segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Proposta dirigida a elaboração do II Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas.

Exmo Sr. José Eduardo Cardozo
Ministro da Justiça

Proposta dirigida a elaboração do II Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas.

Porto Alegre, 12 de setembro de 2011.

A leitura dos diversos documentos relacionados ao I Plano Nacional de Enfrentamento ao
Tráfico de Pessoas (I PNETP) contou com a intensa interlocução entre profissionais das ciências
sociais, em especial da antropologia e ciência da comunicação, orientados por suas experiências
anteriores de pesquisa direta sobre imigrações contemporâneas, trabalho degradante, dinâmicas de justiça e promoção da dignidade. São parceiros nessas propostas, os pesquisadores do Núcleo de Antropologia e Cidadania do Programa de Pós-Graduação em Antropologia
(NACi/PPGAS/UFRGS-RS) e do Grupo de Pesquisa Mídia, Cultura e Cidadania do
Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação (UNISINOS- RS). Os profissionais que assinam esse documento detêm experiências diretas de pesquisa acadêmica e acesso a pessoas, agentes institucionais e observação da imigração transnacional. Em suas trajetórias profissionais têm observado situações de criminalização, dificuldades de acesso à justiça, bem como uma intensa produção e releituras de imagens veiculadas sobre imigração e tráfico de pessoas contemporaneamente.
O I Plano Nacional de Combate ao Tráfico de Pessoas, promulgado por Decreto Presidencial
(n° 6.347, de 08 de janeiro de 2008) visava uma tríade de ações: prevenção ao tráfico de pessoas, atenção às vítimas, repressão ao crime e responsabilização de seus autores. A OIT (Organização Internacional do Trabalho), nesse sentido, alertou para a compreensão mais ampla do fenômeno, com atenção aos direitos humanos, tomando como base regulações internacionais que entendem que todos são sujeitos de direitos e, portanto, que a exploração – que é a base do tráfico de pessoas em suas diversas configurações - deve ser combatida a partir de normativas fundamentais que assegurem a defesa da dignidade humana, integridade física e direitos de ir e vir.
Neste documento enfatiza-se a necessidade de ampliar a compreensão sobre as dinâmicas da
criminalização do tráfico, considerando a complexidade do fenômeno já identificado na Carta de
Belo Horizonte (2010), que se refere ao tráfico de pessoas como um “crime complexo e
multidimensional”. Entretanto, neste documento se arrolam medidas que consideramos merecer
maior cuidado em vista da complexidade do tema e das dificuldades de tipificação de delito, uma
vez que essas situações podem levar à criminalização de vítimas. Além disso, as ênfases aqui elencadas para o II PNEPT apontam para a adoção de avaliações isentas e periódicas, visando manter uma interlocução ampliada e democrática sobre o andamento da política nacional a ser adotada.
O presente documento é propositivo, uma vez que destaca a adoção de ações pelo II PNETP
no sentido de promover a democratização, tanto do debate e entendimento do tráfico de pessoas, de suas dinâmicas singulares e dificuldades de tipificação – preservando a dignidade dos sujeitos que se submetem ao que é definido pela OIT como trabalhos degradantes –, quanto à democratização dos vetores das ações empreendidas pela esfera pública.

Considerando:

