quarta-feira, 3 de junho de 2009

As Cotas Desmentiram as Urucubacas

ELIO GASPARI (publicado na Folha de São Paulo, 03/06/2009)

QUEM ACOMPANHASSE os debates na Câmara dos Deputados em 1884 poderia ouvir a leitura de uma moção de fazendeiros do Rio de Janeiro:"Ninguém no Brasil sustenta a escravidão pela escravidão, mas não há um só brasileiro que não se oponha aos perigos da desorganização do atual sistema de trabalho."Livres os negros, as cidades seriam invadidas por "turbas ignaras", "gente refratária ao trabalho e ávida de ociosidade". A produção seria destruída e a segurança das famílias estaria ameaçada.Veio a Abolição, o Apocalipse ficou para depois e o Brasil melhorou (ou será que alguém duvida?).Passados dez anos do início do debate em torno das ações afirmativas e do recurso às cotas para facilitar o acesso dos negros às universidades públicas brasileiras, felizmente é possível conferir a consistência dos argumentos apresentados contra essa iniciativa.De saída, veio a advertência de que as cotas exacerbariam a questão racial. Essa ameaça vai completar 18 anos e não se registraram casos significativos de exacerbação. Há cerca de 500 mandados de segurança no Judiciário, mas isso nada mais é que a livre disputa pelo direito.Num curso paralelo veio a mandinga do não-vai-pegar. Hoje há em torno de 60 universidades públicas com sistemas de acesso orientados por cotas e nos últimos cinco anos já se diplomaram cerca de 10 mil jovens beneficiados pela iniciativa.Havia outro argumento: sem preparo e sem recursos para se manter, os negros entrariam nas universidades, não conseguiriam acompanhar as aulas, desorganizariam os cursos e acabariam deixando as escolas.Entre 2003 e 2007 a evasão entre os cotistas na Universidade Estadual do Rio de Janeiro foi de 13%. No universo dos não cotistas, esse índice foi de 17%.Quanto ao aproveitamento, na Uerj, os estudantes que entraram pelas cotas em 2003 conseguiram um desempenho pouco superior aos demais. Na Federal da B ahia, em 2005, os cotistas conseguiram rendimento igual ou melhor que os não cotistas em 32 dos 57 cursos. Em 11 dos 18 cursos de maior concorrência, os cotistas desempenharam-se melhor em 61 % das áreas.De todas as mandingas lançadas contra as cotas, a mais cruel foi a que levantou o perigo da discriminação, pelos colegas, contra os cotistas.Caso de pura transferência de preconceito. Não há notícia de tensões nos campus. Mesmo assim, seria ingenuidade acreditar que os negros não receberam olhares atravessados. Tudo bem, mas entraram para as universidades sustentadas pelo dinheiro público.Tanto Michelle Obama quanto Sonia Sotomayor, uma filha de imigrantes portorriquenhos nomeada para a Suprema Corte, lembram até hoje dos olhares atravessados que receberam ao entrar na Universidade de Princeton. Michelle tratou do assunto em seu trabalho de conclusão do curso. Ela não conseguiu a matrícula por conta de cotas, mas pela prática de ações af irmativas, iniciada em 1964. Logo na universidade onde, em 1939, Radcliffe Heermance, seu poderoso diretor de admissões de 1922 a 1950, disse a um estudante negro admitido acidentalmente que aquela escola não era lugar para ele, pois "um estudante de cor será mais feliz num ambiente com outros de sua raça". Na carta em que escreveu isso, o doutor explicou que nem ele nem a universidade eram racistas.

