segunda-feira, 31 de março de 2008

"Consentimento" ou "Constrangimento" Informado? Para Além do Bem e do Mal, o debate tem que continuar...


Patrice Schuch (doutora em Antropologia Social, pesquisadora associada ao Núcleo de Antropologia e Cidadania da UFRGS)*

I - Introdução

Na semana passada fui convidada, pela ONG "Educadores para a Paz", a debater o projeto de pesquisa de um grupo de pesquisadores do Departamento de Medicina e Psicologia da PUCRS e de genética da UFRGS, acerca do estudo sobre agressividade e seus possíveis fatores associados. A análise será desenvolvida entre 50 adolescentes homicidas internados na Fundação de Atendimento Sócio-Educativo (FASE) do Rio Grande do Sul, de idades entre 15 e 21 anos, com um correspondente grupo de controle. O projeto prevê dois anos de trabalho e tem o financiamento da empresa GERDAU, com orçamento no valor de 120 mil reais.
O convite da ONG, sinal de seu sério engajamento na promoção da paz, permitiu-me conhecer o projeto a partir das entrevistas dadas pelos coordenadores da pesquisa, assim como o debate público ensejado pelas intenções do estudo. Sobretudo, deu-me a oportunidade para fazer um balanço avaliativo sobre as possibilidades e implicações desse tipo de trabalho, ensejando várias questões que considero importantes e necessárias de serem respondidas pela equipe de pesquisa, para subsidiar o debate público do tema. Precisamos conhecer melhor o projeto.
Mesmo considerando o perigo de colocar questões sobre o projeto a partir de entrevistas sobre o tema expostas na mídia - – não conheço o projeto original, em função da falta de acesso ao mesmo – e partindo do pressuposto do respeito ao trabalho dos pesquisadores, considero pertinente problematizar três fatores, na esperança de prosseguir a discussão: 1) o silêncio sobre a metodologia e as hipóteses que guiam a investigação dos aspectos sociais relacionados à agressividade; 2) o aparentemente sutil, mas importante, deslocamento do estudo sobre a agressividade para o estudo sobre a infração; 3) a vulnerabilidade do universo de pesquisa escolhido para o estudo: adolescentes internados na FASE. Este texto visa ampliar o alcance dessas interrogações, assim como retomar a discussão sobre a pesquisa e seus efeitos.

II- Sobre o “conhecer” perspectivo

O principal foco das discussões públicas sobre a pesquisa se deu nos meses de janeiro e fevereiro de 2008, a partir da publicação de uma apresentação sucinta do projeto na Folha de São Paulo, no final do ano de 2007. Prosseguiu-se uma série de reações que, muitas vezes, trabalharam com um conjunto de oposições um tanto quanto genéricas entre ciência/política, biologia/cultura, fatores genéticos/fatores sociais, que talvez não tenham contribuído o suficiente para avaliaras hipóteses da pesquisa, seus procedimentos de trabalho e possíveis implicações. Também ficaram em abertas questões de fundo, suscitadas a partir da discussão sobre o projeto de pesquisa, como o estatuto da ciência e suas implicações sociais, a problemática da violência e o sistema de justiça juvenil.
Tendo me dedicado há alguns anos sobre o estudo antropológico do conjunto de intervenções sociais dirigidas à infância e juventude, sinto-me à vontade para contribuir no prosseguimento de um debate que surgiu com muito gás no início deste ano, mas que, estranhamente, silenciou-se no seu desenvolvimento. Acredito que o projeto de pesquisa esteja sendo avaliado por comissões de ética das universidades propositoras, mas um longo debate ainda deve ser travado. Este envolve também os órgãos de justiça juvenil e as instituições diretamente implicadas na pesquisa - Juizado da Infância e Juventude, Ministério Público, Defensoria Pública e FASE –, além das entidades de política de atendimento à infância e juventude que, por lei - Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA, 1990) -, deve ser elaborada coletivamente. Isto significa implicar na discussão os vários órgãos representativos da política democrática e participativa almejada pela lei: Conselhos Municipais e Estaduais de Direitos da Criança e do Adolescente, ONG's, escolas, entidades de promoção e proteção de direitos humanos, instituições ligadas à segurança pública e à assistência social, universidades e centros de pesquisa, Conselhos profissionais, etc. Enfim, uma ampla rede de agentes e agências que são tão responsáveis pelas escolhas a serem realizadas e seus efeitos, como as Comissões de Ética da PUCRS e UFRGS.
Após uma longa história de existência da ciência e sua consolidação, hoje sabemos que existe uma relação muito estreita entre fatos científicos e problemas sociais. Longe de haver uma autonomia completa da ciência frente à sociedade, os saberes científicos são sempre parciais, provisórios e frutos de embates sociais que envolvem disputas diversas sobre o que pesquisar, em que grupos e de que forma. Todas essas questões constrangem o que será constituído como "científico" e passará a constar como enunciado de verdade. Como já referiu Nietzsche há muito tempo, noções como "puro sujeito do conhecimento", “conhecimento em si" e "razão pura" dependem de um "olho" que não pode ser absolutamente imaginado, um "olho" voltado para nenhuma direção, no qual as forças ativas e interpretativas que fazem com que ver seja "ver-algo" estejam imobilizadas e ausentes. Se pensarmos sob esse ponto de vista, a discussão sobre a ética da pesquisa não se restringe às Comissões de Ética das Universidades, mesmo com suas valiosas e imprescindíveis contribuições. Envolve, pois, debates sociais muito mais amplos. Silenciar, nesse debate, é tomar posição: fechar os "olhos".

III – O que estamos “vendo”, afinal?

Pelo que foi possível deduzir a partir das fontes indiretas sobre o projeto, creio que o mesmo não estabelece, a priori, uma relação de causalidade entre biologia/genética e agressividade, o que o isenta de certas críticas. Seu objetivo seria entender o relacionamento entre quatro fatores no desenvolvimento da agressividade:
1) fatores cerebrais (a serem investigados através de ressonância magnética; a hipótese é de que haja deficiência ou atrofia no lobo frontal em pessoas mais agressivas);
2) elementos genéticos (a serem estudados através do estudo do DNA; idéia de que haja polimorfismos associados com eventos estressores que possam estar ligados à agressividade);
3) elementos psicológicos (a serem investigados através da aplicação de três questionários distintos: sobre traumas na infância; sobre histórico psicológico e escolar; sobre a presença de extrema agressividade que indique psicopatia. A hipótese é que eventos traumáticos marquem ainfância de pessoas mais agressivas);
4) fatores sociais (procedimentos não especificados ao longo dos debates públicos sobre a pesquisa; não há nenhuma informação sobre a presença de membro da equipe de trabalho com especialização científica em sociologia/antropologia/educação ou outras ciências humanas; O pesquisador Renato Flores diz que sua equipe será também responsável por essa avaliação, embora não haja maiores especificações sobre os procedimentos e hipóteses a serem adotados, nessa área).

