do símbolo. Segundo o autor, o poder simbólico é produzido no interior dos campos sociais, materializado em diversos tipos de capitais. Desta forma, os agentes detêm poder na medida em que são dotados do capital específico do campo em que estão inseridos.
O campo jurídico é, segundo Bourdieu, “o lugar de concorrência pelo monopólio de dizer o direito” no qual se defrontam agentes investidos de competência social e técnica, que consiste na capacidade reconhecida de interpretar um corpus de textos que consagram a visão legítima, justa, do mundo social. Bourdieu aponta para a existência de uma disputa interna ao campo jurídico – a disputa entre teóricos e práticos – e uma disputa externa ao campo – a disputa entre profissionais e profanos – caracterizada pelo esforço contínuo por parte dos profissionais de fundamentar a cisão entre eles e os profanos, indivíduos não inseridos no campo, despossuídos de capital jurídico.
Neste sentido, o trabalho de racionalização é um meio de “aumentar cada vez mais o desvio entre os vereditos armados do direito e as intuições ingênuas da equidade e fazer com que o sistema das normas jurídicas apareça aos que o impõem e mesmo aos que a ele estão sujeitos, como totalmente independente das relações de força que ele sanciona e consagra” (Bourdieu, 1989, p.212). A racionalização, compreendida enquanto utilização de uma linguagem diferenciada e demonstração de competência técnica por parte dos operadores de justiça, ilustra, portanto, a presença do poder simbólico nos rituais jurídicos[1], o que confere às decisões judiciais a eficácia simbólica exercida por toda a ação quando, ignorada no que tem de arbitrário, é reconhecida como legítima.
Bourdieu entende que os símbolos são os instrumentos por excelência da integração social, pois enquanto instrumentos de conhecimento e comunicação, permitem o consenso acerca do sentido do mundo social, o que contribui fundamentalmente para a reprodução da ordem. É, da mesma forma, enquanto instrumentos estruturados e estruturantes de comunicação e de conhecimento que os sistemas simbólicos cumprem a sua função política de imposição ou legitimação da dominação, que contribuem para assegurar a dominação de uma classe sobre a outra. Assim, o poder simbólico é um poder de construção da realidade e as produções simbólicas são instrumentos de dominação.
Já Foucault, aborda o potencial produtivo do poder em outros termos. Ele sugere que pensemos o poder em termos de sua positividade, o que significa dizer que o poder não apenas restringe, proíbe, mas sobretudo cria. Segundo Foucault é o biopoder que produz os sujeitos. Neste sentido afirma que as relações de poder são, ao mesmo tempo, intencionais e não subjetivas, não há poder que se exerça sem uma série de miras e objetivos, entretanto não devemos buscar a equipe que preside sua racionalidade, nem a casta que governa, nem os grupos que controlam os aparelhos de Estado; a racionalidade do poder é a das táticas muitas vezes bem explícitas no nível limitado em que se inscrevem que, encadeando-se entre si, invocando-se e se propagando, encontrando em outra parte apoio e condição, esboçam finalmente dispositivos de conjunto (a lógica é clara e as miras decifráveis), porém neste ponto parece já não haver mais ninguém para tê-las concebido e poucos para formulá-las. Podemos ver claramente aqui outro contraponto entre Foucault e Bourdieu: Enquanto para o segundo o poder simbólico é um instrumento de dominação, que produz o discurso dominado e o dominante, para o primeiro o poder vem de baixo, não há no princípio das relações de poder uma oposição binária e global entre dominadores e dominados, não há discurso dominado e dominante, mas uma complexa rede de relações capilares de poder, na qual o símbolo é apenas um instrumento.