quinta-feira, 28 de maio de 2009

Direitos e Antropologias Humanas


Por: Ana Paula Rabelo (estudante de Ciências Sociais na UnB)
Através das leituras realizadas até o momento na disciplina Antropologia e Direitos Humanos, pudemos entrar em contato com um pouco da problemática ao se falar, ao se estudar e ao se aplicar o termo Direitos Humanos. Este tema é constituído por enorme complexidade teórica, pois envolve, na maioria das vezes, intervenções em situações concretas por parte do pesquisador. Partindo do pressuposto de que a pesquisa deve sair do mundo acadêmico por apresentar um caráter potencial de interferência na realidade, acredito que as situações sobre as quais refletimos em sala de aula nos serviram para despertar um olhar crítico sobre a questão.
Para o presente trabalho, decidi apresentar uma análise sobre dois filmes por eles apresentarem temas bastante inquietantes e por suscitarem reflexões que penso serem pertinentes aos conteúdos estudados. Os filmes escolhidos foram A Maçã, de Samira Makmalbaf e Crianças Invisíveis, organizado por sete diretores de diferentes países.
O primeiro deles, iraniano, revelou-se muito interessante ao contar a história real de duas irmãs gêmeas, de 12 anos de idade, que foram mantidas presas em casa por 11 anos pelo pai (já idoso e, poderíamos dizer, “fanático” religioso), o qual justificava o cárcere pelo fato de a mãe das meninas ser cega e não poder cuidar delas enquanto ele saía. Entretanto, essa justificativa não representa todos os reais motivos do pai, pois as meninas nunca haviam saído de casa, sequer acompanhadas. Além disso, o pai fala sobre o trecho do Livro (acredito ser o Alcorão) que apresenta o seguinte conselho para os pais: “uma menina é como uma flor, se o sol brilhar sobre ela, murchará”.
O filme foi dirigido por Samira Makmalbaf, de apenas 17 anos na época, e encontrou alguns obstáculos durante a sua produção, como a constante visita do governo durante as filmagens, que durou somente 11 dias. Os personagens do filme foram interpretados pelos próprios sujeitos da história real, o que faz com que o filme tenha um aspecto de documentário-ficção.
Tudo isso faz dessa história uma metáfora sobre a condição da mulher iraniana: ao mesmo tempo em que sofre com alguns aspectos do sistema religioso, pode apresentar o contraste de uma jovem conseguir realizar uma produção cinematográfica, com um cunho quase denunciatório.
O segundo filme, Crianças Invisíveis, que tem como aliados a UNICEF e o Fundo Mundial de Alimentos, é constituído por sete histórias dirigidas por sete cineastas diferentes: Mehdi Charef (África do Sul), Emir Kusturica (Sérvia-Montenegro), Spike Lee (Estados Unidos), Kátia Lund (Brasil), Jordan Scott e Ridley Scott (Inglaterra), Stefano Veneruso (Itália) e John Woo (China). Cada uma delas narra situações sobre as condições de vida dos países de origem dos cineastas.
O filme dá voz a crianças que na realidade não têm direito a um nome ou a um rosto e que sofrem com as (famosas) violações dos direitos humanos. Mehdi Charef nos mostra, sem identificar o país africano em que se passa a história, uma situação freqüente neste continente quando crianças acabam se envolvendo nas diversas guerras civis, como o jovem Tanza. Emir Kusturica apresenta com humor o caso de um garoto cigano, Urosz, prestes a sair de um reformatório, mas que prefere estar preso ali, protegido, a estar em liberdade, com o “pai” obrigando-o a roubar. Spike Lee retrata a vida de uma garotinha de 13 anos, Blanca, que sofre preconceitos na escola por ser portadora do HIV, o qual foi transmitido a ela pelos pais, viciados. Seu pai é veterano da guerra do Iraque e contraiu a doença ao usar drogas. Kátia Lund nos mostra, com realismo, a pobreza urbana, contando a história de dois irmãos, Bilu e João, que vivem através da venda de materiais recicláveis na cidade de São Paulo. Jordan e Ridley Scott nos apresentam um fotógrafo de guerra, Jonathan, que vive assombrado pelas suas lembranças e que encontra em suas fantasias e memórias de infância um pouco de conforto para seus tormentos. Stefano Veneruso nos descreve a história de Ciro, que vive entre o crime e as brincadeiras nas ruas de Nápoles, longe das brigas em sua casa. Finalmente, John Woo expõe a comovente história de duas garotinhas chinesas, a aguda diferença social que as separa e os acontecimentos que as unem em alguns momentos.
Os curtas-metragem, mais do que retratos, nos servem para despertar o olhar para diferentes formas de violação dos direitos humanos e, principalmente, analisar os diferentes contextos em que ocorrem tais situações.
A partir do exposto, podemos refletir sobre algumas questões levantadas pelos filmes e que se relacionam com as nossas discussões. Ao olhar para essas diferentes histórias, o antropólogo deve, além de analisar as especificidades de cada uma delas, localizá-las dentro dos contextos históricos em que estão posicionadas. CORREA DOS SANTOS (2003) e RIBEIRO (2004), por exemplo, enfatizam bastante a importância de observarmos as origens históricas dos acontecimentos, as ideologias por trás deles e as relações de poder presentes.
Essa autora nos lembra da perspectiva histórica em que se inserem os direitos humanos, uma vez que foram criados a partir de pressuposições e valores claramente ocidentais, envolvendo também uma arena internacional não democrática. Da mesma forma, essas desigualdades estão presentes na prática antropológica. Ela destaca o que chamou de divisão do trabalho intelectual, através da qual a antropologia (e também outras ciências, acredito eu) se divide. De um lado estão as antropologias dos países periféricos, fornecedoras de “matérias-primas”, os dados, e importadoras de teorias que são produzidas pelas antropologias dos países centrais. As teorias e análises provenientes dos países periféricos pouco ou nada contribuem para os outros países.
Isso se manifesta na questão dos direitos humanos, onde podemos perceber que as violações são apenas observadas nos países periféricos, pelos países centrais. Este fato dá margem à reprodução de relações de poder já estabelecidas, nas quais os países centrais possuem a pretensão de explicar e intervir no que ocorre em países periféricos, enquanto estes observam quase que passivamente. As histórias abordadas pelos filmes são bons exemplos de possíveis “matérias-primas”, mas que se constituem por uma enorme diversidade cultural inserida nos atuais contextos econômico e político mundiais.
O que a autora chama atenção é para a dificuldade de se implementarem direitos garantidos internacionalmente em cada realidade local. As violações sistemáticas dos direitos humanos ocorrem devido a uma herança histórica (colonialismo) e a processos atuais de desenvolvimento do capitalismo mundial (neocolonialismo).
O problema está no fato de que as políticas econômicas dos países centrais também são violações dos direitos humanos, mas não são vistas dessa forma, uma vez que os direitos privilegiados nas discussões são os direitos cívicos e políticos. O cuidado deve ser tomado para que a retórica dos direitos humanos não acabe se transformando em mais uma forma de colonialismo e de relação de poder desigual entre centro e periferias. Os textos com os quais pudemos ter contato tentam se aprofundar nesses dilemas apresentados ao se lidar com os direitos humanos.
No que se refere aos filmes analisados, seis das oito histórias se passam em países de periferia. Daí, podemos citar a colocação da autora de que os países de periferia não dialogam sobre o que ocorre dentro das periferias. Se isso ocorresse, daria muito mais legitimidade aos debates e às possíveis soluções. Significaria, portanto, mais voz para esses países e talvez uma minimização das relações de poder dentro da comunidade argumentativa, dando aos interlocutores, maior condição de fala.
Já SCHUCH (2009) nos chama atenção para a forma como os enunciados sobre os direitos humanos são construídos. A Declaração Universal dos Direitos do Homem coloca os indivíduos acima de qualquer tradição cultural e religiosa. Entretanto, como é possível pensar isso em países islâmicos, onde Religião e Política são indissociados? Onde Governo, Lei e Religião se confundem, se não são a mesma coisa? Essa questão também foi levantada por SEGATO (2006), quando ela diz que não há separação entre Igreja e Estado nos países islâmicos e que os direitos humanos são vistos nesses países como uma imposição dos valores ocidentais e como uma continuidade da hegemonia cultural e política do Ocidente.
Mas como agir diante da história real apresentada em A Maçã, onde, devido a uma crença religiosa, duas crianças foram mantidas presas durante quase toda a vida, apresentando quase nenhuma habilidade de fala, de sociabilidade e até dificuldades de locomoção? Além do fator religioso, a questão do gênero também está explícita.
Como agir diante das histórias de Crianças Invisíveis, como a que se passa na África, onde crianças e jovens são envolvidos em guerras civis, quando tais guerras foram provocadas (ou pioradas) pela colonização sofrida por esses países? Colonização esta feita pelos países que formularam a Declaração de Direitos do Homem e que hoje encabeçam a defesa desses direitos nos países onde mais são violados.
Acredito que CORREA DOS SANTOS, tenta imaginar as relações de poder sendo minimizadas dentro da comunidade internacional. Como fazer isso? Todas as propostas apresentadas pelos autores lidos na disciplina esbarram nessa pergunta.
Um ponto importante é o de fazer desses olhares e dessas análises um “jogo de espelhos”, termo de Laura Nader, citada no texto de SCHUCH. Este jogo de espelhos seria um duplo olhar para as violações de direitos humanos, ou seja, olhar para as violações que ocorrem também nos países centrais, considerando que os ativismos destes países nos países onde interferem está revestido por um projeto hegemônico. Essa seria uma tentativa de construir uma forma de conhecimento que leve em conta a distribuição do poder e das ações resultantes do poder.
Desta forma, poderiam ser mais enxergadas situações como as das histórias de Blanca e Jonathan, personagens de Crianças Invisíveis, dos Estados Unidos e da Inglaterra, respectivamente. Blanca é uma garota negra de 13 anos de idade que sofre com o preconceito por ser portadora do vírus HIV. Além disso, seus pais são viciados em drogas, sendo que seu pai é veterano da guerra do Iraque. Jonathan é fotógrafo de guerra e sofre com tudo que já presenciou.
Isso me faz pensar na invasão dos Estados Unidos no Iraque, com o pretexto de levar a “democracia” e os direitos humanos para este país. Ao mesmo tempo em que agem com esse propósito, os meios usados para tal são tão absurdos quanto acreditar que eles têm o “direito” de fazer isso (ou o dever). Por que não se observa que os direitos humanos dos cidadãos estadunidenses obrigados a ir a combate estão sendo violados? Que eles sofrem uma violência enorme ao ter que praticar os atos que praticam na guerra? Que eles voltam para seu país e não conseguem retomar a vida “normal”? Falo isso porque assisti a um documentário (que infelizmente não consegui descobrir o nome) sobre as seqüelas da guerra em soldados estadunidenses, muitos deles cometendo suicídio, apresentando quadros de depressão ou convivendo para o resto de suas vidas com as mutilações de seus corpos. Além disso, os soldados contam diversas histórias sobre o real genocídio que estavam praticando no Iraque.
Apenas no parágrafo acima, podemos observar que a Declaração Universal dos Direitos do Homem apresenta sérias contradições mesmo por aqueles que estão com o discurso de levá-la a todo o mundo (impô-la, se preferirem): “seres humanos (...) libertos do terror e da miséria” (2° parágrafo da Declaração); “encorajar o desenvolvimento de relações amistosas entre as nações” (4° parágrafo); “direito à vida” (Artigo 3°); “ninguém será submetido à tortura nem a penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes” (Artigo 5°); “tribunal independente e imparcial” (Artigo 10°); “ninguém sofrerá intromissões arbitrárias na sua vida privada, na sua família, no seu domicílio ou na sua correspondência, nem ataques à sua honra e reputação” (Artigo 12°) etc. Poderíamos citar muitas outras violações relacionadas à guerra acima citada ou a outras ações deste país (Estados Unidos), como a manutenção durante anos da prisão de Guantânamo, em contradição com o Artigo 9°, no qual “ninguém pode ser arbitrariamente preso, detido ou exilado”.
Dado o exposto, podemos notar a dificuldade em se falar dos Direitos Humanos no cenário atual. Contudo, apresentar soluções é a etapa mais importante dessa discussão (e a mais difícil também).
SCHRITZMEYER (2008) nos chama a assumir todo esse “ocidentalcentrismo” dos Direitos Humanos e buscar alternativas éticas para não nos sentirmos politicamente paralisados. A autora coloca a proposta da adesão crítica de Luís Eduardo Soares, a qual visa reconhecer que intervir em culturas alheias em nome dos direitos humanos (enquanto expressão de valores específicos) constitui uma postura etnocêntrica, mas que tal adesão aponta para a possibilidade de diálogos e negociações, explorando o que esses direitos têm de menos etnocêntricos. Explica que tanto a antropologia quanto os direitos humanos possuem marcas de nascença vinculadas ao colonialismo, ao etnocentrismo (e a outros ismos), mas que a partir do momento em que isto é reconhecido, é possível explorar suas melhores potencialidades. Parece-me interessante também o ponto em que fala sobre a abertura de horizontes particulares, pois isto soa como um objetivo da antropologia em si, a fim de que haja concessões frente a conflitos. O que é esquecido nessa proposta é: quem vai fazer as concessões? Contudo, acredito que ela é bem sensível ao dizer que, nos diálogos intergrupais, é necessária uma tentativa de compartilhar também sentimentos e os diferentes sentidos desses sentimentos, não apenas aquilo que é racionalmente traduzível.
A proposta de RIBEIRO (2004) chama a atenção para o fato de o poder ser exercido por meios simbólicos, entre eles pelo ato de nomear e de categorizar. Várias noções possuem essa marca, como a noção de desenvolvimento e a própria noção de Direitos Humanos. Explica que há particularismos que são usados para exercer hegemonia e outros para se opor a ela, o que pode ser entendido claramente também na temática dos direitos humanos, uma vez que ele, ao mesmo tempo em que pode ser um instrumento de dominação, pode também ser um instrumento de emancipação. O ponto em que discordo de RIBEIRO é quando ele propõe e acredita ser possível um universalismo heteroglóssico que estabeleça certos consensos sobre limites que não podem ser ultrapassados, como é o caso do genocídio, da tortura, do racismo, da xenofobia. Acredito que há um pouco de ingenuidade ao acreditar que esses consensos podem ser estabelecidos, já que existe uma grande dificuldade em se definir cada um desses termos e a sua definição não vai impedir que as relações de poder, tão enfatizadas pelo autor, continuem a operar.
As propostas com as quais mais me identifiquei foram com as de SEGATO (2006) e de SOUZA SANTOS (2000). A primeira delas me parece interessante por ocorrer num plano mais subjetivo, digamos. O impulso ético seria algo que nos faria vislumbrar a reflexão, enquanto indivíduos e enquanto sociedade. Parte do princípio de que os seres humanos não são programados e cômodos, mas estão inseridos em uma historicidade, em um movimento de transformações que parte do nosso desejo por novas possibilidades. Significaria ter a insatisfação como postura filosófica, como ela cita no texto.
Esta proposta se aplicaria ao permitir desafiar nossas próprias pressuposições, desconfiar de nossas crenças e, acima de tudo, permitiria ouvir o outro, não apenas para compreendê-lo, mas para saber o que ele pensa sobre nós, o que espera de nós. A antropologia poderia então contribuir para desenvolver nossa sensibilidade ética, fazendo com que nos desconheçamos no olhar do outro. A partir disso, estranharíamos nosso mundo e poderíamos revisar nossa moral e nossa lei.
Menos filosófica que esta, temos a proposta de SOUZA SANTOS (2000), que tenta identificar condições em que os direitos humanos possam ser postos a serviço de uma política emancipatória, em âmbito global e com legitimidade local. Para tanto, começa descontruindo a noção que temos de globalização como algo único, nos mostrando que, na verdade, ela é um processo que envolve diferentes conjuntos de relações sociais que geram diferentes globalizações. Portanto, existe apenas no plural e pressupõe localizações, ou seja, enfatiza o sentido de local daquilo que não se tornou globalizado.
Para o autor, há quatro modos de produção de globalizações: o localismo globalizado (uma condição local que se torna global), o globalismo localizado (algo local que se torna local), o cosmopolitismo (uso das possibilidades de interação transnacional em prol de interesses comuns) e o patrimônio comum da humanidade (temas de natureza global). Para ele, enquanto os direitos humanos forem considerados como universais, agirão como um localismo globalizado. Sua proposta é no sentido de transformá-los numa forma de cosmopolitismo, o que implica sua reconceitualização como multiculturais.
Suas premissas principais seriam de reconhecer que todas as culturas e todas as versões de dignidade humana são incompletas e que um diálogo intercultural pode levar a uma concepção mestiça de direitos humanos, organizando uma constelação de sentidos locais e formando redes de referências normativas capacitantes. A hermenêutica diatópica agiria não para atingir a completude das culturas, mas para ampliar a consciência de incompletude mútua por meio de um diálogo. O ponto mais importante da hermenêutica diatópica é o da reivindicação da legitimidade local, o que penso ser fundamental.
Acredito que se juntarmos um pouco da cultura de direitos de que fala CORREA DOS SANTOS, a adesão crítica, o impulso ético e a hermenêutica diatópica, poderíamos tornar nosso olhar mais sensível para a questão dos direitos, uma vez que estamos diante de grande pluralidade nas concepções de direito. A partir daí, tentar buscar não uma antropologia, mas antropologias mais humanas, que usem a intervenção como uma das faces da pesquisa (talvez uma face inevitável) e que se articulem com o propósito de transformar as relações de poder existentes. Para tanto, é necessário uma maior união periferia-periferia e antropologia periférica-periferia. Assim, as antropologias que se deparassem com situações semelhantes com as dos filmes, estariam mais preparadas para lidar com questões comuns de violação dos direitos humanos nos países que sofrem com o processo histórico de dominação. A questão do como fazer, sei que não posso responder. Posso apenas sugerir mais ação consciente dessas antropologias em direção ao aumento do diálogo entre as antropologias periféricas, tentando subverter a divisão do trabalho intelectual e tentando nos tornar mais sujeitos da nossa própria história.