3.1. O desaparecimento do social
Chamo a atenção de que, embora o ideário da pesquisa implique o estudo de quatro variáveis, a ênfase colocada é mesmo nos aspectos cerebrais e genéticos da agressividade - o entendimento da manifestação física da agressividade, nos termos dos pesquisadores. Mesmo que o estudo psicológico preveja métodos específicos de coleta de dados, ele não está relacionado – ao menos nas falas dos pesquisadores publicadas em entrevistas sobre o tema - com os estudos genéticos e cerebrais. Quanto aos aspectos sociais, há um estranho silêncio sobre a metodologia para sua apreensão, bem como a sua importância ao longo das análises a serem realizadas. É relevante que seja esclarecido, pelos propositores da pesquisa: qual a metodologia de pesquisa e as hipóteses que guiam o estudo dos aspectos sociais relativos ao desenvolvimento da agressividade? Sobretudo, de que forma está sendo pensada a sua relação com os demais elementos do estudo, isto é, com os elementos psicológicos, cerebrais e genéticos?
Isto porque não é possível desconsiderar os aspectos sociais ou subordiná-los à genética/biologia. Estudar seu relacionamento, entretanto, pode nos trazer informações importantes, ampliando o conhecimento sobre o tema. Hoje, não é novidade - nem para antropólogos, nem para biólogos – que é uma ilusão imaginar uma natureza humana constante, independentemente do tempo, lugar e circunstância. Ao mesmo tempo, sabe-se que é muito difícil traçar uma linha entre o que seria natural, universal e constante e o que é cultural, local e variável. Aquilo que um conhecido antropólogo norte-americano, Clifford Geertz, chamou de “hipótese estratificada” das relações entre o biológico, psicológico, social e cultural na vida humana - a idéia de uma separação entre “níveis” irredutíveis entre si – já foi substituída por uma “noção sintética”, que trabalha com o pressuposto de que a “natureza humana” não existe independentemente da “cultura”: o nosso sistema nervoso central é incapaz de dirigir nosso comportamento sem a orientação fornecida por sistemas de signos significantes. Ser humano não é apenas respirar, é controlar a respiração por técnicas específicas; não é apenas falar, é emitir palavras e frases apropriadas; não é apenas comer, é preferir certos alimentos. Em síntese, a cultura humana é um ingrediente e não um suplemento do pensamento humano.

3.2. O deslocamento da “agressividade” para a “infração”
E os homens diferem. Diferem não somente na construção de símbolos, mas na sua leitura e atribuição de significados a atos e comportamentos específicos. Não obstante, várias tentativas foram feitas no intuito de alcançar “pontos invariantes de referência” de conhecimento sobre o homem, assim como explicações, no âmbito da natureza, acerca de comportamentos considerados socialmente desviantes. Essas tentativas se caracterizam por uma forma de conhecimento tipológico, o qual nos informa mais sobre os processos de constituição de estigmas sociais do que sobre as causas biológicas/genéticas de sua existência. Em geral, tendem a trabalhar com variáveis que são supostamente percebidas como tendo uma essência natural ou orgânica – por exemplo, a agressividade – deixando-se de lado um conjunto de atributos sociais envolvidos no percurso interpretativo que transforma um ato qualquer, em um ato agressivo. No caso do estudo dos pesquisadores da PUCRS e UFRGS ainda há um deslocamento mais sutil: o que transforma a pergunta sobre a agressividade e seus fatores de relação, com as interrogações sobre o crime/infração e sua constituição.
Embora a pesquisa esteja direcionada para a investigação dos fatores relacionados ao desenvolvimento da agressividade, o universo de pesquisa escolhido – adolescentes homicidas internados na FASE, com um correspondente grupo de controle – é representativo de outro universo, constituído por adolescentes constituídos legalmente como infratores. Há um deslocamento importante que deve ser questionado: da agressividade à condenação legal, a infração. Diferentemente do atributo da “agressividade”, a categoria “infrator” é aplicada àqueles que, sujeitos ao sistema de justiça juvenil, foram considerados culpados por atos definidos em lei específica como crime ou contravenção penal - homicídio. Isto implica em dizer que o recorte do universo da pesquisa se dá pelo filtro de uma definição jurídica específica e não somente pela posse de um determinado atributo – agressividade. Temos aí dois procedimentos distintos: de um lado, a abstração da “agressividade” na questão orientadora da pesquisa; de outro lado, sua objetivação no universo de estudo definido pela pesquisa: adolescentes constituídos como “infratores” pelo sistema de justiça. A abstração da agressividade tem por efeito sua objetivação no grupo de infratores.
Entre os adolescentes considerados infratores, há adolescentes que poderiam ser considerados agressivos, certamente, mas eles não são representativos do universo de pessoas agressivas. Pode-se ter agressivos que não sejam constituídos como infratores, na medida em que a população de adolescentes infratores – como mostrado em várias pesquisas - é representativa de um estrato socialmente vulnerável: jovens do sexo masculino, pobres, com pouca escolaridade, sem trabalho e com proporcionalmente maior presença de negros e pardos. Recortar a pesquisa no universo dos adolescentes infratores arrisca esconder os complexos elementos de constituição jurídica e social desse personagem que, de outro lado, passa a ser naturalmente associado a maior agressividade e não a maior vulnerabilidade frente ao sistema de justiça.
Entender os fatores relacionados à constituição do infrator requereria, sem dúvida, um outro estudo: aquele que se detivesse na análise do funcionamento do próprio sistema de justiça juvenil e seus fundamentos. Seria preciso estudar tal sistema, assim como investigar determinados marcadores sociais de diferença (classe, gênero, raça/etnia, etc) que atuam de modo articulado na produção das desigualdades no Brasil, inclusive à desigualdade no acesso aos bens jurídicos e de proteção e promoção de direitos, que se materializam em maiores ou menores vulnerabilidades frente ao sistema de justiça.

