Claudia Fonseca (coordenadora do Núcleo de Antropologia e Cidadania - professora do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da UFRGS)
O projeto de lei n. 2747/08 do deputado federal Eduardo Valverde (PT-RO), que estabelece o parto anônimo, vai na contramão dos avanços no campo da adoção. Ao tentar desfazer algumas confusões que voltam repetidamente nas discussões sobre seus supostos méritos, vou explicar por que considero esta inovação legislativa, no mínimo, desnecessária.
Confusão n. 1: Argumenta-se que o parto anônimo vai “descriminalizar” o abandono dos filhos. Ora, conforme a legislação em vigor, entregar um filho em adoção não é crime. Como o parto anônimo vai “descriminalizar” um ato que não é crime? No Brasil, como na maior parte do mundo moderno, uma mulher pode legalmente dar seu recém-nascido em adoção. Conforme o artigo 134 do Código Penal, o que é crime é “expor” uma criança, ou deixá-la correr perigo em situação desassistida. Com ou sem a nova legislação sobre parto anônimo, essa “exposição” continua sendo crime, e a entrega de uma criança pela mãe a adoção continua sendo uma opção absolutamente legal.
Confusão n. 2: Defende-se que o anonimato traria uma inovação importante. Ora, conforme a legislação em vigor, já existe a possibilidade da mãe biológica gozar de sigilo total. De acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente (1990), a criança adotiva é registrada no nome de seus pais adotivos, sem nenhuma menção do status adotivo. O registro original é cancelado e arquivado pela autoridade judiciária. É só com autorização do juizado, mediante farta justificação, que é permitida a consulta a essa documentação. O novo projeto de lei pouco difere dessa política, pois prevê a possibilidade de quebrar o sigilo em circunstâncias precisas (“A identidade dos pais biológicos será revelada pelo Hospital, caso possua, somente por ordem judicial ou em caso de doença genética do filho”, art. 11).
Existe, no entanto, uma diferença entre sigilo e anonimato. No primeiro caso, existem pistas – informações a serem controladas ou mesmo escondidas, mas que encerram a possibilidade eventual de consulta. No segundo caso, quer-se apagar todo rastro dos vínculos implicados no nascimento, fazendo com que uma decisão no presente determine a falta de qualquer outra opção no futuro. Críticos ao parto anônimo lembram reiteradamente de mães biológicas – mesmo vítimas de estupro ou de incesto – que, com o tempo, mudam de sentimento. Assim, a “rejeição” inicial é substituída pelo desejo de ter informações ou até algum contato com a criança doada. O anonimato total do processo criaria uma barreira intransponível à possibilidade de mudança.
Confusão n. 3: Supõe-se que a maioria das mães que abandonam seus filhos querem permanecer anônimas. Tal pressuposto não leva em conta a realidade atual. Quando foi inventada no início da época moderna, a famigerada “Roda dos Expostos” servia para preservar a “honra familiar”. Além dos pais que abandonavam seus filhos por causa de extrema pobreza, encontravam-se ali crianças “bastardas”, filhos de relações adulterinas, e outros cuja revelação pública podia causar grande incômodo à família e, eventualmente, prejudicar as chances da parturiente a se integrar na vida social. Nestas condições, a roda fornecia uma alternativa ao infanticídio. Imaginar que, em 2008, o clima moral seja tão coercitivo quanto o do século XVIII seria ignorar o impacto das várias “revoluções” (social, sexual, feminista, tecnológica) do fim do século XX. Seria também ignorar o fato de que a grande maioria das mães que entregam seus filhos em adoção são coibidas não pela moralidade puritana, mas sim pela miséria. Para estas, não interessa nem anonimato, nem sigilo. Muitas escolhem fazer adoções “diretas” onde participam da escolha dos pais adotivos justamente porque não querem ficar inteiramente no anonimato.