Referência Bibliográfica

DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS DO HOMEM – retirada do site www.onuportugal.pt

CORRÊA DOS SANTOS, Daniela. “Antropologia e Direitos Humanos no Brasil”. In: KANT DE LIMA, Roberto (Org.). Antropologia e Direitos Humanos 2. Niterói, Editora da Universidade Federal Fluminense, 2003.

SCHUCH, Patrice. “Entre o real e o ideal: a Antropologia e a construção de enunciados sobre direitos humanos”. In: Práticas de justiça: antropologia dos modos de governo da infância e juventude no contexto pós-ECA. POA, Editora da UFRGS, 2009.

RIFFIOTHIS, Theophilos. “Direitos Humanos: declaração, estratégia e campo de trabalho”. Trabalho publicado no Boletim da Associação Brasileira de Antropologia, n° 30.

SCHRITZMEYER, Ana Lúcia Pastore. A defesa dos direitos humanos é uma forma de “ocidentalcentrismo”? Trabalho apresentado na 26ª Reunião Brasileira de Antropologia. Porto Seguro, 2008.

RIBEIRO, Gustavo Lins. “Cultura, direitos humanos e poder. Mais além do império e dos humanos direitos. Por um universalismo heteroglóssico”. In: FONSECA, Cláudia, TERTO JR, Veriano, e ALVES, Caleb Faria et al. Antropologia, diversidade e direitos humanos: diálogos interdisciplinares. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2004.