3.3. A Vulnerabilidade do Universo de Pesquisa: “consentimento” ou “constrangimento informado”?
O recorte desse grupo, entretanto, pode trazer graves conseqüências sociais, entre as quais a mais evidente é a sua correspondente estigmatização, procedimento que vai, inclusive, na contramão das políticas de atendimento à infância e juventude. Após longos anos de enfrentamento de estigmas sociais, a atual FASE (antiga FEBEM) passou por uma série de reconfigurações institucionais, na tentativa de modificar o paradigma correcional-repressivo vigente na maior parte de sua história. A orientação legal, proposta pelo ECA, de que todas as crianças e adolescentes são “sujeitos de direitos” e de “proteção integral” permitiu que crianças e adolescentes, na medida em que são considerados pessoas em desenvolvimento, recebam legalmente o estatuto da prioridade de atendimento e tenham defendido seu “melhor interesse”. Esse estatuto especial, atribuído a crianças e adolescentes, expressa uma grande preocupação em termos de proteção e promoção desses sujeitos, orientações que se coadunam com a política internacional de direitos. Transformá-los, através de um procedimento metodológico de pesquisa, em alvos privilegiados da objetivação da agressividade significa um retrocesso para as políticas de proteção de direitos.
Chamo a atenção para a importância de se levar em conta também o contexto político contemporâneo, em que consta no Congresso Nacional uma proposta para o rebaixamento da idade penal de 18 para 16 anos. Esse debate não é novo e é alimentado por casos excepcionais de jovens que cometem um número considerável de atos infracionais e que, embora tenham que ser considerados no direcionamento das políticas de atendimento, representam um número ínfimo dos casos. O crescente discurso acerca da violência e sua disseminação no Brasil – discurso que serve para legitimar, muitas vezes, atos condizentes com estados de exceção de direitos – alimenta o medo e, mais do que contribuir na criação de alternativas eficazes de atendimento, reproduzindo a intolerância e colocando em risco a própria idéia de democracia. A antropóloga Teresa Caldeira já salientou o desdobramento particular do que chamou da “fala do crime”, estudando o contexto paulista: o crescimento da segurança privada e a reclusão de certos grupos sociais em “enclaves fortificados” (condomínios luxuosos). De acordo com essa autora, a “fala do crime” constrói uma reordenação simbólica do mundo, elaborando preconceitos e naturalizando a percepção de certos grupos como perigosos. Prosseguindo nos seus argumentos, é possível pensar um outro tipo de reclusão, o encarceramento nas prisões e internatos, daqueles que são constituídos como perigosos, recebendo maior controle social e policial do seu comportamento.
Adolescentes são um desses grupos, pois em que pese o investimento na reconfiguração das políticas de atendimento, sua construção não se realiza sem ambigüidades. Se considerarmos a primeira década de atendimento pós-promulgação do ECA, veremos que houve um considerável incremento de unidades de internação de adolescentes que, paralelamente ao processo de regionalização e diminuição do tamanho de suas estruturas, aumentaram também a sua lotação total. Em 1991 havia apenas 5 instituições destinadas a atender 241 adolescentes infratores, ao passo que no ano 2000 já havia 14 instituições para atender uma população muito maior, 700 jovens. Mais recentemente, no início de 2008, existiam 16 unidades da nova Fundação de Atendimento Sócio-Educativo (FASE), atendendo uma população de 1100 adolescentes. Embora os dados existentes sejam precários, há um relativo consenso de uma não relação de correspondência entre a proporção do aumento no aprisionamento juvenil e no percentual de crimes cometidos por adolescentes. Mesmo se houvesse, ainda assim seria possível refletir acerca da preferência do tratamento prisional ou do regime de “internação em estabelecimento educativo” como forma de combate/resposta ao crime.
Legalmente, existem inúmeras outras medidas sócio-educativas a serem executadas em “meio-aberto”, como a liberdade assistida, prestação de serviços à comunidade, advertência e obrigação de reparar o dano. No entanto, uma análise das políticas mostra que o incremento do encarceramento pode estar relacionado à não prioridade dada às medidas abertas, ou mesmo precariedade de sua efetivação. Na capital do estado, o primeiro projeto de municipalização das medidas sócio-educativas em meio aberto foi apresentado em 1999, pelo Juizado da Infância e Juventude. O Programa de Municipalização das Medidas Sócio-educativas em Meio Aberto (PEMSE) foi criado somente a partir de junho de 2000, chegando a etapa final de implementação no ano de 2002. Mesmo assim, somente em algumas comarcas do estado o atendimento foi municipalizado. No Brasil, dados do “Levantamento Nacional do Atendimento Sócio-educativo ao Adolescente em Conflito com a Lei”, realizado em 2006, apontam que apenas 60% das capitais brasileiras haviam implantado a municipalização das medidas sócio-educativas em meio aberto. Sem a intenção de culpabilizar os agentes responsáveis pela execução sócio-educativa ou mesmo aqueles responsáveis pela sua determinação legal, o que interessa aqui é possibilitar a reflexão acerca dos complexos fatores que se interpõem para produzir uma série de ambigüidades que a implementação de uma legislação de proteção e promoção dos direitos da criança e do adolescente traz à tona. Sobretudo, mostra o quanto esse grupo é alvo de um grande controle social punitivo.
Por mais que acreditemos que as unidades da FASE ou qualquer outro estabelecimento de internação de adolescentes contemplem todas as garantias de direitos, ainda assim a internação é uma situação coercitiva e de alto controle do comportamento e da ação. Por isso, é uma situação de maior suscetibilidade aos poderes institucionais de qualquer ordem: administrativos, jurídicos ou mesmo científicos. Estudos realizados em prisões de certos estados norte-americanos que permitem a realização de pesquisas com encarcerados mostram que há uma grande disposição dos internados em participarem das pesquisas, uma vez que elas trazem alguns benefícios secundários. Motivos financeiros (a participação em pesquisa pode ser paga, em alguns casos), a idéia de retribuição moral à sociedade como pagamento do “mal” causado, a esperança de ter um tratamento diferenciado e melhor do que os demais encarcerados, a negociação de uma auto-imagem institucional positiva e o acesso a recursos escassos nas prisões, como tratamentos de saúde (nos casos das pesquisas médicas), constrangem as tomadas de posição dos sujeitos. Nesse ambiente, falar em “escolha” de participação em pesquisas torna-se altamente problemático.
Por essas e outras razões provenientes de abusos cometidos por pesquisadores em presos que foram transformados em “cobaias humanos”, o governo norte-americano decidiu, a partir de 1970, restringir a realização de pesquisas com seres humanos dentro das prisões. Orientou, então, que as pesquisas desta natureza passassem a ser permitidas somente quando fosse comprovado o benefício direto dos seus resultados para a população estudada. Mesmo assim, em alguns estados, como a Califórnia (estado americano com a maior população de presos), legislações estaduais não permitem, atualmente, nenhum tipo de pesquisa com seres humanos encarcerados. A visão, apoiada por organizações de defesa de direitos humanos, é de que prisões superlotadas e sem programas eficientes de saúde são contextos de grande vulnerabilidade e onde a liberdade individual encontra-se cerceada de várias formas. Como falar em liberdade de escolha, nesse contexto?
Sem dúvida, a população carcerária pode se beneficiar dos resultados de pesquisas sobre problemas diversos, mas para isso não é preciso que seja o universo da pesquisa em si. Pesquisa é diferente de tratamento clínico, e se a voluntariedade de participação em pesquisas conduz-se pela esperança de benefícios desse tipo é preciso questionar o contexto das prisões e as condições de vida dos sujeitos ali colocados.
Interrogações desse tipo devem ser feitas também no caso brasileiro, onde a maior parte das regulações éticas de pesquisa com seres humanos baseia-se na discussão acerca do uso do “consentimento informado”. Neste instrumento, o pesquisado consente ser estudado mediante informações sobre o tipo de pesquisa e seus procedimentos, manifestando explicitamente, através de assinatura, concordância com a participação no estudo. Como os debates norte-americanos sugerem, assim como as professoras da UFRGS Claudia Fonseca e Carmen Craidy já salientaram em cuidadoso texto sobre a proposta da pesquisa porto-alegrense, pensar a ética das e nas pesquisas vai muito além do “consentimento informado”: requer a conjugação de fatores diversos, desde os objetivos, quanto os procedimentos de pesquisa; a análise das intenções, mas também dos possíveis efeitos dos estudos; uma compreensão do contexto social e político em que as pesquisas são realizadas e a situação dos grupos particulares objetivados como seus universos. Sem todo esse cuidado, uma grande problemática de estudo pode se transformar em fardo para aqueles que são estudados. Do “consentimento informado” podemos passar para o “constrangimento informado”, em muito se distanciando da produção de um conhecimento que interaja criativamente com os debates sociais que alimentam as preocupações de nossa época.