1. Os tratados internacionais relativos aos direitos humanos, dos quais o Brasil é signatário,
concordamos com o princípio básico, já apontado pela OIT, sobre a necessidade de
fortalecer instrumentos legislativos e instâncias de elaboração de ações da política
pública que garantam e auxiliem no combate ao tráfico de pessoas; relembramos que tais
instrumentos devem estar em consonância com a complexidade das situações, mecanismos e relações de exploração. Os termos da Convenção da Organização Mundial do Trabalho, de 1930, número 29 (ratificada pelo Brasil em 1957) já definiam que o tráfico de pessoas possui uma ligação com o trabalho forçado, que é todo “trabalho ou serviço exigido de uma pessoa sob ameaça de sanção e para o qual ela não tiver se oferecido espontaneamente”. São inúmeros os tratados e convenções internacionais pactuados pelo Brasil que enfatizam a necessidade de lutar contra as mais diversas formas de trabalho forçado, exploração e tratamentos cruéis, faces constitutivas do tráfico de pessoas.
2. De acordo com os novos processos que caracterizam o momento atual da sociedade
brasileira, é possível afirmar que os próximos dez anos constituirão um momento chave
para reconduzir a imagem do Brasil no cenário internacional. Ao lado disso, o Brasil tem
despontado como um destino que atinge as expectativas tanto de imigrantes que se
deslocam regionalmente buscando novas perspectivas de vida como também daqueles
advindos de outros territórios sul americanos.
3. As medidas de combate ao tráfico de pessoas devem ser fundamentalmente orientadas
para a proteção dos direitos humanos dos sujeitos migrantes, incluindo-se aí o direito à
liberdade de ir e vir, reprimindo-se os possíveis abusos e violações de direitos advindos
desse trânsito. Entende-se que a circulação de migrantes propriamente ditos não deve ser
subsumida em noções de tráfico e criminalização.

Para o II Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas propomos:

1. Sobre o fluxo de discursos e as incongruências entre as imagens veiculadas do Brasil e o
Tráfico de Pessoas:

-Instituir a atuação de Conselhos Consultivos com representantes do Estado e da sociedade
civil que colaborem na definição de diretrizes para a produção e circulação de imagens sobre o
Brasil em materiais de turismo, propaganda e divulgação a serem veiculados nos meios de
comunicação impressos e digitais e em espaços públicos diversos no país e, principalmente, no
exterior. A atuação do Conselho poderia contribuir para diversificar as representações do Brasil
pautadas em matrizes do tropicalismo, especialmente aquelas que tendem associar o Brasil à
sexualidade ou certos estereótipos étnicos e sexuais.
- Na atuação do Conselho, sugerimos uma atenção especial para a intensificação do fluxo de
imagens e discursos sobre o Brasil que deverá decorrer da realização de grandes eventos como a
Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016. Todavia, para além desses eventos de grande
visibilidade, é necessário criar instâncias de observação e monitoramento da elaboração de imagens sobre o Brasil veiculadas fora do país – na modalidade, por exemplo, de observatórios. Tais instâncias fomentariam o debate sobre essas imagens e sua efetiva contribuição para a prevenção ao tráfico.
- Elaborar materiais impressos e online de subsídios para jornalistas e comunicadores que
atuam em organizações midiáticas e em movimentos sociais, visando à sensibilização e à orientação sobre o tratamento midiático da temática do tráfico de pessoas.
- Criar instâncias de acompanhamento da internet (na modalidade, por exemplo, de
observatórios de estudos) para o desenvolvimento de pesquisa acadêmica sobre as diversas formas de envolvimento e usos do espaço digital (sites, redes sociais, etc.) que possam servir de subsídios para orientar a formulação de políticas e ações institucionais. Entende-se que o espaço digital não deve ser controlado, mas pode ser utilizado para mobilizar ações positivas visando a sensibilização da sociedade civil e dos agentes de estado para a complexidade e desafios tanto de caracterização dos sentidos atribuídos à condição de “vítima” do tráfico quanto à diversidade de dinâmicas que envolvem o trabalho sexual.