SOUZA SANTOS, Boaventura de. “Por uma concepção multicultural de Direitos Humanos”. In: FELDMAN-BIANCO, Bela (org.). Identidades, Estudos de Cultura e Poder. SP, Hucitec, 2000.

SEGATO, Rita Laura. “Antropologia e Direitos Humanos. Alteridade e Ética no movimento de expansão dos direitos universais”. Mana, vol. 12 n° 1. RJ, 2006.

FLEISCHER, Soraya; SCHUCH, Patrice e FONSECA, Cláudia (org.). Antropólogos em Ação: Experimentos de Pesquisa em Direitos Humanos. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2007.

BOURDIEU, Pierre. “A Força do Direito: Elementos para uma Sociologia do Campo Jurídico”. Partes I e II. In: O Poder Simbólico. Difel/ Bertrand Brasil, Lisboa/ Rio de Janeiro, 1989.

SITES COM COMENTÁRIOS DOS FILMES:

http://www.geocities.com/contracampo/amaca.html
http://www.apagina.pt/arquivo/Artigo.asp?ID=3167
http://www.terra.com.br/cinema/festivais/cannes00_samira.htm
http://br.cinema.yahoo.com/filme/13236/critica/9252/criancasinvisiveis
http://www.fm-media.net/news02/1191.htm
http://cinema.uol.com.br/ultnot/2006/03/30/ult26u21237.jhtm
http://outrasviagens.blogs.sapo.pt/15907.html
OBS: Trabalho escrito para a disciplina Antropologia e Direitos Humanos, ministrada pela profa. Patrice Schuch, em 2009/I

terça-feira, 5 de maio de 2009

Eventos em Antropologia/Arqueologia 2009

XXXI Congreso Internacional de Americanística Lugar: Perugia, ItaliaFecha: 5 a 11 de mayo de 2009Más Información

I Jornada de Arqueologia No Cerrado e suas Interfaces com a Arqueologia Brasileira Lugar: Goiás, BrasilFecha: 12 a 15 de mayo de 2009Más Información

Congreso Nacional de Pueblos Andinos Lugar: Tucumán, ArgentinaFecha: 13 a 14 de mayo de 2009Más Información Actualizado 30-ABR-09

IV Jornadas Arqueológicas Cuyanas Lugar: Mendoza, ArgentinaFecha: 20 a 23 de mayo de 2009Más Información

V Encontro Regional Sul de História Oral "Desigualdades e Diferenças" Lugar: Paraná - BrasilFecha: 25 a 28 de mayo de 2009Más Información

III Congreso Internacional Encuentro de Mundos: Pasajes Interculturales Lugar: Rosario, ArgentinaFecha: 27 a 29 de mayo de 2009Más Información

Conferência Internacional Colecções e museus de Geociências: missão e gestão Lugar: Coimbra, PortugalFecha: 5 y 6 de Junio de 2009Más Información

I Congreso Internacional de Arqueología e Informática Gráfica Patrimonio e Innovación Lugar: Sevilla, EspañaFecha: 17 al 20 de junio de 2009Más Información

III Encuentro de Discusión Arqueológica del Nordeste EDAN 2009 Lugar: Santo Tomé, ArgentinaFecha: 24 a 27 de junio de 2009Más Información Actualizado 29-MZO-09

Congresso Internacional de Arte Rupestre IFRAO 2009 Lugar: Parque Nacional Serra da Capivara, São Raimundo Nonato, Piaui, BrasilFecha: 29 de junio al 3 de julio de 2009Más Información Actualizado 29-MZO-09

II Encuentro Argentino y VII Latinoamericano CECA LAC /ICOM.Museos, Educación y Virtualidad. El contexto de América Latina y el Caribe Lugar: Corrientes, ArgentinaFecha: 2 a 4 de julio de 2009Más Información

LIII Congreso Internacional de Americanistas (ICA53) Lugar: México D.F., MéxicoFecha: 19 al 24 de julio de 2009Más Información Actualizado 22-MZO-08

XXIII Congreso Internacional de Arqueología del Caribe Lugar: La Habana, CubaFecha: 19 al 26 de julio de 2009Más Información

XVI Foro Estudiantil Latinoamericano de Antropología y Arqueología - FELAA 2009 Lugar: Coroico - BoliviaFecha: 20 al 25 de julio de 2009Más Información Cambio de SedeAUSPICIA NAyA

I Seminario Internacional sobre Arte Público en Latinoamérica Lugar: Buenos Aires, ArgentinaFecha: 5 a 7 de agosto de 2009Más Información

IX Congreso Nacional de Estudios del Trabajo Lugar: Buenos Aires, ArgentinaFecha: 5 a 7 de agosto de 2009Más Información

IX Congreso Argentino de Antropología Social. Fronteras de la Antropología Lugar: Posadas, Misiones, ArgentinaFecha: 5 a 8 de agosto de 2009Más Información

I Simposio Magistral Sobre Arqueología Colonial Lugar: Cayastá, Santa Fe, ArgentinaFecha: 13 y 14 de agosto de 2009Más Información NUEVO

Congreso Internacional por el IV Centenario de los Comentarios Reales de los Incas Lugar: Cuzco, PerúFecha: 19 al 21 de agosto de 2009Más Información

I Jornadas "Independencia, historia y memoria" Lugar: San Miguel de Tucumán, ArgentinaFecha: 20 al 22 de agosto de 2009Más Información

IV Coloquio de Arqueología. Especialización en técnicas y enfoques recientes aplicados en la Arqueología. Lugar: MéxicoFecha: 24 al 28 de agosto de 2009Más Información

VIII Jornadas de Investigadores en Arqueología y Etnohistoria del Centro Oeste del País Lugar: Rio Cuarto, ArgentinaFecha: 26 al 28 de agosto de 2009Más Información

III Congreso Internacional de Antropología desde la Frontera Sur Lugar: Chetumal, Quintana Roo, MéxicoFecha: 9 a 11 de septiembreMás Información

IV Congresso da APA - Associação Portuguesa de Antropologia Lugar: Lisboa, PortugalFecha: 9 a 11 de septiembreMás Información NUEVO

I Congreso Iberoamericano y VIII Jornada Técnicas de Restauración y Conservación del Patrimonio Lugar: La Plata, ArgentinaFecha: 10 a 11 de septiembreMás Información

XI Coloquio Internacional sobre Otopames Lugar:St. Petersburg, Estados UnidosFecha: 14 a 18 de septiembreMás Información

XV Congresso da Sociedade de Arqueologia Brasileira Lugar: Belém - Pará/Amazônia - BrasilFecha: 20 a 23 de septiembreMás Información

II Coloquio"Estructura y Función Institucional de la ENAH" Lugar: MéxicoFecha: 22 al 24 de septiembreMás Información

III Congreso Argentino de ArqueometríaII Jornadas Nacionales para el estudio de Bienes Culturales Lugar: Córdoba, ArgentinaFecha: 22 al 25 de septiembreMás Información

VIII Reunión de Antropología del Mercosur (RAM 2009). "Diversidad y poder en América Latina" Lugar: Buenos Aires, ArgentinaFecha: 29 de septiembre al 2 de octubre de 2009Más Información Actualizado 29-MZO-09

XIII Congreso de Antropología en Colombia Lugar: Bogotá, ColombiaFecha: 30 de septiembre al 3 de octubre de 2009Más Información NUEVO

I Encuentro Latinoamericano de Zooarqueología Lugar: Bogotá, ColombiaFecha: 1 al 2 de octubre de 2009Más Información NUEVO

I Encuentro de Antropología Biológica en Colombia Lugar: Bogotá, ColombiaFecha: 3 de octubre de 2009Más Información NUEVO