IV- Considerações (por ora) Finais: Por uma Multiplicação dos “Olhares”

Não raro ouvimos por aí frases como: “qualquer pesquisa vem bem”, “a pesquisa sempre vai trazer um maior conhecimento”, “prejudicar não vai”. Nem sempre. É preciso discutir as pesquisas, conhecê-las, analisar seus pressupostos e procedimentos, criticá-las e fazer desse debate uma agência para a formulação de novos saberes e engajamento de cientistas e aqueles que são, na falta de melhor palavra, leigos. Isso requer uma reconfiguração de posturas frente ao estatuto da ciência, que envolve tanto os cientistas, quanto os não cientistas. No caso específico da pesquisa aqui discutida, isso significa continuar debatendo questões importantes, que não estão suficientemente entendidas a respeito da realização de um estudo tão socialmente polêmico.
Meu desejo foi lançar algumas questões acerca da importância de se entender melhor a forma de relacionamento, prevista pela pesquisa, entre as variáveis cerebrais, genéticas, psicológicas e sociais, assim como sua associação com agressividade. Também destaquei um deslize nos termos da proposta da pesquisa, que parte de questões relacionadas à agressividade para objetivá-la no universo de adolescentes infratores. Esse procedimento arrisca aumentar os já históricos processos de estigmatização dessa população que, de outro lado, encontra-se extremamente vulnerável frente aos poderes diversos – inclusive científicos – na situação de encarceramento. Essa última condição é, como vimos, motivo para impedir a realização de pesquisas com seres humanos em situação prisional no estado da Califórnia/EUA, sendo relevante pensarmos sobre o assunto aqui no Brasil, principalmente se considerarmos os processos históricos que vêm constituindo crianças e adolescentes como “sujeito de direitos” e de “proteção integral”.
Apesar de ter uma posição a respeito da pesquisa – acredito que suas interrogações são válidas, mas seus procedimentos são problemáticos no que diz respeito à escolha do universo: adolescentes, “infratores” e encarcerados (o que por sua vez, compromete a lógica do estudo) – este texto não é um manifesto a favor ou contra. Objetivo clamar por uma ampliação das oportunidades de julgamento sobre as pesquisas e suas possibilidades de efetivação - das comissões de ética científicas para outras entidades diversas. A tentativa aqui foi de argüir no sentido de uma ampliação dos termos do debate, para além das posições normativas/legalistas do “certo” ou do “errado”. A necessidade é de multiplicar as redes de conversação e formação de uma comunidade reflexiva em torno de um conjunto de problemas que podem aparecer como questões de pesquisas, mas que não se esgotam nesses procedimentos. A discussão ampliada das propostas conduz a posicionamentos embasados que não se expressam em simples práticas de “censura” à pesquisa, mas sim de considerações preciosas que tem a ver com a responsabilidade de cada um no conjunto das decisões tomadas.
Multiplicando perspectivas e situando-as a partir de seus espaços de enunciação, a “verdade” que aparece como única subitamente se pluraliza. O “olho de lugar nenhum” transforma-se em um “olho situado”, localizado e não transcendente. Um olho que tem responsabilidades e que deve ser comprometido por estas, uma vez que também está implicado na produção das verdades parciais. Significa alcançar posicionamentos, provocar afetos, interagir. Voltando a Nietzsche, encerro com uma questão: “Mas eliminar a vontade inteiramente, suspender os afetos todos sem exceção, supondo que o conseguíssemos: como? – não seria castrar o intelecto?...”

* Texto escrito em 31/03/2008.
Para leitura de outros textos e crônicas sobre o assunto, visite o blog “Práticas de Justiça e Diversidade Cultural”: http://prticasdejustiaediversidadecultural.blogspot.com/

