Tenho acompanhado, na imprensa, com interesse de quem trabalha com adolescentes que cometeram atos infracionais, a polêmica sobre a pesquisa com internos da Fase. Tenho ficado surpresa, e mesmo chocada, com expressões usadas por defensores da pesquisa tais como "mentes criminosas", "adolescentes psicopatas" e/ou "sociopatas". Estas expressões denotam posição preconceituosa e concepções superadas do ponto de vista teórico e mesmo legal pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. Afirmar a priori que internos na Fase são psicopatas só pode ser feito por alguém que está distante do problema. Trabalhando na área há mais de duas décadas e coordenando um programa que atendeu a mais de mil adolescentes que praticaram atos infracionais, nos últimos 11 anos, afirmo com tranqüilidade que o índice de psicopatas é pequeno entre eles. Cabe lembrar ainda que, segundo a legislação em vigor, os psicopatas deverão ser submetidos a tratamentos específicos e não ficarem simplesmente privados de liberdade com outros adolescentes que cumprem medidas socioeducativas. Quem acompanha a história da Fase, antes Febem, sabe que a presença de um único adolescente portador de psicopatia, num internato, pode ser fator de graves problemas e de violências internas. Caracterizar a todos como psicopatas e medicá-los em massa aparece muitas vezes como forma fácil de contenção numa postura que abre mão do desenvolvimento de trabalho educativo e da recuperação possível para parte significativa desses adolescentes.
Tanto o estatuto, já citado, quanto o Sinase - Sistema Nacional de Medidas Socioeducativas - são claros ao definirem as exigências do trabalho socioeducativo. Por outro lado, considerar que "pessoas com trajetórias de vida problemáticas, que cometeram algum delito grave e que vivem em confinamento rodeados de criminosos" não seriam afetadas por passar algumas horas em aparelho de ressonância magnética é mais uma vez demonstrar desconhecimento dessa população. Já ouvi muitas vezes adolescentes dizerem: "Não adianta dona, eu sou ruim da cabeça, já me fizeram até eletro". O fato de terem sido submetidos a exames de eletroencefalograma acaba por convencê-los de que portam mal irremediável e que, portanto não têm como encontrar um caminho de volta. Não obstante, inúmeros estudos demonstram que a participação na vida do crime é na maioria das vezes motivada pela busca de afirmação pessoal e de reconhecimento social e que poderá, portanto, ser agravada com procedimentos que baixem a auto-estima e a confiança em si. Se é certo que as pesquisas neurológicas têm uma contribuição a dar na compreensão do comportamento violento, é certo também que não se deve absolutizá-las ignorando estudos já desenvolvidos por especialistas de outras áreas, como sociólogos, psicólogos, antropólogos, educadores etc.
Não há maior obscurantismo do que aquele que considera a pesquisa inquestionável. Além disso, a pesquisa com humanos está subordinada a princípios éticos que vão além de um consentimento informado, como, por exemplo, de que a mesma não seja prejudicial às pessoas nas quais se aplica. Pergunta-se: que condições de escolha para participar da pesquisa têm os privados de liberdade? E mais: que conseqüências essa pesquisa pode ter para suas vidas?Não há maior obscurantismo do que considerar inquestionável o que é feito em nome da ciência. Não há ciência definitiva nem verdade acabada. Esta é a maior descoberta científica da contemporaneidade.O último século avançou na consciência coletiva e na legislação quando reconheceu que todas as pessoas, mesmo os criminosos, são sujeitos de direitos. Entre estes direitos está o de não serem manipulados por experiências científicas que possam prejudicá-los.
CARMEM MARIA CRAIDY (Professora titular Faced/UFRGS).
Artigo publicado no jornal Zero Hora, em 13/02/2008
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