XXIII Reunión Anual Comité Nacional de Conservación Textil Lugar: Tucumán, ArgentinaFecha: 5 al 9 de octubre de 2009Más Información NUEVO

XVIII Congreso Nacional de Arqueología Chilena Lugar: Valparaiso, ChileFecha: 5 a 10 de octubre de 2009Más Información Actualizado 30-MZO-09

IV Congreso Nacional de Arqueología Histórica Argentina Lugar: Luján, ArgentinaFecha: 6 a 9 de octubre de 2009Más Información

III Congreso de Culturas Originarias Lugar: Córdoba, ArgentinaFecha: 7 a 11 de octubre de 2009Más Información NUEVO

VI Encuentro Nacional de Estudiantes y Graduados en Museología Lugar: La Matanza, Buenos Aires, ArgentinaFecha: 8 a 10 de octubre de 2009Más Información NUEVO

IV Jornada Internacional de Didáctica de la Historia, Geografía y las Ciencias Sociales Lugar: Caracas, VenezuelaFecha: 13 a 16 de octubre de 2009Más Información NUEVO

III Congreso de Paleopatología en Sudamérica- PAMinSA III Lugar: Necochea, ArgentinaFecha: 14 a 16 de octubre de 2009Más Información

XV Coloquio Internacional de Antropología Física "Juan Comas" Lugar: Mérida, Yucatán, MéxicoFecha: 18 a 23 de octubre de 2009Más Información

II Congreso Latinoamericano de Arqueometría Lugar: Lima, PerúFecha: 19 a 21 de octubre de 2009Más Información

IX Jornadas Nacionales de Antropología Biológica Lugar: Puerto Madryn, ArgentinaFecha: 20 a 23 de octubre de 2009Más Información

V Congreso de Antropología Forense Lugar: Buenos Aires, ArgentinaFecha: 26 a 28 de octubre de 2009Más Información

X Jornadas Rosarinas de Antropología Sociocultural Lugar: Rosario, ArgentinaFecha: 5 a 7 de noviembre de 2009Más Información Cambio de Fecha

V Reunión de Teoría Arqueológica en América del Sur (V TAAS) Lugar: Coro, VenezuelaFecha: 9 a 13 de noviembre de 2009Más Información Actualizado 29-ABR-09

II Jornadas del MERCOSUR y III de la Provincia de Buenos Airessobre Patrimonio Cultural y Vida Cotidiana Lugar: La Plata, ArgentinaFecha: 11 a 13 de noviembre de 2009Más Información Actualizado 4-MZO-09

XV Jornadas Sobre Alternativas Religiosas en América Latina - Estado / Religiones / Cultura / Ciudadanía Lugar: Santiago de Chile, ChileFecha: 11 a 14 de noviembre de 2009Más Información NUEVO

X Jornadas Nacionales y IV Simposio Internacional de Investigación – Acción en Turismo“Aportes de la investigación-acción al desarrollo turístico sustentable” Lugar: Lanús, Buenos Aires, ArgentinaFecha: 12 a 13 de noviembre de 2009Más Información NUEVO
Jornadas de Estudios Indígenas y Coloniales Lugar: San Salvador de Jujuy, ArgentinaFecha: 26 a 28 de noviembre de 2009Más Información

Fonte: Sitios web de NAyA
http://www.naya.org.ar/eventos/

Playing for Change: Peace Through Music


http://www.youtube.com/watch?v=Us-TVg40ExM


From the award-winning documentary, "Playing For Change: Peace Through Music", comes the first of many "songs around the world" being released independently. Featured is a cover of the Ben E. King classic by musicians around the world adding their part to the song as it travelled the globe.