Certamente, existem situações ainda hoje – casos de incesto, por exemplo -- que podem exigir sigilo total das informações sobre o parto. A possibilidade desse sigilo total já existe na lei. Mas devemos atentar para as interdições não se tornarem conveniência da família em vez de desejo da mãe. Como sugere um especialista desse assunto na França, o anonimato protege, sim. Protege o agressor adulto que perpetrou o abuso ou o incesto: não há mãe, não há criança, não há indícios, portanto não há perigo de penalização..
Confusão n. 4: Há defensores do projeto que argúem que o parto anônimo servirá para encorajar a maternidade e paternidade responsáveis. Críticos sugerem que, pelo contrário, se passar essa lei, é possível que certas mulheres sejam induzidas (pela publicidade, falta de outras informações) a escolher essa forma de abandono preterindo alternativas menos radicais de entrega e adoção.
Ainda mais grave é o fato de que, no parto anônimo, a entrega da criança depende de uma decisão unilateral da mãe, não havendo possibilidade de investigação ou responsabilização paterna. Céticos podem opinar que é justamente o fato de não ter um parceiro fixo, pronto a assumir o papel de pai, que leva a mulher a procurar um parto anônimo. Por outro lado, tomamos conhecimento de não poucos casos em que a mulher entrega seu filho em adoção justamente para magoar um ex-companheiro, prevenindo contra seu desejo de exercer a paternidade. Na França, o parto anonimo já enfrentou sua primeira derrota por causa desse tipo de complicação paterna. Em 2006, uma corte superior deliberou por anular a adoção de um recém-nascido, fruto de um “parto anônimo”, pois o pai da criança, que tinha tomado o cuidado de fazer uma declaração pré-natal de sua paternidade, se obstinou em ser pai malgrado os esforços contrários de sua ex-companheira.
Confusão n. 5: Em certos debates, ainda emerge uma noção que o parto anônimo é nos melhores interesses da própria criança. Ora, existe um consenso hoje, ratificado pela legislação internacional, e presente no discurso da maioria de profissionais lidando com o bem-estar de crianças adotadas, que uma pessoa deve ter acesso a informação sobre suas origens. Tal movimento luta contra o clima de clandestinidade (que associa a adoção a segredos assombrosos), e a favor da circulação mais livre de informação. Assim, por exemplo, existem desde os anos 70 serviços administrados pelo próprio governo em paises como Inglaterra, Noruega e Suécia – que fornecem a qualquer indivíduo adotado, acima de 18 anos, cópia de sua certidão de nascimento original, com nome de mãe e/ou pai biológicos. Conforme o caso, e – geralmente mediante concordância expressa dos pais biológicos -- esses serviços podem até facilitar um reencontro. Na França, esse tipo de serviço iniciou apenas em 2002, sob a administração da então Ministra da Família, Ségolène Royale. De forma significativa, na França, são os integrantes desse serviço que assumiram liderança na luta contra o parto anônimo. É curioso que os proponentes brasileiros do parto anônimo, tão animados pelos exemplos de além-mar, não falam nunca em organizar esse tipo de serviço (ou registro) no Brasil. Por enquanto, o esforço de mudar a “cultura da adoção” fica a cargo de organizações não-governamentais (grupos de apoio à adoção), e o desejo dos adotados de “conhecer suas origens” só recentemente ganha um tímido lugar em associações como a recém-fundada “Filhos Adotivos do Brasil” (www.filhosadotivosdobrasil.com.br).
Confusão n.6: Ironicamente, enquanto críticos em outros paises observam que o parto anônimo tem exacerbado as possibilidades de tráfico de crianças (como controlar o paradeiro de um ser anônimo?), no Brasil há defensores sugerindo que a lei preveniria casos de tráfico. É importante aqui lembrar algo da história recente. No Brasil, existem diversas instâncias com longa história de reflexão, luta e experiência na adoção de crianças. Desde os anos 80, os Juizados de Infância, estão organizando e reorganizando seus serviços, integrando-se em debates nacionais e internacionais, paraforjar políticas de adoção condizentes com os princípios dos direitos da criança. Desde os anos 90, cresce o movimento dos Grupos de Apoio à Adoção, associações de voluntários leigos (em geral, pais adotivos) que mantêm um diálogo, ora amistoso, ora crítico, com os Juizados quanto ao andamento da adoção. Foi o conjunto dessas forças que agiram para coibir o “tráfico de crianças”, implantando regulamentações cada vez mais respeitadas sobre a adoção.