sexta-feira, 28 de março de 2008

Em busca das fontes do mal

Por: ALFREDO JERUSALINSKY- Psicanalista

'Todo o mundo da filosofia científica baseia-se na premissa fundamental de que o homem tem a obrigação de procurar a Verdade, como se esta fosse uma fera solitária, habitando as florestas da ignorância.'
Que as palavras de nosso apólogo pertençam a um texto de ficção que pretende ser real não diminui em nada seu valor. Nós, os seres humanos, estamos acostumados a morar nesse território intermadiário entre o imaginário e o real. É precisamente o fato de morarmos nesse território o que nos distingue das feras e nos permite interrogarmo-nos sobre o verdadeiro ou o falso. Dito de outro modo, ser cientista é possível porque a ficção existe. É essa ficção a que lhe permite supor um objeto - formular uma hipótese - quando ainda não o achou. Mas os cientistas costumam ser obcecados; quando não encontram seu objeto o fabricam. Ali está o doutor Viktor Frankenstein para testemunhar o que digo e, sem dúvida, cheio de boas intenções: propunha-se desvendar o segredo da vida e construir um homem perfeito. Como sempre, nesses casos, lhe saiu um pouco descosturado.
Um aparte: vou me antecipar a qualquer objeção no sentido de considerar a ficção como falsa. De modo algum seria aceitável considerarmos - por exemplo - que uma ficção como O Amor nos Tempos do Cólera, de Gabriel García Márquez, é falsa. Muito pelo contrário, é indiscutível que ela está cheia de verdades.
Então, de que está feita a verdade? Vamos devagar porque não é nada fácil chegarmos a um acordo para responder essa pergunta. De fato, a humanidade vem discutindo essa questão desde suas origens, e o bate-boca não parece ter arrefecido. Somente a partir do século 18, com o triunfo das idéias de Baruch Spinoza na filosofia, de Galileu Galilei na física e na astronomia, e mais tarde de Darwin na biologia, a ciência adquire o direito de oferecer sua própria resposta: a verdade não está dada, mas precisa ser descoberta por meios racionais. Toma forma de antítese a oposição entre ciência e religião. O homem sofre então a desilusão e o desamparo de não dispor de uma verdade estabelecida a priori, mas de ter que empreender uma longa caminhada na sua procura. Aventureiros, cientistas e exploradores se tornam protagonistas. O Everest é escalado, o Pólo Sul é alcançado, os corpos são dissecados, os cérebros fotografados, as células contadas e analisadas, os animais classificados e seqüenciados, os povos comunicados, milhares de línguas catalogadas, as línguas mortas (memória "científica" da história) são decifradas.
Eis ali que a ciência, por sua vez, se divide, novamente ao redor dessa questão central: onde procurar a verdade? Por um lado surgem as ciências que vasculham nos labirintos das palavras, dos símbolos, das imagens, das máscaras, dos costumes, dos sentimentos, da moral, dos valores, dos significados, das culturas, em suma, do discurso. Por outro lado se firmam as ciências que ousam penetrar nos segredos dos corpos e das coisas. O antigo dualismo místico entre alma e corpo toma forma científica: uma oposição entre ciências psicológicas e ciências neurobiológicas. É Sigmund Freud quem, no fim do século 19 e início do 20, toma a iniciativa de rejeitar tal separação tentando demonstrar, com os escassos meios técnicos de que dispunha então (o neurônio acabava de ser descoberto por Ramon e Cajal), a indissolúvel interdependência de ambos processos - os psíquicos e os neurológicos - apesar da diferença dos princípios que organizam suas respectivas atividades. Formula, para isso, a hipótese de que o funcionamento cerebral se veria organizado fundamentalmente pelas experiências infantis (especialmente as precoces) e pelas configurações de linguagem que organizariam complexos, persistentes mas variáveis, de significação de objetos, pessoas e situações do meio circundante.
O sofrimento psíquico estaria ligado, então, à dificuldade de passar de uma rede de significações mais primitiva para uma nova, mais concordante com a situação atual do sujeito. Em suma, a dinâmica psíquica consistiria numa seqüência de complexos de linguagem que organizariam a memória inconsciente do sujeito, levando a que se repitam ou não as experiências satisfatórias, insatisfatórias, ameaçantes, deprimentes, etc. por associação dos elementos atuais com as antigas configurações. Essas hipóteses vieram se confirmando ao longo dos últimos cem anos, e ainda mais: as descobertas operadas durante os últimos 10 anos no campo das neurociências, especialmente no que se refere à memória, aprendizagens e neurotransmissão, são totalmente concordantes com aquelas hipóteses freudianas formuladas em 1896 no seu conhecido Projeto de uma Psicologia para Neurologistas.
De fato, uma das descobertas fundamentais nesse sentido é apontada por Eric R. Kandel (Nobel de medicina em 2000 pelo seu trabalho sobre memória e neuroplasticidade) no seu livro Em Busca da Memória - O Nascimento de uma Nova Ciência da Mente (Editora Katz, Buenos Aires, 2007) quando assinala que o que se acumula na memória humana, à diferença do que poderia acontecer com outros mamíferos que não dispõem da linguagem, não é o objeto em si ou sua representação figurativa, mas um traço a ele associado que, de fato, não precisa ter nada a ver com o objeto mesmo; basta que seja significante do objeto ou situação em questão para produzir o mesmo efeito que a presença real da coisa. Uma tese levantada por Freud em 1895 - e verificada hoje com maior precisão detectando-se os modos específicos em que tal processo de representações e armazenamento de marcas correspondentes ao mundo circundante se efetua no nível dos processos neurobiológicos.
De tal modo um sujeito pode se sentir ameaçado e irado (na defensiva) "inexplicavelmente" diante da presença de uma banal garrafa vazia de vodca jogada no chão (por exemplo, evocativa do medo causado por seu pai bêbado quando pequeno). Ou com uma sensação de morte iminente diante de um passarinho bicando a grama, já que ele está ligado a uma cena de não encontrar o alimento que procura, evocativa de fome e abandono sofridas na infância precoce e vividas como agressão imaginariamente causada pelo outro sentido como privador.
Quando as experiências precoces são sofridas, doloridas e ameaçantes, quando o Outro Primordial (aquele que realiza os cuidados primários) não opera como amortecedor das intemperanças do meio, a memória desse sujeito guardará o resíduo evocativo do outro - quem quer que seja - como inimigo, cuja presença despertará uma ansiedade persecutória aparentemente imotivada. A clínica psicanalítica e as mais diversas formas psicoterapêuticas testemunham isso em centenas de milhares de casos ao longo de mais de cem anos de experiência. Os achados no campo da neurotransmissão no que se refere aos efeitos residuais da operação de apagamento de memórias a nível de conexões sinápticas "sobreviventes", que atuam como facilitadoras na renovação ou na re-aprendizagem, mas que também podem atuar como "facilitadoras" do retorno de lembranças indesejáveis, se correspondem com as dinâmicas psíquicas longamente observadas no campo clínico psicológico.
De tal forma, a correspondência entre transformações psíquicas e modificações cerebrais - tanto no campo funcional como nos aspectos anatômicos - hoje em dia é muito mais do que uma hipótese: é um fato vastamente comprovado. O que desde fins da década de 1980 recebe o nome de neuroplasticidade - e que anteriormente recebeu outras denominações tais como, sensibilidade da mielinização aos estímulos externos (Minkowski, 1948), flexibilidade neuronal (Coriat, 1976) - se especifica atualmente pelas modificações sinápticas (as conexões entre neurônios) causadas pela matriz de significações propostas por aqueles que rodeiam a pequena criança (especialmente até os três anos de idade embora as modificações se estendam significativamente até a puberdade). De tal modo, a forma em que a criança é tratada e "significada" por seus pais e cuidadores provoca sistemas de memórias que ficam gravadas e que dão lugar a configurações anatômicas e de circuitos de neurotransmissão, de recordação e esquecimentos parciais, ou aparentes amnésias que guardam efeitos inconscientes residuais totalmente singulares para cada sujeito. Essas marcas significantes retornarão ou não durante a vida do sujeito de acordo com as circunstâncias com que ele venha a se deparar (veja-se o recente livro A Cada Quem seu Cérebro, de François Ansermet e Pierre Magistretti, Ed. Katz, Buenos Aires, 2007).
Estas não são suposições, são fatos e descobertas que, muito além das resistências recíprocas, a soma e articulação interdisciplinar das neurociências com a psicanálise tem permitido.Uma pesquisa recente (da qual o autor deste artigo é coordenador científico) de detecção precoce de risco de desenvolvimento e risco psíquico em crianças de zero a 18 meses e que foram acompanhadas até o quarto ano de vida, vem apoiar - nos seus resultados preliminares - o que aqui se afirma. 746 crianças que fizeram seus controles pediátricos regulares em 10 hospitais públicos de 10 capitais do país mostraram o quanto elas são sensíveis às diversas formas em que seus pais (especialmente as mães) as tratam nesse período precoce da infância e o quanto elas refletem na sua estruturação e funcionamento psíquico posterior as nuanças atravessadas durante esse período inicial. Também evidenciaram como todas elas precisam que certas funções sejam cumpridas - embora sob formas diferentes - para poderem se estruturar como sujeitos adequadamente. Isso viria a demonstrar que os humanos têm uma infra-estrutura comum (equipamento genético e neurológico) com leves diferenças, que precisa de uma série de funções equivalentes, mas não idênticas, para ser ativada e constituir uma estrutura capaz de funcionar e tornar o individuo um sujeito social.
Thomas Ebert e colaboradores, na Universidade de Constanza, Alemanha, compararam imagens do cérebro de violinistas com os de outros que não eram músicos. Verificaram que a região cerebral que corresponde ao controle dos quatro dedos da mão esquerda (a que modula as cordas) dos violinistas era até cinco vezes mais extensa do que essa mesma área nos não músicos. Ao mesmo tempo, as zonas do córtex correspondentes à mão direita (que não exerce funções tão sutis já que se aplica somente ao deslizamento do arco sobre as cordas) eram equivalentes entre os músicos e os não-músicos. Ao mesmo tempo comprovaram que os músicos que tinham iniciado sua aprendizagem no violino antes dos 13 anos tinham as regiões da mão esquerda representadas no cérebro por uma extensão maior da de aqueles que tinham começado a estudar violino após essa idade.
Seguindo esse modelo, podemos cogitar que se comparássemos imagens cerebrais de índios quéchuas músicos, que costumam tocar sua quena (flauta de bambu com cinco buracos) obturando alternadamente as perfurações com os dedos da mão direita, deveríamos nos deparar com que a extensão da zona cortical correspondente aos cinco dedos da mão direita seria significativamente mais extensa (e não a correspondente aos quatro dedos da mão esquerda, como nos violinistas) em relação à mesma representação sensório-motriz dos dedos da mão direita no córtex dos quéchuas não músicos. E o que teríamos demonstrado com isso? Certamente não que uma área maior no córtex de representação dos quatro dedos da mão esquerda causaria um violinista entre os quéchuas, nem tampouco que uma maior extensão cortical correspondente aos dedos da mão direita causaria um flautista de "quena" entre os poloneses.
Então, por exemplo, se alguém pesquisasse qual é a modificação cerebral (funcional e/ou anatômica) comum a todo um grupo de adolescentes violentos, é bem possível que encontre algum traço. No fim das contas, de um modo geral, os internos da Fundação de Atendimento Socioeducativo (Fase), por exemplo, têm - a grande maioria deles - muitas experiências infantis em comum. Acabamos de lembrar que existem já demasiadas comprovações de como essas experiências precoces incidem como matriz que ordena, modifica e orienta o conjunto das sinapses e a extensão das funções psíquicas diferenciadas no córtex. Mas supondo que encontrasse o tal traço comum, seja genético ou neurológico, o que teria demonstrado com isso?Cada vez que encontre uma certa extensão de representação funcional cortical localizada adequadamente terei um violinista? Ou encontrando a correspondente a meu achado, terei um flautista? Ou seja lá o que for que venha a se achar, terei um violento? Poderia se inventar uma medicação para produzir violinistas entre os quéchuas? Ou um "quenista" entre os poloneses?Os jesuítas já convenceram os guaranis não somente a tocar, mas também a fabricar violinos. Não pode se dizer que foi uma experiência afortunada. E, do outro lado, vocês já viram um esquimó tocando cavaquinho?
Pesquisar tanto as alterações na estrutura cerebral quanto o ambiente psicossocial que envolve e pode caracterizar grupos de jovens violentos pode nos ajudar a confirmar algo que já sabemos com bastante aproximação: que a violência, na generalidade dos casos, não é intrínseca a uma condição genética (embora possa haver casos isolados que apresentem essa condição) nem intrínseca a uma constituição neurológica originária (embora alterações neurológicas em raros casos específicos possam provocar ou propiciar tal comportamento). Embora para Julian Huxley, primeiro Secretário Geral da Unesco, de 1946 a 1948, várias vezes presidente da Eugenics Society, reconhecido cientista e pai do conhecido escritor Aldous Huxley (autor do famoso romance Admirável Mundo Novo): "...são essas pessoas das grandes cidades, que os assistentes sociais conhecem muito bem, que parecem desinteressar-se de tudo e continuam simplesmente sua existência vazia no meio de uma extrema pobreza e sujeira... Aqui poderia ser útil a esterilização voluntária ou métodos imunológicos de esterilização..." E não descarta as soluções totalitárias (ele mesmo utiliza esse termo).
É esclarecedor levarmos em conta que nos últimos 10 anos (segundo a Rede de Informação Tecnológica Latino-americana) houve um aumento de 31,3% de mortes violentas de jovens de 15 a 24 anos no nosso país. Seguramente essa mudança não pode ser atribuída a qualquer mudança genética ou neurológica, embora seja provável que por causa da variação das condições psicosociais tenham se produzido modificações nos sistemas de alerta, irritabilidade, limiares de alarme, sinais de angústia e agressivização dos jovens, que os predispõem a serem agentes ou vítimas de atos violentos. É bem provável, e até necessário, que alguma enzima, alguma proteína tenha se modificado.
Imaginemos que uma pesquisa para comprovar tal modificação seja proposta pelos israelenses tomando como amostra, privilegiada pela presença de manifestações violentas, os palestinos. Ou que na Alemanha dos anos de 1940 fosse proposta uma tal pesquisa tomando os judeus rebeldes de Varsóvia como "sujeitos". Ou os armênios como objeto de pesquisa dos turcos. Ou os irlandeses como objeto de pesquisa dos cientistas britânicos. Ou uma classe social tomasse nessa posição de objeto de estudo a outra classe social, ou um grupo cultural a outro, ou, ainda, os adultos aos adolescentes. São suposições (embora algumas dessas pesquisas já se tenham, de um modo ou outro, realizado) que nos ajudam a pensar não somente no benefício de aumentar nossos conhecimentos, de ficarmos melhor orientados para proteger as vítimas passivas e as vítimas ativas da violência, mas também quais as conseqüências para os sujeitos - já subordinados, oprimidos ou em situação de fragilidade - tomados como objetos de pesquisa onde são colocados como massa identificada por um defeito de conduta, com o inevitável, então, risco de despersonalização.
E ainda, se ao encontrarmos alguma característica orgânica associada à conduta violenta estivéssemos dispostos a supor ela, pela sua mera presença, fator causal, estaríamos introduzindo o risco de colocar o sujeito como portador de um mal crônico e essencial: o mal de ser portador do mal.