quinta-feira, 16 de abril de 2009

Síndrome do Infrator

Publicado na Carta Capital, 14/04/2009

Por: Phydia de Athayde

O menino tem 14 anos e passou os últimos nove meses na Escola João Luís Alves, uma das unidades do Degase, a antiga Febem, do Rio de Janeiro. Acusado de tentativa de assalto e com histórico de uso de drogas e prostituição, o garoto, durante todo o período de internação, foi obrigado a ingerir quatro medicamentos diferentes por dia. “O juiz pediu uma avaliação psiquiátrica, e acharam que ele tinha algum distúrbio e precisava de remédio para depressão e ansiedade”, diz a mãe. Apesar de pedir ao diretor e à psicóloga da unidade, ela nunca teve acesso à psiquiatra nem ao laudo. “Ele ainda está tomando. Vou visitá-lo todos os sábados. Às vezes ele está aéreo, não fala coisa com coisa, outras vezes, só chora. Ainda acredito na mudança do meu filho. Ele me diz que não é louco, que não quer tomar remédio e que nunca mais quer usar droga.” O uso de medicamentos psicotrópicos, como calmantes e soníferos, não é novidade nas unidades de internação de jovens infratores. Ao contrário, é parte de um passado que a criação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em 1990, deveria ter deixado para trás. “A chamada contenção química era comum na época do Código de Menores, e o Estatuto representou uma ruptura ao estabelecer direitos específicos à criança e ao adolescente”, explica a psicóloga da Universidade Católica de Goiás, Maria Luiza Moura. “A medicalização é uma forma de anestesiar o adolescente e funciona como um tampão para as questões que as unidades têm de enfrentar”, diz a psicóloga, ex-presidente do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda). Se não é uma novidade, a psiquiatrização volta ao centro das atenções como um reflexo de mudanças tanto na estrutura das ex-Febens quanto na percepção, pela sociedade, do que é considerado “normal” quando se trata de comportamento juvenil. Tanto que a imposição de drogas psiquiátricas a adolescentes que cometeram ato infracional acaba de ser escolhida como um dos casos a receber intervenção exemplar da Associação Nacional dos Centros de Defesa (Anced), que reúne os 37 Centros de Defesa da Criança e do Adolescente (Cedeca) espalhados por dezoito estados do País. Na apresentação de um relatório nacional sobre violação dos direitos de crianças e adolescentes brasileiros, quatro episódios exemplares, no mau sentido, foram destacados. O primeiro, o caso da menina encarcerada em uma cela repleta de homens na cadeia em Abaetetuba (PA), sujeita a estupros, entre outras violências. Em segundo, a denúncia de tortura e extermínio de doze jovens em Fortaleza, com suspeita da ação de grupo de extermínio formado por policiais e financiado por empresários locais. Outro inclui tortura, abuso sexual e mortes tornados rotina na unidade para jovens infratores Santo Expedito, parte do complexo penitenciário de Bangu (RJ). Por fim, a psiquiatrização, que, apesar de ser disseminada, baseou-se na situação encontrada em uma vistoria no Centro de Internação Provisória Carlos Santos, em Porto Alegre, em 2006, quando 80% dos jovens eram medicados com o antipsicótico amplictil. “Ao entrar na unidade, os adolescentes passam por uma triagem psiquiátrica automática, não prevista no ECA nem nas diretrizes do Conanda, o que configura um abuso”, argumenta Daniel Adolpho, um dos advogados da Anced responsáveis pelo caso de Porto Alegre. “Mais estranho é que a maior parte deles acaba medicada pelo psiquiatra e não por enfermeiros, por conta de eventos cotidianos, como uma dor de cabeça.” O presidente da Fundação de Atendimento Socioeducativo do Rio Grande do Sul (Fase, a ex-Febem gaúcha), Irany Bernardes Souza, explica que a instituição terceirizou o serviço de psiquiatria há cerca de três anos e defende a triagem na chegada dos garotos. “Eles passam por uma avaliação física, dentária, psiquiátrica, psicológica e pela assistente social. A partir dela, discute-se a intervenção”, diz. Souza observa que, desde 2008, quando entrou na Fase, há um aumento no ingresso de jovens usuários de drogas, especialmente o crack. “Este é um dos fatores preponderantes na aplicação de psicotrópicos. Pessoalmente, não sei quais os medicamentos receitados, pois não sou médico, mas asseguro que nossa política é ficar atentos e não permitir a chamada algema medicamentosa.” Souza diz que, historicamente, a maior parte dos internos se enquadraria na avaliação de Transtorno de Personalidade Antissocial, o que “não significa que tenha de ser medicado”, pois a personalidade ainda está em formação. Entra-se em uma área muito nebulosa quando a avaliação psiquiátrica passa a interferir nas decisões judiciais sobre o futuro de um jovem infrator. Há riscos como o de que julgamentos morais sejam travestidos de diagnóstico médico, para citar apenas um. “Não somos contra cuidados médicos, quando necessários, a briga não é essa. Criticamos o uso da saúde mental para contrariar diretrizes construídas nacionalmente”, diz Maria Cristina Vicentin, psicóloga da PUC-SP que estuda a psiquiatrização do adolescente em conflito com a lei. Ela se refere aos preceitos do ECA, que determina no máximo três anos de internação, ou a liberação aos 21 anos completos. O problema começa quando a alegação de uma patologia serve de justificativa para manter os infratores presos. Ainda que com o discurso de que estejam sendo protegidos. “Ato infracional não é doença. Existe um mito de que há uma disfunção psíquica na infração, mas a diversidade de teorias a respeito indica que este é um campo não apenas científico, mas atravessado pela moral”, alerta a pesquisadora. O Transtorno de Personalidade Antissocial (antes designado psicopatia) tem sido usado, judicialmente, como argumento para manter jovens infratores internados. Mas este diagnóstico é controverso mesmo para a medicina. A própria Organização Mundial da Saúde, ao classificar os transtornos mentais, reconhece ser “problemático” estabelecer critérios para o caso e ressalva que “é improvável que o diagnóstico de transtorno de personalidade seja apropriado antes de 16 ou 17 anos”. Na prática, juízes e promotores têm se valido, cada vez mais, de avaliações psiquiátricas para prolongar o encarceramento de infratores. O defensor público do Núcleo da Infância e Juventude em São Paulo, Flavio Frasseto, integra um grupo multidisciplinar contrário ao procedimento. “Há juízes que não querem liberar o infrator por pressão da sociedade. Alegam ‘maldade congênita’ e outros artifícios, como a periculosidade futura, para mantê-los internados. O discurso médico torna-se conveniente e passa-se a dizer que a privação de liberdade é para o bem do adolescente. Aí muda tudo”, diz. Por pressão do Judiciário, o estado de São Paulo criou a Unidade Experimental de Saúde (UES), um local para onde iriam os internos da Fundação Casa (ex-Febem paulista) com deficiências mentais e também aqueles com “distúrbio de conduta”. Em 2000 e em 2005 outras tentativas de lidar com os problemáticos resultaram ilegais, além de desumanas. Na prática, a UES está recebendo os que já cumpriram a internação máxima e, portanto, estão num limbo legal. “É uma Guantánamo paulista, pois não existe regulamentação para controlar a privação de liberdade desses internos. É um equipamento carcerário sem fundamento legal, uma modalidade de privação de liberdade disfarçada de tratamento, à revelia da lei. Aí está o perigo”, diz. “Sabemos dos usos da psiquiatria para criar regimes de exceção”, alerta Maria Cristina. A psicóloga aponta a diferença entre os dois grupos com avaliações distintas nesse campo: um opta por segregar, enquanto outro aposta na educação e na punição legal. “Os chamados intratáveis dizem algo sobre nosso modo de vida. Esses casos nos transtornam, mas acreditamos que podem mudar e não repetir o ato violento”, diz. Ela sustenta o uso correto de medicamentos, bem como internação, “pelo que fez e não pelo que poderá fazer”. Se, esgotadas as alternativas, ele reincidir? “Que seja responsabilizado pelos atos, como qualquer outro.”

quarta-feira, 25 de março de 2009

Inscrições para apresentação de GT no XIV CISO - até dia 31/03

GT Sociedade, Direito e Justiça
As relações entre lei e sociedade fazem parte dos temas clássicos que compõem as ciências sociais. Na Sociologia, tais relações assumiram um papel central nas teorias sobre o direito desenvolvidas por Durkheim, Marx e Weber. Na Antropologia, Malinowski inaugurou um novo campo de estudos, ao analisar as regras de costume e de direito de sociedades não ocidentais. Na Ciência Política, Tocqueville é reconhecido como o precursor dos estudos institucionais a respeito do sistema de justiça. Atualmente, são tênues as fronteiras entre essas três disciplinas quando dizem respeito: às questões relacionadas ao acesso à justiça, aos direitos difusos e aos direitos sociais, ao reconhecimento legal de certas demandas de grupos socialmente marginalizados, à judicialização de conflitos, à organização do sistema de justiça, ao confronto entre o aparato legal oficialmente reconhecido e o socialmente legitimado, entre outros temas. Num contexto de amplas reformas legais nacionais e internacionais, com o intuito de tratar desses objetos diversificados, sob diferentes perspectivas, apresentamos nossa proposta de grupo de trabalho. Nosso objetivo é fomentar a discussão interdisciplinar em torno de questões que envolvem temas de Sociedade, Direito e Justiça, agregando trabalhos que tratam de problemas atuais nesse campo de estudos, tanto do ponto de vista teórico quanto do empírico.
Coordenadores: Alexandre Zarias (Fundação Joaquim Nabuco) e Marcelo Pereira de Mello (Universidade Federal Fluminense)

Contato:
Alexandre Zarias: alexandre.zarias@fundaj.gov.br

terça-feira, 17 de março de 2009

Abertas as Inscrições para os Seminários do DAN (Departamento de Antropologia, UnB)

SEMINÁRIOS DO DAN/UnB

Horário: 16:00 horas
Local: Sala de Reuniões do DAN/UnB
Coordenação: Profa. Juliana Braz Dias e Profa. Patrice Schuch


Março
25 "Heitor Frúgoli Junior (USP): "Distanciamentos e aproximações entre sociabilidade e socialidade"

Abril
01 Guilherme José da Silva e Sá (DAN/UnB): "A etnologia das ciências e a antropologia dos coletivos: Reflexões a partir de pesquisa etnográfica com humanos e não humanos"
15 Myriam Jimeno (Universidad Nacional de Colômbia): "Indigenismo na Colômbia"
29 Líliam Cristina da Silva Barros (UFPA): "Mito e Música no clã Guahari Diputiro Porã, Alto Rio Papuri, Am"

Maio
06 Claudia Briones (Universidad de Buenos Aires-Argentina): "Enraizarse em La Mapu: Poética y política de la recuperación de tierras en Patagonia (Argentina)"
20 Bartolomeu Tito Figueiroa de Medeiros (UFPE): "Quando o Campo é o Quilombo: Quilombos e Políticas de Patrimonialização"

Junho
17 Matthew Gutmann (Centro de Estudios Latinoamericanos y del caribe-Brown University-USA): "Desertar Irak: Masculinidades disidentes"
24 Carlos Emanuel Sautchuk (DAN/UnB): "Antropologia da ciência e da técnica no Brasil"

Inscrições
Período: 18 a 24/03/2009
Local: Departamento de Antropologia
ICC Centro - Sobreloja - B1 347

Observação: Para emissão dos Certificados é necessário a frequência em cinco dos seminários acima. Para o participante que não desejar certificado não é necessário inscrição.