O projeto de lei, ao sugerir que o parto anônimo seja administrado pelos hospitais, enfermeiros e médicos, coloca uma enorme responsabilidade justamente em uma categoria médica já sobrecarregada e com pouquíssima experiência nesse assunto. É verdade que, até o início dos anos 80, os hospitais, maternidades e casas de parto (muitas vezes de inspiração filantrópica ou religiosa) eram o foco principal do processo de adoção. Contudo, foi no esforço de profissionalizar essas práticas, assegurando uma equação equilibrada entre os direitos de todos os envolvidos (criança, famílias de origem e pais adotivos) que a administração da adoção foi gradativamente retirada dos hospitais e entregue nas mãos de autoridades centrais do governo. Transferir mais uma vez essa responsabilidade para os hospitais arrisca deixar para trás décadas de reflexão, abrindo a porta para a ascendência de milhares de pequenos serviços, administrados por pessoas que não têm nem experiência, (nem, muitas vezes, o desejo) de lidar com as situações complicadas envolvidas na entrega de uma criança para adoção.
Os autores da proposta de lei trazem uma preocupação válida com o destino de mães desesperadas e seus recém-nascidos – que devem, em qualquer caso, receber assistência gratuita, com todo o acompanhamento psicológico necessário. No entanto, é dificil imaginar como o parto anônimo -- que não traz grandes inovações para essas mães -- vai prevenir o abandono. Pelo contrário, trata-se de uma medida que facilita a adoção de recém-nascidos, liberando o processo dos longos inquéritos sociais ou buscas de paternidade. São tais considerações que levaram críticos franceses a fazer uma pergunta que cabe também no contexto brasileiro. O parto anônimo é fruto de uma necessidade social ou de um lobby político de pais adotivos que querem se esquivar ao controle dos serviços estatais?
Devemos lembrar que houve um imenso esforço nos últimos anos em desenvolver políticas para promover a “convivência familiar”, isto é, políticas voltadas ao direito da criança de crescer na sua família/bairro/país de origem. Acompanhou esse esforço a ênfase crescente em “adoções necessárias” – adoções voltadas antes de tudo para o bem-estar das crianças mais velhas, claramente sem família, que foram “esquecidas” nos abrigos. Nessa conjuntura, o filho idealizado pela maioria de pais adotivos – isto é, o recém-nascido branco, em perfeitas condições de saúde—tornou-se escasso. O projeto do parto anônimo é, nesse sentido, uma resposta às orações dos adotantes: promete impor prazos limites à tramitação do processo, produzindo uma fartura de adotados ideais em tempo recorde. Ademais, será uma coincidência que exatamente no momento em que afloram em todo o mundo ocidental movimentos de adotados em busca de suas “origens” é que renasce a noção do parto anônimo? Com essa medida, os pais adotivos conseguem eliminar antecipadamente o eventual desejo do seu filho, simplesmente apagando a história de seu nascimento e, assim, afastando qualquer possibilidade de lidar com a realidade inconveniente de sua “outra” família.
Dados sobre França consultados nos textos:
Ver também “L´accouchement dans l´anonymat et ses incidences juridiques » por Pierre Murat, professor na Universidade Pierre Mendes-França de Grenoble, França. (www.ciec1.org/Etudes/ColloqueCIEC/CIEColloqueMuratFr.pdf).
E “Láccouchement sous X: symbole ou faits?” por Claude Sageot, sociólogo, Presidente de la D.P.E.A.O. (Association pour le droit aux origines des pupilles de l'Etat et des adoptés).
