A imagem com que terminei a primeira parte dessas notas foi o que me levou a (mais) um texto magistral de Gerard Lebrun “A idéia de epistemologia”. Antes de comentar o que aprendi e de registrar a gratidão diante da leitura desse ensaio do professor que nunca tive e do qual sinto saudade – do futuro impossível -, vamos ao ponto, que não é prosaico.
Departamentos de Biociências e Medicina da UFRGS e da PUCRS estão candidatando uma pesquisa sobre as possíveis causas da violência nas mentes de homicidas adolescentes. A pesquisa, diz-nos o célebre e sério pesquisador Ivan Izquierdo, é de amplo espectro, multi – ou trans, ou inter – disciplinar e terá como “grupo de controle” jovens voluntários não-apenados e jovens apenados, na FASE (Fundação de Atendimento Sócio-Educativo do Estado), por homicídio. A pesquisa, segundo Zero Hora do dia 28 de janeiro deste ano, visa a “investigar os mais variados aspectos que possam explicar o que leva um jovem a se comportar de maneira violenta” (matéria de Marcelo Gonzatto). Izquierdo escreveu, dias antes, um breve texto no qual acusa de obscurantistas aqueles que se opuseram à pesquisa. Os opositores seriam psicólogos, representados pelo Conselho Federal de Psicologia e estariam acusando a hipótese – negada pelos professores de UFRGS e PUCRS – de que esse empreendimento tomasse o determinismo biológico como pressuposto para um determinismo social. As duas coisas que fundamentam a reação dos psicólogos, nesse embate, são 1) a análise genética de jovens homicidas e 2) a escolha de jovens da FASE, já condenados por homicídio.
Uma das dificuldades para entender essa briga é que o único procedimento investigativo até agora especificado é a análise genética. Outra, que o grupo escolhido seja da FASE. O fato de que só a investigação da genética dos jovens homicidas apenados seja especificada na pesquisa multidisciplinar deve justificação, sobretudo porque só geneticistas ou neurocientistas, como é o caso de Izquierdo, pronunciaram-se como parte do interesse puramente científico que estaria ameaçado pelos obscurantistas. Nenhum jurista, nenhum antropólogo, sociólogo ou economista disse algo, ainda, quanto aos procedimentos que serão adotados nas suas investigações que farão parte da pesquisa. Disso sobressai pelo menos a hipótese de que o aspecto genético esteja sendo privilegiado. E esse privilégio, supostamente apresentado nos embates via jornal, certamente deve ser demonstrado. Por que uma investigação genética desempenharia algum privilégio epistêmico no acesso às causas da violência? Em quê essa variante da premissa naturalista fundamenta seu manifesto – ainda que midiaticamente – privilégio sobre as outras áreas, ditas partes do mesmo empreendimento investigativo? Uma das dificuldades incontornáveis dessa variante do uso da premissa naturalista consiste, vejam bem, em que não é verdade que o seqüenciamento do genoma humano está completo, de sorte que, falando rigorosamente, sequer se pode estar reivindicando como variante da premissa naturalista, tout court – e pelo menos ainda – o procedimento estritamente genético da pesquisa.
A busca dessa demonstração é o que diferencia um epistemólogo de um cientista e também é o que marca a distinção da ciência frente aos interesses mundanos. Portanto, essa demonstração é todo o ponto que merece ser esclarecido, quanto à primeira dificuldade e, também, à segunda, relativa à escolha dos condenados já na FASE. Ocorre que essa demonstração parece obscurecida pela fé de que 1) a ciência vai nos salvar da violência e 2) a violência é um fenômeno individualmente determinável. É evidente que é assustador, dado o grau de violência das cidades brasileiras – ou latino-americanas, africanas, do Leste Europeu, enfim -, perceber que há muita gente a levar essas duas crenças a sério. E, como não bastasse, jogando-as para o barco retórico do esclarecimento. O professor de neurologia da PUCRS, Jaderson Costa da Costa afirmou (ZH, 28/01/2008) que “com o que se conhece até agora, a situação [da violência] não mudou”. É, isso aí: o problema da violência é da ordem do conhecimento, não da ação. É mais um problema da série dos que estão, conforme Foucault disse, no “difundir-se” da destruição, sob o título de ciência.