segunda-feira, 16 de março de 2009

Direitos Humanos em Tempos de Crise

MARIA NAZARETH FARANI AZEVÊDO


O CDH (Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas) realizou sua décima sessão especial, em Genebra, no último dia 20 de fevereiro, para tratar dos efeitos da atual crise econômica e financeira sobre o pleno exercício dos direitos humanos no mundo. O Brasil, ao lado do continente africano -representado pelo Egito- e dos parceiros dos Brics, foi um dos principais patrocinadores do evento.Ao promover a iniciativa, o governo brasileiro atraiu para o órgão a responsabilidade de apelar a todos os membros das Nações Unidas para que unam esforços no combate à crise, examinando não apenas sua dimensão puramente econômico- financeira mas também -e sobretudo- sua dimensão humana.O encontro permitiu definir dois parâmetros importantes. A cooperação e a coordenação de ações entre países são elementos essenciais para superar as dificuldades atuais, e a atenção aos direitos humanos, em especial em benefício dos mais afetados pela crise econômica, é parte indispensável de qualquer estratégia vitoriosa de combate à crise.A sessão especial contou com a participação de relatores especiais do CDH e de representantes de organizações do sistema ONU, com atuação em diversas áreas -trabalho, saúde, fome e pobreza, migrações, comércio, discriminação racial e desenvolvimento econômico. O próprio presidente da Assembleia Geral da ONU, padre Miguel d'Escoto Brockmann, ao comparecer agora em março pela primeira vez a uma sessão regular do CDH em Genebra, saudou a iniciativa patrocinada pelo Brasil e convidou a alta comissária da ONU para Direitos Humanos e o presidente do CDH para estarem presentes em Nova York em junho, no contexto da reunião já agendada para discutir os impactos da crise financeira.O encontro sobre a crise financeira e os direitos humanos não esteve voltado para controvérsias em relação às responsabilidades e causas do problema, mas para um debate rico, marcado pela presença de diversas perspectivas sobre os efeitos da crise, suas implicações, sua evolução e as medidas para contorná-la.Segundo o Banco Mundial, até 53 milhões de pessoas passaram a enfrentar a extrema pobreza como consequência direta do cenário econômico vigente. A alta comissária da ONU para Direitos Humanos, Navanethem Pillay, em seu discurso na sessão especial, salientou que a atual crise atinge diversos grupos vulneráveis, cujo acesso a um emprego digno e a redes de proteção social é ameaçado pelas dificuldades econômicas do momento. Em especial, mulheres, crianças, migrantes, refugiados, indígenas e deficientes físicos estão entre aqueles que mais sofrerão com a crise.A pobreza e a exclusão social estão na base da maioria dos casos das violações dos direitos humanos. O desrespeito aos direitos sociais básicos é ameaça concreta à estabilidade política, ao Estado de Direito e à democracia em todo o mundo. Uma atuação que tenha por prioridade a eliminação da extrema pobreza e o combate à exclusão social não apenas garante o incremento concreto das condições de vida das populações mais carentes mas também protege os direitos civis e políticos, vitais para a consolidação de sociedades justas e democráticas.Em sua atuação, o Brasil privilegia a busca por soluções globais para enfrentar problemas de alcance global: a construção de uma agenda positiva é o meio mais eficaz para proteger os direitos humanos. Nesse contexto se insere a proposta brasileira de que a atual crise seja tratada no CDH.O Brasil defende que toda situação específica de violação aos direitos humanos deve ser investigada, e seus perpetradores, processados e punidos. Entende ainda que o Conselho cumprirá melhor sua função se atuar também de maneira preventiva, buscando impedir a transgres-são das obrigações impostas aos Estados pelas normas internacionais de direitos humanos e de direito internacional humanitário.Direitos humanos não podem ser impostos pela força nem pela simples previsão legislativa -que, embora seja importante, não garante sua efetiva implementação. Um processo político e social inclusivo -em que prevalecem o diálogo e a promoção de uma agenda positiva envolvendo a comunidade internacional de forma abrangente- auxilia na superação de desafios e promove um ambiente de confiança mútua entre Estados.Tal atmosfera é elemento essencial para garantir a eficiência dos esfor-ços internacionais de promoção dos direitos humanos.

MARIA NAZARETH FARANI AZEVÊDO, diplomata de carreira e embaixadora, é representante permanente do Brasil nas Nações Unidas em Genebra.

Publicado na Folha de São Paulo, 15/03/09

sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

Entrevista com Bruno Latour


Fonte: Revista CULT


De volta para o futuro

Para o antropólogo francês Bruno Latour, os brasileiros são os mais preparados para a criação de novas disciplinas e novas coletividades

Marcelo Fiorini
Louis Monier/La Découverte

Com a publicação de sua obra Jamais Fomos Modernos em 1994, Bruno Latour tornou-se célebre em muitos países do mundo quase que instantaneamente. Mas não na França, onde seu pensamento demorou para ser aceito e só começou a ganhar espaço graças ao impacto e à acolhida que seus livros tiveram entre a antropologia da atualidade. Nesse livro, Latour retraça a história ideológica do desenvolvimento da "razão ocidental" e a crítica como uma ilusão que jamais chegou a penetrar mesmo nas práticas mais centrais ou nos espaços mais conceituados da cultura euro-americana. Para Latour, esse desenvolvimento da "razão ocidental" leva à depuração da cultura a que chamamos de modernidade. Novo iconoclasta do pensamento na França, híbrido de sociólogo, filósofo e antropólogo, inovador polêmico, educador transdisciplinar, ao se conversar com Latour fica-nos a nítida impressão de que estamos diante de um pensador que representa hoje uma grande corrente filosófica do futuro, que estará em voga talvez daqui a 20 ou 30 anos.

Mas Latour nos mostra também que esse futuro já estava lá em nosso passado. Um dos aspectos mais surpreendentes de seu pensamento é de fato sua maneira de abordar o passado e a chamada "periferia" da denominada civilização "ocidental", que ele considera uma aberração. Latour mostra como os "centros" de propagação dessa cultura, que são representados pelos laboratórios de ciências hoje em dia, são semelhantes ao que a própria ciência considera periférico e exótico. Para Latour, são os que se consideram modernos que são exóticos, e o Brasil nunca foi realmente moderno, pois nosso país (felizmente) pulou esse retrocesso, cuja expressão maior hoje em dia são os fundamentalismos orientais e ocidentais, espelhos monstruosos de si mesmos. Questionando persuasões filosóficas inteiras de Descartes à sociologia moderna, passando por Émile Durkheim, Karl Marx ou a filosofia analítica, impugnando divisões artificiais que, segundo ele, levaram à separação entre a natureza e a cultura, do inato e do aprendido, além da distinção entre as coisas e os objetos, Latour estende suas análises prático-teóricas à filosofia, à economia, à ecologia, à política. Para Latour, o que é importante nas ciências sociais agora é se interessar pela questão da produção das instituições que permitem a criação das coletividades e das associações que se desenvolvem no mundo de hoje, que não mais tem relação com a que antes chamamos de natureza e sociedade.
Como passamos a maior parte do tempo na história da filosofia, da sociologia, da antropologia, ou mesmo em todas as ciências sociais, a traduzir o que encontramos nos termos de uma ideologia que nada veio nos explicar, um paradigma assimétrico que apenas traduz os termos de uma cultura nos termos de outra, Latour acredita que o campo das investigações hoje em dia começa a abrir para pesquisas mais híbridas que irão realmente transformar as nossas persuasões e disciplinas. Esse processo, para Latour, já está acontecendo, é preciso apenas tirar nossas "lentes de contato" para vê-lo. É preciso também que reconheçamos os meios para refazer um mundo no qual possamos coabitar com outros seres, o que, segundo Latour, os brasileiros estão mais preparados para fazer do que os franceses.

Leia trechos da entrevista:

CULT - Um de seus trabalhos mais conhecidos no Brasil é o livro Jamais fomos modernos. Qual é a relação desse livro com a antropologia ?