A antropologia interpretativa de Clifford Geertz também toma o direito como objeto, assim como Bourdieu, mas o faz, obviamente, a partir de uma perspectiva diferente. Os sujeitos, que não encontram espaço algum na análise de Foucault, adquirem grande relevância na perspectiva de Geertz, na medida em que a análise interpretativa parte de três pontos chave: o contexto (onde, em que época e inscritos em que sistema cultural estão os nativos, quais as redes de significado que os permeiam), os atores sociais (quem são os nativos e de que forma estão situados nesta rede) e as formas simbólicas (veículos de expressão dos significados em jogo, formas culturais “com que” e “através das quais” os nativos falam). Assim, ao estudar os sistemas jurídicos, Geertz concentra sua visão no significado, no modo como os atores sociais fazem sentido daquilo que fazem.
Segundo Geertz, o direito aqui, acolá, ou em qualquer parte do mundo, é parte de uma forma específica de imaginar a realidade. Assim, o autor apresenta uma perspectiva segundo a qual fatos e leis não estão polarizados, mas estão, ao contrário, intimamente relacionados - na medida em que os fatos são construídos socialmente por todos os elementos jurídicos, que dizem respeito a uma forma específica de imaginar a realidade, da qual o direito, e portanto as leis, é parte - e ilustra sua visão do direito enquanto um artesanato local, que apresenta um mundo no qual suas próprias descrições fazem sentido.
Neste sentido, parece pertinente argumentar que o que está em jogo para Geertz não é o poder tal como o vemos em Bourdieu ou Foucault. O ponto central para este autor não são as correlações de força, as relações de poder ou as disputas por capital, Geertz foca sua atenção na maneira pela qual as instituições legais traduzem a linguagem da imaginação para a linguagem da decisão, criando assim um sentido de justiça determinado. E este fenômeno, que é, aliás, a base de toda a cultura, é o processo de representação. “A descrição de um fato de tal forma que possibilite aos advogados defendê-lo, aos juízes ouvi-lo, e aos jurados solucioná-lo, nada mais é que uma representação”, a representação jurídica do fato, na qual “trata-se basicamente, não do que aconteceu, e sim do que aconteceu aos olhos do direito”.
Apesar de não trazer contribuições para as análises em termos de poder, Geertz nos fornece, ainda assim, uma perspectiva interessante para pensar a temática da implantação e construção de direitos. Se é verdade que o direito é um artesanato local, que funciona a luz do saber local, e é portanto parte de uma maneira específica de imaginar a realidade; e que as instituições legais criam uma sensibilidade jurídica determinada ao traduzir a linguagem da imaginação (linguagem do “se então” das normas genéricas) para a linguagem da decisão (linguagem do “como portanto” dos casos concretos), podemos concluir que a implantação e construção de direitos só pode concretizar-se na medida em que estes direitos “novos” dialoguem com os sentidos de justiça determinados de cada cultura, façam sentido dentro da visão de mundo específica daquela sociedade.
[1] Outros símbolos que conferem eficácia e legitimidade aos rituais de julgamento são a vestimenta e a hexis corporal dos juízes, promotores e advogados, bem como a disposição espacial dos lugares na sala de audiências.