(http://www.ancic.asso.fr/textes/ressources/ethique_acouchement_sous_x.html)
O projeto de lei n. 2747/08 do deputado federal Eduardo Valverde (PT-RO), que estabelece o parto anônimo, vai na contramão dos avanços no campo da adoção. Ao tentar desfazer algumas confusões que voltam repetidamente nas discussões sobre seus supostos méritos, vou explicar por que considero esta inovação legislativa, no mínimo, desnecessária.
Confusão n. 1: Argumenta-se que o parto anônimo vai “descriminalizar” o abandono dos filhos. Ora, conforme a legislação em vigor, entregar um filho em adoção não é crime. Como o parto anônimo vai “descriminalizar” um ato que não é crime? No Brasil, como na maior parte do mundo moderno, uma mulher pode legalmente dar seu recém-nascido em adoção. Conforme o artigo 134 do Código Penal, o que é crime é “expor” uma criança, ou deixá-la correr perigo em situação desassistida. Com ou sem a nova legislação sobre parto anônimo, essa “exposição” continua sendo crime, e a entrega de uma criança pela mãe a adoção continua sendo uma opção absolutamente legal.
Confusão n. 2: Defende-se que o anonimato traria uma inovação importante. Ora, conforme a legislação em vigor, já existe a possibilidade da mãe biológica gozar de sigilo total. De acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente (1990), a criança adotiva é registrada no nome de seus pais adotivos, sem nenhuma menção do status adotivo. O registro original é cancelado e arquivado pela autoridade judiciária. É só com autorização do juizado, mediante farta justificação, que é permitida a consulta a essa documentação. O novo projeto de lei pouco difere dessa política, pois prevê a possibilidade de quebrar o sigilo em circunstâncias precisas (“A identidade dos pais biológicos será revelada pelo Hospital, caso possua, somente por ordem judicial ou em caso de doença genética do filho”, art. 11).
Existe, no entanto, uma diferença entre sigilo e anonimato. No primeiro caso, existem pistas – informações a serem controladas ou mesmo escondidas, mas que encerram a possibilidade eventual de consulta. No segundo caso, quer-se apagar todo rastro dos vínculos implicados no nascimento, fazendo com que uma decisão no presente determine a falta de qualquer outra opção no futuro. Críticos ao parto anônimo lembram reiteradamente de mães biológicas – mesmo vítimas de estupro ou de incesto – que, com o tempo, mudam de sentimento. Assim, a “rejeição” inicial é substituída pelo desejo de ter informações ou até algum contato com a criança doada. O anonimato total do processo criaria uma barreira intransponível à possibilidade de mudança.
Confusão n. 3: Supõe-se que a maioria das mães que abandonam seus filhos querem permanecer anônimas. Tal pressuposto não leva em conta a realidade atual. Quando foi inventada no início da época moderna, a famigerada “Roda dos Expostos” servia para preservar a “honra familiar”. Além dos pais que abandonavam seus filhos por causa de extrema pobreza, encontravam-se ali crianças “bastardas”, filhos de relações adulterinas, e outros cuja revelação pública podia causar grande incômodo à família e, eventualmente, prejudicar as chances da parturiente a se integrar na vida social. Nestas condições, a roda fornecia uma alternativa ao infanticídio. Imaginar que, em 2008, o clima moral seja tão coercitivo quanto o do século XVIII seria ignorar o impacto das várias “revoluções” (social, sexual, feminista, tecnológica) do fim do século XX. Seria também ignorar o fato de que a grande maioria das mães que entregam seus filhos em adoção são coibidas não pela moralidade puritana, mas sim pela miséria. Para estas, não interessa nem anonimato, nem sigilo. Muitas escolhem fazer adoções “diretas” onde participam da escolha dos pais adotivos justamente porque não querem ficar inteiramente no anonimato.
Certamente, existem situações ainda hoje – casos de incesto, por exemplo -- que podem exigir sigilo total das informações sobre o parto. A possibilidade desse sigilo total já existe na lei. Mas devemos atentar para as interdições não se tornarem conveniência da família em vez de desejo da mãe. Como sugere um especialista desse assunto na França, o anonimato protege, sim. Protege o agressor adulto que perpetrou o abuso ou o incesto: não há mãe, não há criança, não há indícios, portanto não há perigo de penalização..