ALFREDO JERUSALINSKY (Do diário apócrifo de Frankenstein).

EVOCAÇÃO

Por: Luis Fernando Verissimo
Certas coisas são mais importantes pelo que evocam do que pelo que são. Têm um significado simbólico que às vezes suplanta a realidade.Agora mesmo no Rio Grande do Sul discute-se um projeto de pesquisa neurológica entre detentos de menor idade para estudar as causas da criminalidade e do comportamento agressivo, e a reação à idéia tem sido forte. Estudos desse tipo, segundo seus críticos, buscam argumentos para os que propõem razões biológicas e genéticas, ao contrário de culturais e sociais, para a criminalidade, e eximem a sociedade da sua culpa.
Os defensores do projeto alegam que avanços havidos na investigação neurológica, da base puramente biológica do comportamento anômalo, tornaram obsoleta a velha questão natureza x cultura que dividia - grosseiramente entre direita e esquerda - os psicólogos e os analistas sociais. E que uma maior compreensão do funcionamento de um cérebro criminoso não exclui a influência do meio na sua existência. O outro lado defende que pesquisas assim já partem do pressuposto de que o social não importa e só querem camuflar seu reacionarismo - no fundo quase uma volta a teorias criminalísticas do século 19 - com pseudo-rigor científico. Reacionários são vocês, que não aceitam o progresso da ciência por preconceito político, dizem os outros. Enfim, uma boa briga.
Mas o que informa, e talvez distorça, o debate mais do que tudo é que nada que se faça ou discuta nessa área deixa de evocar as experiências nazistas com a eugenia. Pode ser injusto mas o fato da pesquisa gaúcha proposta ser com detentos, e seu fim, não declarado mas implícito, ser a "cura" individual do desvio de conduta pela intervenção biológica ou química, reforça a evocação incômoda. Ninguém gosta de lembrar que a monstruosa experimentação dos nazistas em cobaias humanas foi predecessora direta do que viria a ser o mais revolucionário ramo da especulação científica do pós-guerra, o da manipulação genética, que abre a possibilidade da espécie humana premeditar a prole, ou programar sua progenitura - e, supostamente, seu caráter e sua índole, além de sua saúde - a partir de uma célula. Mas mais de 60 anos depois do fim da II Guerra Mundial, todas as experiências cujo objetivo é procurar no corpo e nos genes as causas da imperfeição humana e na transformação da sua natureza a solução, ainda têm que conviver com a memória dos horrores nazistas.
Merecendo ou não, a evocação é inescapável.Que lado do debate tem razão? Felizmente eu não preciso decidir. A política é sempre má palpiteira em assuntos de ciência, mas a ciência arregimentada para provar preceitos políticos é pior. E acho bom que perdure por muitos mais anos na memória do mundo o que aconteceu na Alemanha nazista, quando uma presunção de neutralidade moral levou a ciência a romper todos os limites da humanidade.