segunda-feira, 4 de junho de 2007

O que aconteceria se os ricos tivessem mais filhos e os pobres menos filhos?

Entrevista com Marcelo Medeiros
Economista com doutorado em Ciências Sociais pela UnB, coordenador do Centro Internacional de Pobreza da ONU no Ipea. Autor de: MEDEIROS, Marcelo . O que faz os ricos ricos: o outro lado da desigualdade brasileira. São Paulo: Hucitec, 2005.

ÉPOCA - A grande sacada de sua tese foi inverter o foco e estudar os ricos para discutir desigualdade. Parece óbvio, mas nunca tinha sido feito. Como teve a idéia?
Marcelo Medeiros - A idéia básica é o seguinte: o grande problema do Brasil é a desigualdade. Para reduzi-la é preciso redistribuir a renda. A questão era que conhecíamos bem o grupo que vai receber os recursos, mas conhecíamos pouco o grupo que vai ceder os recursos. Se a gente quer de fato reduzir a desigualdade, vamos ter de chegar ao grupo dos mais ricos. Não se trata de deixá-los sem renda nenhuma, não vamos ter de fazer uma expropriação de todas as riquezas, mas eles vão ter de ceder recursos. É indiscutível isso.

ÉPOCA - É difícil estudar os ricos?
Medeiros - Tive de enfrentar uma série de problemas metodológicos para chegar até eles. Eu precisava de uma definição de ricos. Optei por criar uma linha de riqueza. Mas, se existe controvérsia para a linha de pobreza, ela é muito maior numa linha de riqueza. As pessoas têm dificuldade para aceitar o que é uma pessoa rica. Então tive de usar princípios muito sólidos e uma idéia muito simples. Criei uma linha de riqueza definida a partir dos pobres e da desigualdade. Nunca tive a pretensão de dar uma resposta definitiva. Queria dar o primeiro passo. Hoje, a linha da riqueza estaria em torno de R$ 3.500 per capita. Em uma família de quatro pessoas, estaríamos falando de uma renda de cerca de R$ 14 mil. Esses podem não ser ''os ricos'', mas são ''os mais ricos'', o 1% da população que detém 11% da renda. São o grupo prioritário para ceder recursos.

ÉPOCA - Sempre que você apresentava o trabalho, havia protestos. Se, por princípio, numa sociedade capitalista a maioria quer ser rica, por que eles não querem ser reconhecidos como ricos?
Medeiros - As pessoas sempre reagem diante da definição de rico. Pesquisas realizadas em outros países mostram que, quando é pedido que as pessoas se classifiquem entre pobres, classe média e ricos, elas tendem a se classificar no meio. Os pobres como classe média e os ricos também. O que fazem é usar eufemismos para justificar sua posição. Os pobres dizem que são da classe média baixa, os ricos da classe média alta.

ÉPOCA - O que está por trás disso?
Medeiros - Não querer se entender como elite numa sociedade desigual. Só há duas escolhas: ou você aceita a desigualdade, ou aceita que é elite e tem a responsabilidade de reduzir a desigualdade, o que vai implicar algum tipo de perda. Falar de riqueza implica falar de redistribuição e implica reduzir privilégios, reduzir vantagens de quem está no poder. A reação de quem vai perder é imediata.

ÉPOCA - Você desmonta vários mitos sobre a origem da riqueza…
Medeiros - Eu senti que o debate sobre redistribuição de renda no Brasil enfrentaria uma discussão de caráter moral antes de enfrentar uma discussão de caráter técnico. As pessoas vão dizer que são ricas por merecimento: ''Eu mereço porque trabalhei muito, porque estudei, porque me esforço etc.'' O que eu faço é testar essas grandes explicações. Constato, por exemplo, que os pobres trabalham tanto ou mais que os ricos. Provo do ponto de vista quantitativo, com dados do IBGE, que contemplam todos os trabalhadores brasileiros, inclusive os informais. Depois testo se são ricos porque botam mais pessoas no mercado de trabalho, se é porque recebem mais aposentadorias e pensões, se é porque têm mais educação etc. Testo cada uma dessas grandes justificativas e provo que elas não explicam a riqueza.

ÉPOCA - O que explica, então?
Medeiros - Os resultados do trabalho não permitem dizer por que os ricos são ricos. Permitem derrubar uma série de explicações clássicas sobre por que os ricos são ricos. É possível especular. Uma possibilidade forte é o fato de terem educação de elite e conseguirem ocupar os melhores postos de trabalho. Mas seguramente não é só isso. Eles têm uma boa rede de relações, o que permite o acesso aos melhores postos de trabalho, começar a carreira numa posição mais elevada. Receberam uma série de heranças, não só financeira. Existe um fenômeno de reprodução das elites ao longo das gerações. Comparado com os padrões de mobilidade social em vários países do mundo, o brasileiro não é alto. É muito difícil que alguém que não é rico se torne rico no Brasil.