Bruno Latour - Em primeiro lugar, a tese desse livro não faz muito sentido ao se falar no Brasil, porque os brasileiros nunca foram modernos. Foram sempre, de uma certa forma, pós-modernos. Este livro foi traduzido em 25 línguas e teve um impacto bastante diverso nos países em que foi publicado. Na França, por exemplo, seu impacto não foi muito grande. O que quis fazer foi uma antropologia daqueles que são chamados "modernos". A distância que tomamos normalmente na antropologia quando nós nos afastamos de nossa cultura para estudar uma outra, por exemplo, para conviver com pessoas com quem não convivemos geralmente, é equivalente neste livro a uma tomada de distância interior, um distanciamento diante da história do chamado "mundo ocidental" nos últimos 300 anos, para mostrar como algo se passou durante este período, algo ligado à atividade científica e técnica, mas que não tem nada a ver com o que se diz ter acontecido.


CULT - O modernismo seria então uma invenção exótica?

BL - Eu diria que esse livro procurou lutar contra o equivalente do exotismo nas sociedades que se denominam modernas, o que se pode chamar de "ocidentalismo" . Assim como há um orientalismo para o Oriente, como definiu-o Edward Said, há um exotismo de nós mesmos, quero dizer, da Europa ou da Euro-América. É isso que está ligado à ideia de uma antropologia. Fazíamos a antropologia dos outros, mas não a antropologia de nós mesmos, com exceção das margens, dos aspectos marginais de nossa sociedade, do que sobreviveu: da magia, das festas, da sociabilidade. Mas jamais fazíamos a antropologia do centro que constitui nossas atividades. Eu mesmo aprendi antropologia com excelentes antropólogos na África negra, e quando retornei à Europa, fiquei surpreso com essa assimetria. Quando nós fazemos antropologia (no exterior de nossa cultura), estudamos coisas que nos parecem realmente centrais para as comunidades nas quais passamos a viver. Mas, quando retornamos aos europeus ou aos euro-americanos, pensamos que a antropologia se refere somente à parte marginal. Tudo isso mudou muito. Esse livro foi escrito há 20 anos. Hoje em dia, muitas vezes os antropólogos não mais podem fazer uma pesquisa de campo em outra sociedade, em outros países, pois o acesso a essas áreas tem sido progressivamente restrito ou fechado (é o caso praticamente de toda a África e do Meio Oriente; o que nos resta de fato é apenas a América Latina e talvez uma parte da Ásia). Isso tem redefinido a antropologia como uma reflexão também sobre o centro da sociedade dita moderna, de forma que hoje em dia, essa ideia já se tornou banal, ao passo que na época que escrevi meu livro não era bem assim.

CULT - Qual é a tese desse livro e por que que ele é sub-intitulado como "ensaio de antropologia simétrica"? Isso foi uma ideia original, ou algo desenvolvido a partir do trabalho de outros autores?

BL - Há a controvérsia entre a tese que considera que nós fomos modernos e a tese que não, e tudo repousa sobre uma teoria da ciência. Esse era o problema da área de estudo na qual eu continuo a trabalhar: a science studies, que faz uma antropologia das ciências. É a ideia também do meu livro. Jamais fomos modernos fez talvez, e estranhamente, muito sucesso mesmo se sua tese não foi ainda muito testada empiricamente. Quanto ao termo "simétrico" provavelmente já existia. De toda forma, ele é bastante comum, poderia se dizer também, no lugar de "antropologia simétrica", antropologia "equilibrada" ou mesmo "equitável". Eu escolhi "simétrica" por causa da conotação desse termo na área de estudos das ciências (science studies). Ele implica também uma simetria entre a ciência e a não ciência, ou a ciência ligada ao problema da história das ciências. Mas abandonei o termo "simétrica", pois ele tem o inconveniente de supor que, quando fazemos essa simetria, guardamos os dois elementos que opomos, por exemplo, a natureza e a cultura.

[...]
CULT - Seu trabalho trocou os livros pelas exposições, e trata de arte, ciência, religião e do respeito pela mediação como uma forma de chegar à civilidade, como resposta ao modernismo e ao pós-modernismo. Essa também é a proposta de sua exposição Iconoclash?

BL - Esse é um empreendimento que me interessou muito, em primeiro lugar, porque eu mudei de mídia, e passei do livro à exposição, também ao catálogo também, e assim modifiquei tanto o impacto como a forma da atividade. Assim, creio que é possível mudar de modernidade, ao reencontrar a noção da mediação, o respeito por atividades diferentes: a arte contemporânea, a atividade científica, a atividade religiosa, o sentido da civilização, talvez até o da civilidade, possam ser recobrados através dessas atividades que passam a ser organizadas de forma bastante diferente do que se tem feito. Por sinal, o iconoclasmo é parte da história intelectual crítica do Brasil. Ele faz parte das reflexões da teoria e de todas as religiões que herdamos. Podemos ver que a história do iconoclasmo não é fácil de se ignorar. Ela se aprofunda para além das raízes do modernismo, além do construtivismo. Portanto, reencontrar o sentido da mediação é restabelecer o fio da experiência para as pessoas e inventar assim um empirismo mais realista em relação ao primeiro empirismo que tivemos.

CULT - Mas qual é essa tradição iconoclástica que o senhor menciona em relação ao Brasil?

BL - Fazer proliferar os ídolos, tanto uns como os outros, com toda a liberdade possível. No Brasil, não se imagina de imediato que os ídolos estão lá para serem destruídos. Há uma grande compatibilidade de cultos. Veja, por exemplo, a história das religiões. Ela é interessante. O que chamamos de sincretismo, de amálgama, tudo isso teve um início: foi a maneira como foi vista a história europeia no Brasil. Mas tudo isso se passou de forma diferente. O iconoclasmo emerge na tradição antropofágica, por exemplo. E o iconoclasmo é importante para os euro-americanos, pois enquanto não fizermos o luto desse iconoclasmo, não compreenderemos nada do que é a noção de construtivismo, não respeitaremos jamais as mediações, e portanto cairemos no fundamentalismo. O fundamentalismo é uma espécie de modernismo monstruoso. Não quero dizer que o modernismo foi sempre um fundamentalismo, mas a partir do momento em que ele retira todas as mediações, ele o é. Depois da passagem do pós-modernismo, que é um momento de liberação e divertimento, ele ainda se quer ater à verdade, sem se ater aos meios. Caímos então no fundamentalismo, é a única solução. Os modernistas e os pós-modernistas que assim o fizeram deixaram como herança apenas o fundamentalismo àqueles que ainda buscam as verdades, e esses ainda são os que poderíamos considerar "os do bem", os que procuram a verdade. Se nós privarmos os que buscam a verdade dos meios, não há outra forma de alcançá-lo senão através do fundamentalismo, seja através do texto, dos livros sagrados (no caso da religião), ou em outros casos. Hoje, podemos ser fundamentalistas nas ciências, na política etc. Pois não há mais os intermediários, as mediações. O respeito pelos meios, pelas mediações, é algo que os brasileiros sabem fazer muito melhor do que os franceses. Nós, euro-americanos, esvaziamos inteiramente os meios para se buscar a verdade. E aqui novamente a teoria da ciência tem uma participação, pois para respeitar as ciências, temos que respeitar os meios que fazem a ciência. Isso parece de uma banalidade imensa, mas o fato é que isso resta sendo um assunto sobre o qual há ainda muita controvérsia, pois existem ainda pessoas que querem a ciência sem respeitar os meios. Os "modernos" são realmente bizarros!


quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009


"... Nunca sofra por não ser uma coisa ou por sê-la..."
(Clarice Lispector, Perto do Coração Selvagem - p.55)