Confusão n. 4: Há defensores do projeto que argúem que o parto anônimo servirá para encorajar a maternidade e paternidade responsáveis. Críticos sugerem que, pelo contrário, se passar essa lei, é possível que certas mulheres sejam induzidas (pela publicidade, falta de outras informações) a escolher essa forma de abandono preterindo alternativas menos radicais de entrega e adoção.
Ainda mais grave é o fato de que, no parto anônimo, a entrega da criança depende de uma decisão unilateral da mãe, não havendo possibilidade de investigação ou responsabilização paterna. Céticos podem opinar que é justamente o fato de não ter um parceiro fixo, pronto a assumir o papel de pai, que leva a mulher a procurar um parto anônimo. Por outro lado, tomamos conhecimento de não poucos casos em que a mulher entrega seu filho em adoção justamente para magoar um ex-companheiro, prevenindo contra seu desejo de exercer a paternidade. Na França, o parto anonimo já enfrentou sua primeira derrota por causa desse tipo de complicação paterna. Em 2006, uma corte superior deliberou por anular a adoção de um recém-nascido, fruto de um “parto anônimo”, pois o pai da criança, que tinha tomado o cuidado de fazer uma declaração pré-natal de sua paternidade, se obstinou em ser pai malgrado os esforços contrários de sua ex-companheira.
Confusão n. 5: Em certos debates, ainda emerge uma noção que o parto anônimo é nos melhores interesses da própria criança. Ora, existe um consenso hoje, ratificado pela legislação internacional, e presente no discurso da maioria de profissionais lidando com o bem-estar de crianças adotadas, que uma pessoa deve ter acesso a informação sobre suas origens. Tal movimento luta contra o clima de clandestinidade (que associa a adoção a segredos assombrosos), e a favor da circulação mais livre de informação. Assim, por exemplo, existem desde os anos 70 serviços administrados pelo próprio governo em paises como Inglaterra, Noruega e Suécia – que fornecem a qualquer indivíduo adotado, acima de 18 anos, cópia de sua certidão de nascimento original, com nome de mãe e/ou pai biológicos. Conforme o caso, e – geralmente mediante concordância expressa dos pais biológicos -- esses serviços podem até facilitar um reencontro. Na França, esse tipo de serviço iniciou apenas em 2002, sob a administração da então Ministra da Família, Ségolène Royale. De forma significativa, na França, são os integrantes desse serviço que assumiram liderança na luta contra o parto anônimo. É curioso que os proponentes brasileiros do parto anônimo, tão animados pelos exemplos de além-mar, não falam nunca em organizar esse tipo de serviço (ou registro) no Brasil. Por enquanto, o esforço de mudar a “cultura da adoção” fica a cargo de organizações não-governamentais (grupos de apoio à adoção), e o desejo dos adotados de “conhecer suas origens” só recentemente ganha um tímido lugar em associações como a recém-fundada “Filhos Adotivos do Brasil” (www.filhosadotivosdobrasil.com.br).
Confusão n.6: Ironicamente, enquanto críticos em outros paises observam que o parto anônimo tem exacerbado as possibilidades de tráfico de crianças (como controlar o paradeiro de um ser anônimo?), no Brasil há defensores sugerindo que a lei preveniria casos de tráfico. É importante aqui lembrar algo da história recente. No Brasil, existem diversas instâncias com longa história de reflexão, luta e experiência na adoção de crianças. Desde os anos 80, os Juizados de Infância, estão organizando e reorganizando seus serviços, integrando-se em debates nacionais e internacionais, paraforjar políticas de adoção condizentes com os princípios dos direitos da criança. Desde os anos 90, cresce o movimento dos Grupos de Apoio à Adoção, associações de voluntários leigos (em geral, pais adotivos) que mantêm um diálogo, ora amistoso, ora crítico, com os Juizados quanto ao andamento da adoção. Foi o conjunto dessas forças que agiram para coibir o “tráfico de crianças”, implantando regulamentações cada vez mais respeitadas sobre a adoção.