Tudo se passa como se o conhecimento ocupasse o lugar das preces e da compra de lugares ao céu. Sendo que, no lugar de salvação das almas, resta a salvação do corpo e da saúde, ainda que esta, a saúde, tenha a característica reguladora da realização impossível. Um incauto poderia perguntar: por que impossível? Porque sociedades não são celestiais e a ordem das ações não pertence ao universo mágico dos anjos, mesmo que eles assinem cheques e autografem livros como fossem cientistas. Essa transfiguração do conhecimento em prece religiosa é tão dogmática como a aversão da psicologia – que não sei onde reside, exatamente – às considerações de natureza genética, não só sobre a violência.
Enquanto os defensores da salvação pela ciência não especificam os demais procedimentos multidisciplinares do projeto de pesquisa, há pelo menos uma hipótese a ser considerada. Considerada e não contemplada pela escolha do grupo de controle e do grupo de jovens homicidas apenados da FASE. O código de trânsito brasileiro recepciona as figuras do homicídio doloso e culposo, com a variante do dolo eventual. Disso se segue que o responsável por uma morte no trânsito é, uma vez condenado num devido processo legal, um homicida. Esse é um dado real, demonstrado com uma simples abertura do texto do código.
Eis a hipótese: e se a investigação jurídica, a sociológica e a econômica chegarem ao dado de que há uma quantidade maior de jovens homicidas no trânsito do que os apenados da FASE, soltos nas ruas, com direito a bons advogados, que jamais puseram nem porão os seus pés na FASE? A justificativa da permanência da escolha pelos jovens homicidas apenados da FASE só se apresenta se 1) a violência no trânsito for considerada de ordem alheia à violência social, de modo que matar no trânsito não ameaça a segurança pública e 2) se for mais fácil usar jovens pobres, negros e socialmente desamparados como objetos de análise, do que aqueles outros, também homicidas – portanto, juridicamente tão criminosos quanto – que não estão na FASE.
Qual o problema? É que essa hipótese, acima, não pode ser descartada e, contudo, a escolha pelos jovens homicidas apenados da FASE pretende ser neutra. Conforme o neurologista que citei disse: “escolhemos a FASE porque acreditamos que estariam lá”. E se não estiverem só lá? No mínimo, a multidisciplinaridade merece ser levada a sério.
Por fim – desta segunda parte – não vou enveredar por argumentos ad hitlerum. Simplesmente não é preciso, já que não calo nem me abstenho. Agora bem, há algo que é necessário, sim, ser lembrado. Alguns meses após assumir o governo do estado do Rio Grande do Sul, Yeda Crusius foi a entrevistada do programa Roda Viva, da TVCultura de São Paulo. Questionada sobre a violência, a governadora respondeu, de pronto, algo mais ou menos assim: “já se sabe, através de estudos, que há um componente genético nesse problema da violência”. Não sei o que era mais bizarro, se o queixo da governadora ou a ausência de referência ao tal estudo.
Isso para lembrar que há algo muito esquisito e (talvez seja o caso lembrar) cientificamente indefensável neste projeto de pesquisa de que estou falando. Osmar Terra é secretário de estado da saúde e é, também, aluno de uma pós-graduação na medicina da PUCRS. Consta nas matérias de ZH que o secretário é um dos membros desta pesquisa. O que um secretário de saúde faz nesta pesquisa? Isso não seria motivo de escândalo, por si só, perante ninguém? Então, não é só a circularidade da petição de princípio de que não se faz, nunca, a ciência, o problema. Não é a hipótese de que a violência seja um caso de saúde, mas que a saúde mental – genética? – seja parte de uma decisão que não é, pelo menos segundo o que se leu nos jornais, científica, absolutamente, mas política, o que espanta. Isso não é esclarecimento, nem ciência. É um assombro obscurantista e historicamente temerário.
Continuo, com Lebrun. Recomendo vivamente o site português Conta Natura, sobre política de ciência, biologia, genética e quetais. É excelente e nada menos.