ÉPOCA - Qual é a importância política de jogar o foco sobre os ricos?
Medeiros - A discussão da desigualdade no Brasil sempre foi muito calcada na idéia de que você vai reduzir desigualdade via educação. Esse é o primeiro ponto forte. O segundo é que você não tem de dar o peixe, mas ensinar a pescar. Mas há duas questões que precisamos entender. Educação é crucial para a sociedade brasileira, mas o impacto da educação sobre a desigualdade vai demorar décadas para ser sentido porque é investimento de longo prazo. Mesmo que a gente eduque as crianças num sistema educacional perfeito, leva décadas até que essas crianças bem educadas sejam maioria no mercado de trabalho. E a gente tem um problema de curto prazo para resolver. Política de assistência é crucial para o combate da pobreza no curto e médio prazo. As pessoas precisam entender que por dez, 20 anos vai ser fundamental dar o peixe enquanto se ensina a pescar.

ÉPOCA - Nesse sentido, seu trabalho quebrou fantasias bem arraigadas no senso comum e mesmo na academia…
Medeiros - Mais do senso comum que da academia. Existiam algumas fantasias no Brasil sobre o que vai acabar com a pobreza e reduzir a desigualdade. Uma delas é que as mulheres são pobres porque têm muitos filhos. Só 3% das famílias brasileiras têm mais que três filhos com menos de 10 anos, sinal de que as pessoas já têm poucos filhos, não é preciso aumentar o controle da população. Bate-se muito nessa tecla porque isso transfere para os pobres o problema da pobreza. São pobres porque tiveram muitos filhos. É confortável acreditar nisso. Por outro lado, você pode justificar que é rico porque foi responsável e teve poucos filhos. Então eu vou e testo. O que aconteceria se os ricos tivessem mais filhos e os pobres menos filhos? E a resposta é evidente. O tamanho das famílias dos ricos é bem próximo ao da massa das famílias brasileiras. O fato de sua família ser metade da família do outro não explica por que você tem uma renda 27 vezes maior.
(Entrevista publicada na Revista Época, disponível on line: http://revistaepoca.globo.com/Epoca/0,6993,EPT868921-1666,00.html
Reportagem enviada pela aluna Ana Paula Arosi - disciplina Antropologia e Direitos Humanos)

Debate: as produções antropológicas brasileiras sobre direitos humanos e a divisão de trabalho antropológico -

Por: MOISÉS KOPPER (aluno de Ciências Sociais - disciplina Antropologia e Direitos Humanos da UFRGS)