Texto publicado no Jornal Zero Hora 05/02/2008

Insondáveis

Por: Luis Fernando Veríssimo

Como não estamos equipados para conhecer o mais fundo do mar ou do nosso cérebro, só nos resta especular sobre os monstros cegos que o habitam. Já se disse que o fundo do mar e a mente humana são os últimos territórios inexplorados da Terra. Ninguém sabe o que, exatamente, se passa nos dois abismos, e os instrumentos para estudá-los são insuficientes. Ainda não desenvolveram uma sonda capaz de resistir à pressão e penetrar a escuridão do fundo mais profundo do mar e mostrar o que tem lá. E nosso cérebro é tão complexo que nem um cérebro complexo como o nosso ainda conseguiu entendê-lo.
* * *
Um dos mistérios envolvendo o cérebro que me fascinam é o da hipnose.
Ninguém tem o poder mágico de hipnotizar ninguém, mas a hipnose existe. O que significa que você pode hipnotizar quem você quiser - desde que o outro acredite no seu poder. Faça um teste. Apresente alguém ao seu grupo como um hipnotizador profissional, com diploma do Instituto de Altos Estudos Mesméricos de Zurique. Veja quantos do grupo ele consegue hipnotizar, embora nunca tenha feito isso antes na vida. Basta você ser convincente. O cérebro de quem acreditou em você está pronto para ser mandado e fará tudo que o "hipnotizador" ordenar - inclusive transformar o sujeito numa barra de ferro. Qualquer um pode hipnotizar qualquer um que acreditar que ele pode. O que talvez explique alguns sucessos na vida política.
* * *
Outra coisa que existe é a doença psicossomática. A doença imaginária com sintomas e efeitos reais. Há casos até de gravidez psicossomática, em que a barriga da mulher cresce e o bebê que não está ali se mexe. Paralisia, cegueira - não há doença ou aflição humana que o cérebro não possa produzir sozinho, independente da verdade fisiológica. As causas são psicológicas, pertencem às profundezas da mente, mas o sofrimento é real.
* * *
O cérebro predisposto a ser comandado e a realidade das doenças psicossomáticas, de certa maneira, legitimam os milagres e desculpam o curandeirismo. O aleijado que levanta e anda em transe religioso está sendo curado, não importa muito se da conseqüência de uma doença real ou do domínio obscuro da sua mente sobre os seus órgãos. Uma das igrejas neopentecostais distribui rosas mágicas entre seus fiéis com o poder, atestado por fiéis, até de curar o câncer. Nossa primeira reação é a de lamentar essa exploração primária da fé ingênua, mas ela responde à fome de salvação e milagres com um símbolo de simplicidade. O inimigo é o complicado, é o insondável. Contra todas as coisas inexplicáveis, o corpo, a mente, o sofrimento e a morte, uma rosa onipotente.
* * *
Como não estamos equipados para conhecer o mais fundo do mar ou do nosso cérebro, só nos resta especular sobre os monstros cegos que o habitam. As memórias reptilianas que dizem que temos corresponderiam aos moluscos que se criam perto das fendas de vulcões submarinos, teriam a mesma origem num miasma sulfuroso. Nossos impulsos atávicos seriam como enguias gigantescas que, se chegassem à superfície, trariam terror e destruição. Mas como nunca vamos vê-los, nem os monstros do abismo nem os do nosso cérebro, já que a escuridão no fundo é intransponível, resignemo-nos à ignorância, que é a forma mais cômoda de sabedoria. E se você for experimentar fazer hipnotismo, lembre-se de que o pêndulo na frente do nariz do outros e as palavras "Você está ficando com sono, suas pálpebras estão começando a pesar..." são dispensáveis. Se o outro acreditou no seu poder, você tem o poder.
Texto escrito por Luis Fernando Veríssimo, publicado no jornal Zero Hora em 24 fevereiro 2008.

Ciência, obscurantismo e ética

Por: Carmem Maria Craidy (Professora da Faculdade de Educação da UFRGS)

Tenho acompanhado, na imprensa, com interesse de quem trabalha com adolescentes que cometeram atos infracionais, a polêmica sobre a pesquisa com internos da Fase. Tenho ficado surpresa, e mesmo chocada, com expressões usadas por defensores da pesquisa tais como "mentes criminosas", "adolescentes psicopatas" e/ou "sociopatas". Estas expressões denotam posição preconceituosa e concepções superadas do ponto de vista teórico e mesmo legal pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. Afirmar a priori que internos na Fase são psicopatas só pode ser feito por alguém que está distante do problema. Trabalhando na área há mais de duas décadas e coordenando um programa que atendeu a mais de mil adolescentes que praticaram atos infracionais, nos últimos 11 anos, afirmo com tranqüilidade que o índice de psicopatas é pequeno entre eles. Cabe lembrar ainda que, segundo a legislação em vigor, os psicopatas deverão ser submetidos a tratamentos específicos e não ficarem simplesmente privados de liberdade com outros adolescentes que cumprem medidas socioeducativas. Quem acompanha a história da Fase, antes Febem, sabe que a presença de um único adolescente portador de psicopatia, num internato, pode ser fator de graves problemas e de violências internas. Caracterizar a todos como psicopatas e medicá-los em massa aparece muitas vezes como forma fácil de contenção numa postura que abre mão do desenvolvimento de trabalho educativo e da recuperação possível para parte significativa desses adolescentes.
Tanto o estatuto, já citado, quanto o Sinase - Sistema Nacional de Medidas Socioeducativas - são claros ao definirem as exigências do trabalho socioeducativo. Por outro lado, considerar que "pessoas com trajetórias de vida problemáticas, que cometeram algum delito grave e que vivem em confinamento rodeados de criminosos" não seriam afetadas por passar algumas horas em aparelho de ressonância magnética é mais uma vez demonstrar desconhecimento dessa população. Já ouvi muitas vezes adolescentes dizerem: "Não adianta dona, eu sou ruim da cabeça, já me fizeram até eletro". O fato de terem sido submetidos a exames de eletroencefalograma acaba por convencê-los de que portam mal irremediável e que, portanto não têm como encontrar um caminho de volta. Não obstante, inúmeros estudos demonstram que a participação na vida do crime é na maioria das vezes motivada pela busca de afirmação pessoal e de reconhecimento social e que poderá, portanto, ser agravada com procedimentos que baixem a auto-estima e a confiança em si. Se é certo que as pesquisas neurológicas têm uma contribuição a dar na compreensão do comportamento violento, é certo também que não se deve absolutizá-las ignorando estudos já desenvolvidos por especialistas de outras áreas, como sociólogos, psicólogos, antropólogos, educadores etc.
Não há maior obscurantismo do que aquele que considera a pesquisa inquestionável. Além disso, a pesquisa com humanos está subordinada a princípios éticos que vão além de um consentimento informado, como, por exemplo, de que a mesma não seja prejudicial às pessoas nas quais se aplica. Pergunta-se: que condições de escolha para participar da pesquisa têm os privados de liberdade? E mais: que conseqüências essa pesquisa pode ter para suas vidas?Não há maior obscurantismo do que considerar inquestionável o que é feito em nome da ciência. Não há ciência definitiva nem verdade acabada. Esta é a maior descoberta científica da contemporaneidade.O último século avançou na consciência coletiva e na legislação quando reconheceu que todas as pessoas, mesmo os criminosos, são sujeitos de direitos. Entre estes direitos está o de não serem manipulados por experiências científicas que possam prejudicá-los.
CARMEM MARIA CRAIDY (Professora titular Faced/UFRGS).
Artigo publicado no jornal Zero Hora, em 13/02/2008