Departamentos de Biociências e Medicina da UFRGS e da PUCRS estão candidatando uma pesquisa sobre as possíveis causas da violência nas mentes de homicidas adolescentes. A pesquisa, diz-nos o célebre e sério pesquisador Ivan Izquierdo, é de amplo espectro, multi – ou trans, ou inter – disciplinar e terá como “grupo de controle” jovens voluntários não-apenados e jovens apenados, na FASE (Fundação de Atendimento Sócio-Educativo do Estado), por homicídio. A pesquisa, segundo Zero Hora do dia 28 de janeiro deste ano, visa a “investigar os mais variados aspectos que possam explicar o que leva um jovem a se comportar de maneira violenta” (matéria de Marcelo Gonzatto). Izquierdo escreveu, dias antes, um breve texto no qual acusa de obscurantistas aqueles que se opuseram à pesquisa. Os opositores seriam psicólogos, representados pelo Conselho Federal de Psicologia e estariam acusando a hipótese – negada pelos professores de UFRGS e PUCRS – de que esse empreendimento tomasse o determinismo biológico como pressuposto para um determinismo social. As duas coisas que fundamentam a reação dos psicólogos, nesse embate, são 1) a análise genética de jovens homicidas e 2) a escolha de jovens da FASE, já condenados por homicídio.
Uma das dificuldades para entender essa briga é que o único procedimento investigativo até agora especificado é a análise genética. Outra, que o grupo escolhido seja da FASE. O fato de que só a investigação da genética dos jovens homicidas apenados seja especificada na pesquisa multidisciplinar deve justificação, sobretudo porque só geneticistas ou neurocientistas, como é o caso de Izquierdo, pronunciaram-se como parte do interesse puramente científico que estaria ameaçado pelos obscurantistas. Nenhum jurista, nenhum antropólogo, sociólogo ou economista disse algo, ainda, quanto aos procedimentos que serão adotados nas suas investigações que farão parte da pesquisa. Disso sobressai pelo menos a hipótese de que o aspecto genético esteja sendo privilegiado. E esse privilégio, supostamente apresentado nos embates via jornal, certamente deve ser demonstrado. Por que uma investigação genética desempenharia algum privilégio epistêmico no acesso às causas da violência? Em quê essa variante da premissa naturalista fundamenta seu manifesto – ainda que midiaticamente – privilégio sobre as outras áreas, ditas partes do mesmo empreendimento investigativo? Uma das dificuldades incontornáveis dessa variante do uso da premissa naturalista consiste, vejam bem, em que não é verdade que o seqüenciamento do genoma humano está completo, de sorte que, falando rigorosamente, sequer se pode estar reivindicando como variante da premissa naturalista, tout court – e pelo menos ainda – o procedimento estritamente genético da pesquisa.
A busca dessa demonstração é o que diferencia um epistemólogo de um cientista e também é o que marca a distinção da ciência frente aos interesses mundanos. Portanto, essa demonstração é todo o ponto que merece ser esclarecido, quanto à primeira dificuldade e, também, à segunda, relativa à escolha dos condenados já na FASE. Ocorre que essa demonstração parece obscurecida pela fé de que 1) a ciência vai nos salvar da violência e 2) a violência é um fenômeno individualmente determinável. É evidente que é assustador, dado o grau de violência das cidades brasileiras – ou latino-americanas, africanas, do Leste Europeu, enfim -, perceber que há muita gente a levar essas duas crenças a sério. E, como não bastasse, jogando-as para o barco retórico do esclarecimento. O professor de neurologia da PUCRS, Jaderson Costa da Costa afirmou (ZH, 28/01/2008) que “com o que se conhece até agora, a situação [da violência] não mudou”. É, isso aí: o problema da violência é da ordem do conhecimento, não da ação. É mais um problema da série dos que estão, conforme Foucault disse, no “difundir-se” da destruição, sob o título de ciência.