2. Das medidas anti-tráfico de pessoas:

- Uma política nacional deve considerar os variados e dinâmicos contextos regionais e as
experiências de homens, mulheres e crianças envolvidos nas migrações contemporâneas, a fim de orientar suas ações institucionais. Sugerimos a criação de instâncias regionais de monitoramento e discussão das realidades particulares da problemática do tráfico de pessoas, assim como o estímulo à produção de encontros e seminários regionais e inter-regionais para a discussão e sensibilização social sobre o assunto. O tráfico de pessoas mantém relações mais complexas com a problemática da migração irregular ou indocumentada e não pode reduzir-se a uma atenção criminalizante dos percursos migratórios.
- Há necessidade de ampliar a discussão dos Protocolos adicionais à Convenção das Nações
Unidas contra a Criminalidade Organizada Transnacional, tais como o Protocolo Contra o Tráfico
Ilícito de Migrantes por Terra, Mar e Ar e o Protocolo de Palermo, a fim de evitar a adoção de
noções essencializadas sobre tráfico e contrabando de pessoas, quando se refere às categorias
mulheres-crianças; migrantes. Sugerimos cuidados redobrados na interação entre o Protocolo de
Palermo e o Código Penal Brasileiro, especialmente no que tange ao tema da prostituição, evitandose a repressão da autoprostituição de maiores de idade (prática legal no Brasil), o que acarretaria possivelmente o aumento da exclusão social e a violação de direitos dos profissionais do sexo. Neste sentido, é importante dar atenção a possíveis contradições entre o Protocolo de Palermo e o Código Penal Brasileiro, pois o Código Penal, em seu artigo 231, define qualquer assistência ao movimento internacional e nacional (231a) de prostitutas estritamente como tráfico de pessoas, sem fazer menção aos conceitos de exploração e de violação de direitos humanos, que orientam a definição do crime de tráfico de pessoas no Protocolo de Palermo.
- O enfrentamento ao tráfico deve ser subsidiado por uma sensibilização de corporações da
segurança pública, juízes, promotores e defensores públicos sobre os tratados internacionais de
proteção aos direitos humanos e a compreensão do princípio pro homini que rompe
incompatibilidades jurídicas, de normativas nacionais e tratados internacionais, em favor da maior proteção das vítimas. Tal debate é imperativo não somente aos operadores do direito. Ele consiste, também, em uma tarefa que deve ser levada aos âmbitos de formação universitária de advogados e introduzida na agenda de outros saberes que cooperam no enfrentamento ao tráfico de pessoas.
- Há necessidade de transparência em todos os atos administrativos que se refiram ao tráfico de
pessoas, não somente na divulgação de dados oficiais, mas também no acesso facilitado a
documentos e procedimentos judiciais e administrativos por parte dos implicados em tais
procedimentos. O princípio da transparência deve abranger não somente os atos judiciais, mas
atingir os procedimentos administrativos que incidem sobre os cidadãos, quando do indiciamento e avaliação do comprometimento das potenciais vítimas.

3. Da democratização das políticas de enfrentamento ao tráfico de pessoas:

- Entendemos que a democratização do debate é uma das garantias para se conduzir a política de
enfrentamento ao tráfico de pessoas de forma democrática, efetiva e duradoura. Portanto, o II Plano deve buscar modos de empreender um amplo processo de consulta e participação de entidades sociais, cujos atores são tidos como potencialmente vulneráveis ao tráfico de pessoas, tais como Organizações Não Governamentais de profissionais do sexo filiadas à Rede Brasileira de Prostitutas e organizações e sindicatos de trabalhadores envolvidos no fortalecimento de sua cidadania e de condições de trabalho dignas. Para um efetivo envolvimento da sociedade civil, há a necessidade de manter a interlocução com uma gama heterogênea e diversificada de agentes, incluindo-se aí trabalhadores que, mesmo exercendo atividades legais são tradicionalmente alvo de preconceitos e estigmas.
- Sugere-se a realização de avaliações periódicas da implementação das ações adotadas pelo II
Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas que possam orientar os redirecionamentos e ajustes necessários dessas ações atendendo a dinâmicas regionais.
- Propomos a incorporação de revisões futuras desse II Plano e a adoção de medidas para
assegurar a democratização do debate, na perspectiva de que sejam refletidos, efetivamente, os
anseios dos diversos setores sociais na formulação e execução de metas e prioridades em torno da temática do tráfico de pessoas.