A argumentação de Daniela Cordovil dos Santos que discrimina a antropologia em termos de centro e periferia tem sua gênese no pressuposto mais genericamente foucaultiano de que a ciência não somente está implicada e atravessada de relações de poder e saber num dado contexto social, como também é, por vezes, determinada por esta trama institucional, cultural e política em que ela é produzida. Por outros termos, esta relação de poder entre países de centro e periferia, na arena geopolítica internacional, é igualmente responsável pelo tipo de percepção dos antropólogos centrais e periféricos – no âmbito da disciplina – acerca da categoria direitos humanos. Desta forma, o dilema intelectual precípuo dos países periféricos tem consistido em “domesticar” uma ciência comprometida com sua matriz de pensamento ocidental, de maneira a adequá-la a suas próprias tradições intelectuais e sua concretude sócio-cultural, o que, por sua vez, tem incidência, no caso do Brasil, sobre a compreensão dos antropólogos acerca da categoria direitos humanos, bem como sobre a área das relações internacionais, por intermédio de conseqüências político-pragmáticas manifestas.
Operou-se, no Brasil, um apartamento com relação ao princípio que caracterizou a disciplina nos países centrais, pelo menos nas suas primeiras décadas: o estudo de sociedades diferentes daquela do observador. Em última instância, está-se diante da especificidade ética de que o papel dos antropólogos brasileiros voltados para o estudo de sua própria sociedade como cientistas sociais confunde-se com o seu lugar de cidadão nacional. Deste fato decorre o engajamento peculiar da antropologia brasileira com questões políticas, principalmente aquelas relacionadas com a construção da nação. Duas inferências podem ser deduzidas destas constatações. Em primeiro lugar, por ser um conhecimento, digamos, explicitamente interessado, há um maior risco de cair facilmente numa naturalização das questões estudadas, transformando, de maneira um tanto apressada, problemas sociais em questões teóricas. Os valores do pesquisador precisam sofrer uma vigilância epistemológica ainda mais rigorosa do que quando o grau de envolvimento com o objeto é mais distante. Por outro lado, este envolvimento com questões de valores pode também ser salutar, já que implica o desenvolvimento de uma ética própria às ciências sociais brasileiras, a qual deve levar em conta os interesses dos grupos estudados, capaz de intermediar o difícil diálogo entre as minorias e o Estado.
Neste contexto de um estilo antropológico nacional se forja a apropriação da categoria direitos humanos. Isto é, também aí alguns problemas da especificidade brasileira se franqueiam. Em primeiro lugar, trata-se do pouco interesse em discutir questões de direitos humanos fora do Brasil. Por outro lado, esta característica beneficia-se de longa tradição em lidar com questões nacionais, pois se podem identificar novos problemas a partir de antigas questões. Tudo isto implica que nossos antropólogos podem estar mais capacitados e mais envolvidos na elaboração de princípios éticos de convivência entre o Estado nacional brasileiro e as populações desprivilegiadas no Brasil. Mas, por outro lado, com esta tradição de conhecimento somos vítimas de limitações impostas a nossa prática acadêmica que datam desde a origem da antropologia enquanto disciplina acadêmica. Trata-se, aqui, de uma verdadeira divisão do trabalho que se reporta à distinção entre antropologias periféricas e centrais, onde as primeiras atuam muitas vezes como reprodutoras de modelos teóricos e campos de observação para antropólogos de países centrais.

