Renato Ferreira*
Racismo estrutural histórico
Historicamente, é a desigualdade um dos caracteres mais significativos da sociedade brasileira. No que tange às relações raciais, a opressão estabelecida sobre os negros se tornou ainda mais aguda por conta de o Estado não ter implementado políticas públicas voltadas para promover os direitos dos libertos depois da abolição.
Isso possibilitou a cristalização de um racismo estrutural que se caracteriza pela manutenção de processos nefastos de exclusão que legaram aos afro-brasileiros uma trajetória inconclusa em relação à cidadania. Vale dizer que a ausência de políticas dirigidas à promoção dos negros cristalizou diferenças abissais entre estes e os brancos, tornando a superação dessas desigualdades como um dos principais desafios republicanos para este início de século.
Os afro-brasileiros, que correspondem a 47,3% da população, encontram-se em situação profundamente desvantajosa em relação aos brancos em todos os indicadores sociais relevantes. As desigualdades raciais na educação, por exemplo, não foram reduzidas de modo significativo. Até a década de 1950, quase 70% dos negros eram analfabetos. Em 2004, 47% dos negros com 60 anos ou mais de idade eram analfabetos enquanto 25% dos brancos estavam na mesma situação.³). Entre as crianças negras, de 10 a 14 anos de idade, o analfabetismo chega a 5,5% comparados a 1,8% entre as crianças brancas da mesma idade.
Atualmente, a média de estudos dos brasileiros brancos é de 7,7 anos e a dos negros é de 5,8 anos. Está em 16% a estimativa de negros, maiores de 15 anos, analfabetos. Esse valor é de 7% para os brancos.
Já no ensino superior, a situação é ainda mais grave. Apenas 10,5% dos jovens de 18 a 24 anos estão matriculados nas universidades. Dentre eles, o número de negros é ínfimo, 94% deste grupo não está matriculado nestas instituições de ensino.4 Vale dizer que o Brasil sempre desenvolveu uma educação elitista, seus processos funcionam como filtragem humana – produto de uma discriminação estruturada – que se reproduz historicamente, de forma pusilânime, contra pobres e negros.5
Há cinco anos, algumas universidades públicas começaram, ou tiveram que começar, a adotar políticas de democratização do acesso às suas vagas. Segundo dados do Ministério da Educação, o Brasil possui 224 instituições públicas de ensino superior. Dessas, 87 são federais, 75 estaduais e 62 municipais.
O mapa das ações afirmativas na Educação Superior², pesquisa recente realizada pelo Laboratório de Políticas Públicas da Uerj, constatou que 72 instituições (32 % do total de universidades públicas) promovem algum tipo de ação afirmativa. O estudo demonstrou também, que existem variações significativas nesse processo de inclusão.
Essas variações são relativas ao modelo da política pública adotada: sistema de cotas, sistema de bonificação por pontos, reserva de vagas, etc e diferem quanto ao grupo promovido pela política, tendo a ver com a identificação dos sujeitos de direitos da ação afirmativa: negros, indígenas, pessoas com deficiência, alunos da rede pública, pobres, mulheres negras etc.
O estudo, comparativo entre as políticas de inclusão, demonstrou que existe uma ampla adoção de cotas étnico-raciais. Ao todo, 53 universidades implementaram esse tipo de política. Dessas, 34 instituições possuem medidas afirmativas para negros, sendo que 31 se desenvolvem pelo sistema de cotas e três por meio do sistema de bonificação por pontos. E uma universidade adota a reserva, de um número específico de vagas, para mulheres negras. Identificamos, no total, nove instituições que adotam ações afirmativas para pessoas com deficiência.
O estado de São Paulo é o que possui mais universidades com ações afirmativas, são sete no total. E, no que diz respeito aos indígenas, já são 37 instituições que adotam ações afirmativas (a maioria sob a forma de reserva de vagas). O estado do Paraná possui o maior número de instituições que aplicam essa forma de inclusão, são 18 ao todo.
É importante ressaltar que a pesquisa também demonstra um pequeno avanço de políticas de inclusão adotadas, sobretudo por universidades federais no uso de sua autonomia, somente para estudantes de escola pública, deixando de contemplar outros grupos de minorias e, conseqüentemente, as lutas sociais que deram suporte ao início do processo de democratização do acesso ao ensino superior.
Trata-se de uma espécie do que chamamos de neojeitinho, no qual, pelo subterfúgio vazio da adoção de uma política pública sem corte étnico-racial, por exemplo, se pretende promover a cidadania dos mais excluídos. O que se quer com isso, na verdade, é evitar um verdadeiro enfrentamento da questão. A promoção do debate, ainda que pelo enfrentamento, é salutar e é a principal forma para o limiar da superação do nosso racismo. Enquanto não houver debate, o racismo estrutural brasileiro continuará vencendo.