Assinam esse documento:
Profa. Dra. Denise F. Jardim (Antropóloga/NACi/PPGAS-UFRGS) – denisejardim@yahoo.com.br
Profa. Dra. Denise Cogo (Jornalista e pesquisadora em Ciências da Comunicação – PPGCOM -
UNISINOS-RS) – denisecogo@uol.com.br
Profa. Dra. Patrice Schuch (Antropóloga/NACi/PPGAS-UFRGS) patrice.schuch@uol.com.br;
Ms. Letícia Tedesco (Antropóloga/Doutoranda PPGAS/UFRGS) letodesco@yahoo.com.br
Ms Janaína Lobo (Antropóloga/Doutoranda PPGAS/UFRGS) janaina.lobo@gmail.com
Dra. Fanny Longa (Antropóloga/NACi/UFRGS) - fanny.longa@gmail.com
Ms Paulo Muller (Antropólogo/ Doutorando PPGAS/UFRGS) paulomuller@gmail.com
Bach. Maria Badet/Doutoranda em Comunicação-UAB-Barcelona) maria.badet@gmail.com
Bach. Vitor Richter (Mestrando em Antropologia/PPGAS/UFRGS) vsrichter@hotmail.com
Prof. Dr. Daniel Etcheverry (Antropólogo/PPGAS/UFRGS – UNIPAMPA-RS) Daniel Etcheverry
danieletcheverry1@gmail.com
Bach Alex Martins Moraes (Mestrando em Antropologia/PPGAS/UFRGS) Alex Martins Moraes
alexmartinsmoraes@gmail.com
Profa. Dra Claudia Fonseca (Antropóloga/NACi/UFRGS) claudialwfonseca@gmail.com
Profa. Dra .Marlene de Fáveri (Historiadora, Centro de Ciências Humanas e da Educação - FAED -
Universidade do Estado de Santa Catarina – UDES) mfaveri@terra.com.br
Prof. Dr. Pedro Russi Duarte (PPG em Comunicação/PPG em Desenvolvimento, Sociedade e
Cooperação Internacional/UNB) - pedrorussi@gmail.com
Profa Dra. Sofia Zanforlin (Professora da Universidade Católica de Brasília)
sofiazanforlin@uol.com.br
Ms. Danilo Borges (Universidade Católica de Brasília) daniloborges79@gmail.com
Ms. Lira Turrer Dolabella (Doutoranda em Antropologia - CRIA-IUL/ Lisboa) - liradolabella@gmail.com
Ms. Rodrigo Saturnino (Doutorando em Sociologia no Instituto de Ciências Sociais da
Universidade de Lisboa - ICS-UL/Lisboa) - rodrigo.saturnino@gmail.com
Ms. Fabricio Borges Carrijo (Associação de Pesquisadores e Estudantes Brasileiros na Catalunha) -
fabricio_carrijo@yahoo.com.br
Profa. Dra. Sylvia Duarte Dantas (Núcleo Estudos e Orientação Intercultural
Universidade Federal de São Paulo UNIFESP/Campus Baixada Santista)
sylddantas@gmail.com
Prof. Dr. Igor José de Renó Machado (UFSCar) - igor@ufscar.br
Profa Dra Gláucia de Oliveira Assis (Direção de Pesquisa e Pós-Graduação FAED/UDESC)
Universidade do Estado de Santa Catarina) galssis@hotmail.com
Dra Elisiane Pasini - Doutora em Ciências Sociais (UNICAMP) lispasini@gmail.com
Dra. Denise Teresinha da Silva (Diretora da Unipampa – Campus São Borja - RS) –
denisesilva@unipampa.edu.br
Dra. Adriana Piscitelli (UNICAMP) - pisci@uol.com.br
Ms. Daiani L. Barth (Jornalista e Professora do DEJOR/UNIR/Vilhena- Rondônia) -
daianiludmila@yahoo.com.br
Bach. Lara Nasi (Mestranda em Ciências da Comunicação/ PPGCOM UNISINOS)-
nasi.lara@gmail.com
Prof. Dr. Mohamed ElHajji (ECO-UFRJ) - mohahajji@gmail.com
Dra. Liliane Dutra Brignol (Unifra-Santa Maria – RS) – lilianedb@yahoo.com.br
Paulo Illes - Articulação Sulamericana Espaço Sem Fronteiras e do Centro de Direitos Humanos e
Cidadania do Imigrante - illespaulo@gmail.com
Prof. Dr. Thaddeus Gregory Blanchette -UFRJ-Macaé -Programa de Pós-Graduação em Ciências
Ambientais e Conservação - macunaima30@yahoo.com.br
Profa Ana Paula da Silva – Centro Universitário Augusto Motta - ana51@uol.com.br
Profa Dra. Fabíola Rohden – (PPGAS/UFRGS) - fabiola.rohden@gmail.com

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