O projeto de lei, ao sugerir que o parto anônimo seja administrado pelos hospitais, enfermeiros e médicos, coloca uma enorme responsabilidade justamente em uma categoria médica já sobrecarregada e com pouquíssima experiência nesse assunto. É verdade que, até o início dos anos 80, os hospitais, maternidades e casas de parto (muitas vezes de inspiração filantrópica ou religiosa) eram o foco principal do processo de adoção. Contudo, foi no esforço de profissionalizar essas práticas, assegurando uma equação equilibrada entre os direitos de todos os envolvidos (criança, famílias de origem e pais adotivos) que a administração da adoção foi gradativamente retirada dos hospitais e entregue nas mãos de autoridades centrais do governo. Transferir mais uma vez essa responsabilidade para os hospitais arrisca deixar para trás décadas de reflexão, abrindo a porta para a ascendência de milhares de pequenos serviços, administrados por pessoas que não têm nem experiência, (nem, muitas vezes, o desejo) de lidar com as situações complicadas envolvidas na entrega de uma criança para adoção.
Os autores da proposta de lei trazem uma preocupação válida com o destino de mães desesperadas e seus recém-nascidos – que devem, em qualquer caso, receber assistência gratuita, com todo o acompanhamento psicológico necessário. No entanto, é dificil imaginar como o parto anônimo -- que não traz grandes inovações para essas mães -- vai prevenir o abandono. Pelo contrário, trata-se de uma medida que facilita a adoção de recém-nascidos, liberando o processo dos longos inquéritos sociais ou buscas de paternidade. São tais considerações que levaram críticos franceses a fazer uma pergunta que cabe também no contexto brasileiro. O parto anônimo é fruto de uma necessidade social ou de um lobby político de pais adotivos que querem se esquivar ao controle dos serviços estatais?
Devemos lembrar que houve um imenso esforço nos últimos anos em desenvolver políticas para promover a “convivência familiar”, isto é, políticas voltadas ao direito da criança de crescer na sua família/bairro/país de origem. Acompanhou esse esforço a ênfase crescente em “adoções necessárias” – adoções voltadas antes de tudo para o bem-estar das crianças mais velhas, claramente sem família, que foram “esquecidas” nos abrigos. Nessa conjuntura, o filho idealizado pela maioria de pais adotivos – isto é, o recém-nascido branco, em perfeitas condições de saúde—tornou-se escasso. O projeto do parto anônimo é, nesse sentido, uma resposta às orações dos adotantes: promete impor prazos limites à tramitação do processo, produzindo uma fartura de adotados ideais em tempo recorde. Ademais, será uma coincidência que exatamente no momento em que afloram em todo o mundo ocidental movimentos de adotados em busca de suas “origens” é que renasce a noção do parto anônimo? Com essa medida, os pais adotivos conseguem eliminar antecipadamente o eventual desejo do seu filho, simplesmente apagando a história de seu nascimento e, assim, afastando qualquer possibilidade de lidar com a realidade inconveniente de sua “outra” família.
Dados sobre França consultados nos textos:
Ver também “L´accouchement dans l´anonymat et ses incidences juridiques » por Pierre Murat, professor na Universidade Pierre Mendes-França de Grenoble, França. (www.ciec1.org/Etudes/ColloqueCIEC/CIEColloqueMuratFr.pdf).
E “Láccouchement sous X: symbole ou faits?” por Claude Sageot, sociólogo, Presidente de la D.P.E.A.O. (Association pour le droit aux origines des pupilles de l'Etat et des adoptés).
(http://www.ancic.asso.fr/textes/ressources/ethique_acouchement_sous_x.html)
Um comentário:
Parabéns pelo seu Blog. Estou desenvolvendo um trabalho sobre parto anônimo e encontrei boas referências de pesquisa no seu site. Se tiver tempo, visite o meu blog: direitocivilv.blogspot.com
Um grande abraço!
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