Nesse contexto se enquadram, pois, duas produções etnográficas que pretendo excogitar em linhas gerais, a saber, Novas Configurações: direitos humanos das mulheres, feminismo e participação política entre mulheres de grupos populares porto-alegrenses, de Alinne Bonetti; e Os Direitos dos Outros e Outros Direitos: um estudo sobre a negociação de conflitos nas DEAMs/RJ, de Jacqueline Muniz. Ambas as produções parecem se submeter à análise de Cordovil dos Santos: a antropologia brasileira, na situação de periferia, operacionaliza e introjeta conceitos advindos do centro, reproduzindo modelos teóricos e sintetizando-os criativamente às conjunturas sócio-culturais locais específicas do caso brasileiro; e não somente isto: esta parece ser a lógica que preside a formação do próprio objeto antropológico em âmbito histórico. Isto atesta, outrossim, as relações de poder que subjazem às produções científicas e, de maneira ainda mais genérica, estão no seio das vinculações internacionais entre países periféricos e centrais. Da mesma forma, a aferição destes estudos empíricos e suas respectivas ilações torna patente a peculiaridade da relação epistemológica de sujeito e objeto, no caso brasileiro, que, não descurando o perigo de se incorrer em naturalizações e subsunções das questões estudadas, parece ter sido aplicada de forma a levar em conta os interesses dos grupos interessados, intermediando os diálogos entre os saberes locais e as estruturas institucionais estatais.
Tomemos, num primeiro momento, os obstáculos ou tensões surgidas a partir do confronto de diferentes universos simbólicos de interação: de um lado, feministas organizadoras do curso de Formação de Promotoras Legais Populares (PLPs) – mulheres das camadas médias urbanas, intelectualizadas, informadas por valores do ideário individualista moderno; de outro, as participantes do curso – mulheres das camadas populares urbanas, com baixa escolaridade –, por sua vez informadas por valores constituídos pela preeminência da família, do parentesco, das redes de sociabilidades e do código relacional de reciprocidade. A autora, preterindo e rechaçando uma interpretação em termos de limites do processo de cidadanização – advindo desse confronto entre valores universalistas da modernidade e os valores locais que dão sentido ao universo social das camadas populares urbanas –, se propõe argumentar que há, no caso das PLPs atuantes, uma apropriação significativa de alguns elementos do ideário feminista (e portanto universalista moderno), resultando numa forma peculiar de participação política e de aquisição de cidadania. Isto não significa outra coisa, senão que há uma ressemantização e reordenação criativa de um conjunto sistêmico de valores recebidos – ou infundidos – do centro; igualmente, este exemplo etnográfico de postura metodológica e epistemológica, denota preocupação pelas significações êmicas dos fenômenos sociais, alocando a ciência antropológica enquanto mediadora de processos cuja especificidade reside na manipulação e apropriação valorativa de diferentes universos simbólicos com vistas à consecução de seus próprios fins. Isto significa, em termos empíricos, que as PLPs atuantes, ao contrário de estarem reclamando por um lugar dentro do movimento feminista, estão se utilizando de um recurso discursivo que sabem ser de alto valor social dentro dos espaços semânticos do campo político pelo qual circulam. Com isto revelam, além do domínio de diferentes códigos culturais, a busca por um lugar dentro do campo político a fim de terem reconhecimento e legitimidade para seu trabalho e assim, realizando seus projetos individuais, através de uma mudança de status social traduzido na aquisição de prestígio, capital simbólico e, eventualmente, de capital financeiro.
Outro caso ilustrativo encontramos em Jacqueline Muniz, em que também o leitmotiv parece ser o termo negociação de verdades e ordens simbólicas. O que acontece, nesses casos, é que para um conjunto expressivo da clientela atendida pelas Delegacias Especiais de Atendimento à Mulher, a justiça oficial apresenta-se como uma realidade distante, inacessível e até mesmo ininteligível. As agências policiais são objetos, com o sistema judicial, destes sentimentos de desconfiança. Entretanto, elas são reconhecidas como o espaço público disponível para a resolução de conflitos. O arbitramento extra-oficial convive, ao mesmo tempo em que destoa das práticas discricionárias da polícia, tradicionalmente exercidas contra a clientela que solicita seus serviços. No exercício ilegal de negociação de litígios, a polícia, ao contrário do que ocorre nas suas ações repressivas, conta com a cumplicidade voluntária dos demandantes. Tudo isto mostra que o Estado Brasileiro, próximo à virada do século XXI, não conseguiu monopolizar a produção e distribuição da justiça: desde o Império a justiça não tem se apresentado como o lócus privilegiado de resolução da conflitualidade. Trata-se, por conseguinte, de mais um arquétipo que ilustra a idéia de Cordovil dos Santos, respeitante à recolocação de valores eminentemente importados à periferia, isto é, advindos do centro, mas adaptados criativamente ao contexto local. A justiça tradicional, enquanto um elemento constituinte do ideário universal moderno, não dá conta de subsumir, circunscrever e açambarcar a totalidade dos casos, litígios e situações possíveis na sociedade brasileira. Donde se pode concluir que a descrença na eficácia simbólica deste imaginário jurídico clássico parece ocorrer não só em virtude de sua atuação historicamente seletiva e excludente, como também pelo fato de que certos litígios não são reconhecidos como delitos pelo mundo jurídico, o que evidencia a existência de obstáculos e casuísmos históricos presentes no diálogo entre Estado e sociedade.