Temos, portanto, 17 universidades – boa parte delas na região Nordeste – que estabeleceram medidas somente para estudantes de escola pública. Uma instituição adota o sistema de cotas somente para alunos pobres, independentemente de eles serem oriundos da rede pública ou privada de ensino.
O critério mais utilizado para reconhecer os sujeitos de direito da ação afirmativa é a autodeclaração. Por ela, o candidato à política de inclusão tem que se declarar pertencente aquele grupo específico (negros, indígenas etc.) e dizer que quer concorrer para às vagas destinadas àquela minoria.
Observamos que o desenvolvimento da instituição de políticas afirmativas no ensino superior remete para a necessidade de promover uma ampla reflexão sobre as relações raciais e as práticas institucionais associadas à implementação dessas políticas de inclusão. Devemos ampliar o debate sobre a diversidade de modelos e das estratégias da academia para a implementação de ações afirmativas e, com isso, permitir uma abordagem crítica sobre as dificuldades e entraves (jurídicos, políticos e institucionais), bem como as conquistas, derivadas da implementação dessas políticas.
Nossa emancipação definitiva requer engajamento e reflexão conjunta em prol da cidadania, e também maior participação política, econômica, social e cultural. As políticas afirmativas se constituem, nesse contexto, como um dos instrumentos eficazes para a promoção dos povos historicamente excluídos e são meios que podem ajudar na luta contra a marginalização possibilitando o desfazimento de desigualdades incompatíveis com o Estado democrático de direito.
* Advogado especialista em Direito e Relações Raciais e pesquisador do Laboratório de Políticas Públicas da Uerj.
As opiniões das colunas não traduzem, necessariamente, posições do Ibase.
Notas de Rodapé:
1. Neste artigo nos referimos apenas às instituições públicas de ensino superior.
2. Publicado em www.politicasdacor.net
3. Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (IPEA) & Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para a Mulher (Unifem). Retratos das Desigualdades, 2006.
4. Ver entrevista do economista Marcelo Paixão dada ao jornal Folha Dirigida (Caderno de Educação), publicada em 15 de janeiro de 2008.
5. Ver em A Educação despejada. Artigo de Renato Ferreira Fonte: http://oglobo.globo.com/opiniao/mat/2007/02/28/294741787.asp - Publicado em 28.2.07.
Publicado em 14/3/2008.
http://www.ibase.br/modules.php?name=Conteudo&pid=2252
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Racismo estrutural histórico
Historicamente, é a desigualdade um dos caracteres mais significativos da sociedade brasileira. No que tange às relações raciais, a opressão estabelecida sobre os negros se tornou ainda mais aguda por conta de o Estado não ter implementado políticas públicas voltadas para promover os direitos dos libertos depois da abolição.
Isso possibilitou a cristalização de um racismo estrutural que se caracteriza pela manutenção de processos nefastos de exclusão que legaram aos afro-brasileiros uma trajetória inconclusa em relação à cidadania. Vale dizer que a ausência de políticas dirigidas à promoção dos negros cristalizou diferenças abissais entre estes e os brancos, tornando a superação dessas desigualdades como um dos principais desafios republicanos para este início de século.
Os afro-brasileiros, que correspondem a 47,3% da população, encontram-se em situação profundamente desvantajosa em relação aos brancos em todos os indicadores sociais relevantes. As desigualdades raciais na educação, por exemplo, não foram reduzidas de modo significativo. Até a década de 1950, quase 70% dos negros eram analfabetos. Em 2004, 47% dos negros com 60 anos ou mais de idade eram analfabetos enquanto 25% dos brancos estavam na mesma situação.³). Entre as crianças negras, de 10 a 14 anos de idade, o analfabetismo chega a 5,5% comparados a 1,8% entre as crianças brancas da mesma idade.
Atualmente, a média de estudos dos brasileiros brancos é de 7,7 anos e a dos negros é de 5,8 anos. Está em 16% a estimativa de negros, maiores de 15 anos, analfabetos. Esse valor é de 7% para os brancos.
Já no ensino superior, a situação é ainda mais grave. Apenas 10,5% dos jovens de 18 a 24 anos estão matriculados nas universidades. Dentre eles, o número de negros é ínfimo, 94% deste grupo não está matriculado nestas instituições de ensino.4 Vale dizer que o Brasil sempre desenvolveu uma educação elitista, seus processos funcionam como filtragem humana – produto de uma discriminação estruturada – que se reproduz historicamente, de forma pusilânime, contra pobres e negros.5
Há cinco anos, algumas universidades públicas começaram, ou tiveram que começar, a adotar políticas de democratização do acesso às suas vagas. Segundo dados do Ministério da Educação, o Brasil possui 224 instituições públicas de ensino superior. Dessas, 87 são federais, 75 estaduais e 62 municipais.