Tudo se passa como se o conhecimento ocupasse o lugar das preces e da compra de lugares ao céu. Sendo que, no lugar de salvação das almas, resta a salvação do corpo e da saúde, ainda que esta, a saúde, tenha a característica reguladora da realização impossível. Um incauto poderia perguntar: por que impossível? Porque sociedades não são celestiais e a ordem das ações não pertence ao universo mágico dos anjos, mesmo que eles assinem cheques e autografem livros como fossem cientistas. Essa transfiguração do conhecimento em prece religiosa é tão dogmática como a aversão da psicologia – que não sei onde reside, exatamente – às considerações de natureza genética, não só sobre a violência.
Enquanto os defensores da salvação pela ciência não especificam os demais procedimentos multidisciplinares do projeto de pesquisa, há pelo menos uma hipótese a ser considerada. Considerada e não contemplada pela escolha do grupo de controle e do grupo de jovens homicidas apenados da FASE. O código de trânsito brasileiro recepciona as figuras do homicídio doloso e culposo, com a variante do dolo eventual. Disso se segue que o responsável por uma morte no trânsito é, uma vez condenado num devido processo legal, um homicida. Esse é um dado real, demonstrado com uma simples abertura do texto do código.
Eis a hipótese: e se a investigação jurídica, a sociológica e a econômica chegarem ao dado de que há uma quantidade maior de jovens homicidas no trânsito do que os apenados da FASE, soltos nas ruas, com direito a bons advogados, que jamais puseram nem porão os seus pés na FASE? A justificativa da permanência da escolha pelos jovens homicidas apenados da FASE só se apresenta se 1) a violência no trânsito for considerada de ordem alheia à violência social, de modo que matar no trânsito não ameaça a segurança pública e 2) se for mais fácil usar jovens pobres, negros e socialmente desamparados como objetos de análise, do que aqueles outros, também homicidas – portanto, juridicamente tão criminosos quanto – que não estão na FASE.
Qual o problema? É que essa hipótese, acima, não pode ser descartada e, contudo, a escolha pelos jovens homicidas apenados da FASE pretende ser neutra. Conforme o neurologista que citei disse: “escolhemos a FASE porque acreditamos que estariam lá”. E se não estiverem só lá? No mínimo, a multidisciplinaridade merece ser levada a sério.
Por fim – desta segunda parte – não vou enveredar por argumentos ad hitlerum. Simplesmente não é preciso, já que não calo nem me abstenho. Agora bem, há algo que é necessário, sim, ser lembrado. Alguns meses após assumir o governo do estado do Rio Grande do Sul, Yeda Crusius foi a entrevistada do programa Roda Viva, da TVCultura de São Paulo. Questionada sobre a violência, a governadora respondeu, de pronto, algo mais ou menos assim: “já se sabe, através de estudos, que há um componente genético nesse problema da violência”. Não sei o que era mais bizarro, se o queixo da governadora ou a ausência de referência ao tal estudo.
Isso para lembrar que há algo muito esquisito e (talvez seja o caso lembrar) cientificamente indefensável neste projeto de pesquisa de que estou falando. Osmar Terra é secretário de estado da saúde e é, também, aluno de uma pós-graduação na medicina da PUCRS. Consta nas matérias de ZH que o secretário é um dos membros desta pesquisa. O que um secretário de saúde faz nesta pesquisa? Isso não seria motivo de escândalo, por si só, perante ninguém? Então, não é só a circularidade da petição de princípio de que não se faz, nunca, a ciência, o problema. Não é a hipótese de que a violência seja um caso de saúde, mas que a saúde mental – genética? – seja parte de uma decisão que não é, pelo menos segundo o que se leu nos jornais, científica, absolutamente, mas política, o que espanta. Isso não é esclarecimento, nem ciência. É um assombro obscurantista e historicamente temerário.
Continuo, com Lebrun. Recomendo vivamente o site português Conta Natura, sobre política de ciência, biologia, genética e quetais. É excelente e nada menos.
Texto escrito por Katarina Peixoto, publicado no blog: Palestina do Espetáculo Triunfante, em 31/01/2008
Um comentário:
Parabéns pelo excelente texto
Acredito que tiveste uma visão bem analítica do caso.
Acredito que teria que ser explicado melhor o caso do secretário.
mas como a corrupção do país é algo que não se leva a fundo, continua....
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