Ora, a compensação deste hiato tem sido equacionada através da constituição, ampliação e implementação de espaços públicos informais de negociação de conflitos, em grande medida preenchidos pelas instituições policiais. Mas uma certa abertura para o exercício de práticas não-oficiais não se explica apenas pelas características da demanda e seus interesses específicos e emergenciais. Ela também se reporta à interpretação policial de suas atribuições oficialmente instituídas: existem paradoxos e dilemas existentes na organização e prática policiais que favorecem as atuações “ilegais”, inaugurando, assim, espaços de interpretação e aplicação autônomas da lei, adequando o rigoroso universo da legalidade às singularidades das práticas e experiências policiais. Em síntese, os próprios fundamentos legais parecem contribuir para que as agências policiais se convertam numa espécie de híbrido institucional mimetizador de funções e práticas regimentais distintas. Assim, não é incomum que as DEAMs, acatando os interesses das partes, atuem em certos litígios como se estes não constituíssem um crime de ação pública.
Não obstante, o que se observa é uma relação de complementaridade das agências policiais, no “desvirtuamento” de suas funções, com o tradicional modelo jurídico brasileiro. Nesse sentido, a instituição policial acaba por substituir a legalidade pela legitimidade de suas decisões: estas mesmas decisões se encontram respaldadas pelos interesses emergenciais da demanda. Tudo isto nos faz reportar a um outro direito no interior do direito estatal oficial, remetendo à noção de pluralismo jurídico, isto é, uma espécie de polissemia semântica que faz aparecer múltiplos eixos de significados, espacialidades no interior do campo significacional do mundo jurídico. A vida sócio-jurídica, nos tempos da modernidade, apresenta-se como um lugar de cruzamento entre diferentes fronteiras jurídicas. É precisamente esta intersecção, um tipo de manifestação fenomenológica do pluralismo jurídico, que se pode qualificar de interlegalidade. Sem correr o risco de descaracterizar o mundo jurídico formal, esta noção incorpora a desfuncionalidade presente na vida moderna e permite que outras práticas de negociação e resolução de litígios possam ser investigadas e adjetivadas como “jurídicas”. Uma outra virtude que merece ser evidenciada é que esta perspectiva, ao iluminar as juridicidades informais, contribui para o esclarecimento dos problemas que obstacularizam a relação entre a justiça e a população.
Estas são todas perspectivas que se entrecruzam ao colocar a ciência – em especial a antropologia – enquanto parte constitutiva e construtiva da sociedade e de universos simbólicos específicos. Nesse sentido, uma análise da própria realidade, como foi a característica precípua da ciência social brasileira, também colocou os aportes imprescindíveis à fragmentação e dissolução da clivagem dicotômica entre o “nós” que tão prontamente opomos aos “outros”, problematizando a familiaridade com que têm sido tratados pelos antropólogos e outros cientistas sociais (DEBERT, 1997). Um outro aspecto intrínseco às produções etnográficas excogitadas aqui e que as põem em consonância com as proposições de Cordovil dos Santos, parecem ser os corolários do que se convencionou chamar de antropologia pós-moderna. Mostrou-se assim como a autoridade do antropólogo é construída, operou-se uma revisão definitiva da idéia das culturas como totalidades autônomas e integradas e, sobretudo, recolocou-se no coração da disciplina a importância da crítica cultural. Entretanto, um problema que permaneceu e que talvez seja menos evidente é o quanto somos nativos das nossas próprias culturas e sociedades, quanto os nossos conceitos sobre elas são o que Geertz chama de “concepções de experiência próxima”. Isto importa, antes de qualquer coisa, em aplicar um princípio da própria crítica pós-moderna: mais do que fazer uma antropologia pós-moderna, cumpre fazer uma antropologia da pós-modernidade. Para Debert, a antropologia, como ratificam as etnografias aqui analisadas, está especialmente bem colocada para fazer face a esse convite, que envolve um conhecimento mais elaborado do “nós” e das formas específicas que a dominação assume contemporaneamente. Contudo, atender a esse convite exige reformulações na forma em que o trabalho antropológico vem sendo tradicionalmente realizado; demanda também revisões nos instrumentos metodológicos e nos pressupostos éticos com os quais temos trabalhado. Novamente, o material etnográfico analisado até aqui contribui para materializar estas expectativas. Sobretudo a noção de “intermediários culturais”, a impossibilidade de demarcação de um lugar específico para o fazer antropológico, e a obliteração da clivagem clássica entre antropólogo e objeto, me parecem suficientemente esquadrinhadas ao longo deste texto.