O mapa das ações afirmativas na Educação Superior², pesquisa recente realizada pelo Laboratório de Políticas Públicas da Uerj, constatou que 72 instituições (32 % do total de universidades públicas) promovem algum tipo de ação afirmativa. O estudo demonstrou também, que existem variações significativas nesse processo de inclusão.
Essas variações são relativas ao modelo da política pública adotada: sistema de cotas, sistema de bonificação por pontos, reserva de vagas, etc e diferem quanto ao grupo promovido pela política, tendo a ver com a identificação dos sujeitos de direitos da ação afirmativa: negros, indígenas, pessoas com deficiência, alunos da rede pública, pobres, mulheres negras etc.
O estudo, comparativo entre as políticas de inclusão, demonstrou que existe uma ampla adoção de cotas étnico-raciais. Ao todo, 53 universidades implementaram esse tipo de política. Dessas, 34 instituições possuem medidas afirmativas para negros, sendo que 31 se desenvolvem pelo sistema de cotas e três por meio do sistema de bonificação por pontos. E uma universidade adota a reserva, de um número específico de vagas, para mulheres negras. Identificamos, no total, nove instituições que adotam ações afirmativas para pessoas com deficiência.
O estado de São Paulo é o que possui mais universidades com ações afirmativas, são sete no total. E, no que diz respeito aos indígenas, já são 37 instituições que adotam ações afirmativas (a maioria sob a forma de reserva de vagas). O estado do Paraná possui o maior número de instituições que aplicam essa forma de inclusão, são 18 ao todo.
É importante ressaltar que a pesquisa também demonstra um pequeno avanço de políticas de inclusão adotadas, sobretudo por universidades federais no uso de sua autonomia, somente para estudantes de escola pública, deixando de contemplar outros grupos de minorias e, conseqüentemente, as lutas sociais que deram suporte ao início do processo de democratização do acesso ao ensino superior.
Trata-se de uma espécie do que chamamos de neojeitinho, no qual, pelo subterfúgio vazio da adoção de uma política pública sem corte étnico-racial, por exemplo, se pretende promover a cidadania dos mais excluídos. O que se quer com isso, na verdade, é evitar um verdadeiro enfrentamento da questão. A promoção do debate, ainda que pelo enfrentamento, é salutar e é a principal forma para o limiar da superação do nosso racismo. Enquanto não houver debate, o racismo estrutural brasileiro continuará vencendo.
Temos, portanto, 17 universidades – boa parte delas na região Nordeste – que estabeleceram medidas somente para estudantes de escola pública. Uma instituição adota o sistema de cotas somente para alunos pobres, independentemente de eles serem oriundos da rede pública ou privada de ensino.
O critério mais utilizado para reconhecer os sujeitos de direito da ação afirmativa é a autodeclaração. Por ela, o candidato à política de inclusão tem que se declarar pertencente aquele grupo específico (negros, indígenas etc.) e dizer que quer concorrer para às vagas destinadas àquela minoria.
Observamos que o desenvolvimento da instituição de políticas afirmativas no ensino superior remete para a necessidade de promover uma ampla reflexão sobre as relações raciais e as práticas institucionais associadas à implementação dessas políticas de inclusão. Devemos ampliar o debate sobre a diversidade de modelos e das estratégias da academia para a implementação de ações afirmativas e, com isso, permitir uma abordagem crítica sobre as dificuldades e entraves (jurídicos, políticos e institucionais), bem como as conquistas, derivadas da implementação dessas políticas.
Nossa emancipação definitiva requer engajamento e reflexão conjunta em prol da cidadania, e também maior participação política, econômica, social e cultural. As políticas afirmativas se constituem, nesse contexto, como um dos instrumentos eficazes para a promoção dos povos historicamente excluídos e são meios que podem ajudar na luta contra a marginalização possibilitando o desfazimento de desigualdades incompatíveis com o Estado democrático de direito.
* Advogado especialista em Direito e Relações Raciais e pesquisador do Laboratório de Políticas Públicas da Uerj.
As opiniões das colunas não traduzem, necessariamente, posições do Ibase.
Notas de Rodapé:
1. Neste artigo nos referimos apenas às instituições públicas de ensino superior.
2. Publicado em www.politicasdacor.net
3. Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (IPEA) & Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para a Mulher (Unifem). Retratos das Desigualdades, 2006.
4. Ver entrevista do economista Marcelo Paixão dada ao jornal Folha Dirigida (Caderno de Educação), publicada em 15 de janeiro de 2008.
5. Ver em A Educação despejada. Artigo de Renato Ferreira Fonte: http://oglobo.globo.com/opiniao/mat/2007/02/28/294741787.asp - Publicado em 28.2.07.
Publicado em 14/3/2008.
http://www.ibase.br/modules.php?name=Conteudo&pid=2252
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