Enunciados Científicos a título de Ensaios, não dominação política II

Por: Katarina Peixoto (doutoranda em filosofia da UFRGS)

A imagem com que terminei a primeira parte dessas notas foi o que me levou a (mais) um texto magistral de Gerard Lebrun “A idéia de epistemologia”. Antes de comentar o que aprendi e de registrar a gratidão diante da leitura desse ensaio do professor que nunca tive e do qual sinto saudade – do futuro impossível -, vamos ao ponto, que não é prosaico.

Departamentos de Biociências e Medicina da UFRGS e da PUCRS estão candidatando uma pesquisa sobre as possíveis causas da violência nas mentes de homicidas adolescentes. A pesquisa, diz-nos o célebre e sério pesquisador Ivan Izquierdo, é de amplo espectro, multi – ou trans, ou inter – disciplinar e terá como “grupo de controle” jovens voluntários não-apenados e jovens apenados, na FASE (Fundação de Atendimento Sócio-Educativo do Estado), por homicídio. A pesquisa, segundo Zero Hora do dia 28 de janeiro deste ano, visa a “investigar os mais variados aspectos que possam explicar o que leva um jovem a se comportar de maneira violenta” (matéria de Marcelo Gonzatto). Izquierdo escreveu, dias antes, um breve texto no qual acusa de obscurantistas aqueles que se opuseram à pesquisa. Os opositores seriam psicólogos, representados pelo Conselho Federal de Psicologia e estariam acusando a hipótese – negada pelos professores de UFRGS e PUCRS – de que esse empreendimento tomasse o determinismo biológico como pressuposto para um determinismo social. As duas coisas que fundamentam a reação dos psicólogos, nesse embate, são 1) a análise genética de jovens homicidas e 2) a escolha de jovens da FASE, já condenados por homicídio.

Uma das dificuldades para entender essa briga é que o único procedimento investigativo até agora especificado é a análise genética. Outra, que o grupo escolhido seja da FASE. O fato de que só a investigação da genética dos jovens homicidas apenados seja especificada na pesquisa multidisciplinar deve justificação, sobretudo porque só geneticistas ou neurocientistas, como é o caso de Izquierdo, pronunciaram-se como parte do interesse puramente científico que estaria ameaçado pelos obscurantistas. Nenhum jurista, nenhum antropólogo, sociólogo ou economista disse algo, ainda, quanto aos procedimentos que serão adotados nas suas investigações que farão parte da pesquisa. Disso sobressai pelo menos a hipótese de que o aspecto genético esteja sendo privilegiado. E esse privilégio, supostamente apresentado nos embates via jornal, certamente deve ser demonstrado. Por que uma investigação genética desempenharia algum privilégio epistêmico no acesso às causas da violência? Em quê essa variante da premissa naturalista fundamenta seu manifesto – ainda que midiaticamente – privilégio sobre as outras áreas, ditas partes do mesmo empreendimento investigativo? Uma das dificuldades incontornáveis dessa variante do uso da premissa naturalista consiste, vejam bem, em que não é verdade que o seqüenciamento do genoma humano está completo, de sorte que, falando rigorosamente, sequer se pode estar reivindicando como variante da premissa naturalista, tout court – e pelo menos ainda – o procedimento estritamente genético da pesquisa.

A busca dessa demonstração é o que diferencia um epistemólogo de um cientista e também é o que marca a distinção da ciência frente aos interesses mundanos. Portanto, essa demonstração é todo o ponto que merece ser esclarecido, quanto à primeira dificuldade e, também, à segunda, relativa à escolha dos condenados já na FASE. Ocorre que essa demonstração parece obscurecida pela fé de que 1) a ciência vai nos salvar da violência e 2) a violência é um fenômeno individualmente determinável. É evidente que é assustador, dado o grau de violência das cidades brasileiras – ou latino-americanas, africanas, do Leste Europeu, enfim -, perceber que há muita gente a levar essas duas crenças a sério. E, como não bastasse, jogando-as para o barco retórico do esclarecimento. O professor de neurologia da PUCRS, Jaderson Costa da Costa afirmou (ZH, 28/01/2008) que “com o que se conhece até agora, a situação [da violência] não mudou”. É, isso aí: o problema da violência é da ordem do conhecimento, não da ação. É mais um problema da série dos que estão, conforme Foucault disse, no “difundir-se” da destruição, sob o título de ciência.

Tudo se passa como se o conhecimento ocupasse o lugar das preces e da compra de lugares ao céu. Sendo que, no lugar de salvação das almas, resta a salvação do corpo e da saúde, ainda que esta, a saúde, tenha a característica reguladora da realização impossível. Um incauto poderia perguntar: por que impossível? Porque sociedades não são celestiais e a ordem das ações não pertence ao universo mágico dos anjos, mesmo que eles assinem cheques e autografem livros como fossem cientistas. Essa transfiguração do conhecimento em prece religiosa é tão dogmática como a aversão da psicologia – que não sei onde reside, exatamente – às considerações de natureza genética, não só sobre a violência.

Enquanto os defensores da salvação pela ciência não especificam os demais procedimentos multidisciplinares do projeto de pesquisa, há pelo menos uma hipótese a ser considerada. Considerada e não contemplada pela escolha do grupo de controle e do grupo de jovens homicidas apenados da FASE. O código de trânsito brasileiro recepciona as figuras do homicídio doloso e culposo, com a variante do dolo eventual. Disso se segue que o responsável por uma morte no trânsito é, uma vez condenado num devido processo legal, um homicida. Esse é um dado real, demonstrado com uma simples abertura do texto do código.

Eis a hipótese: e se a investigação jurídica, a sociológica e a econômica chegarem ao dado de que há uma quantidade maior de jovens homicidas no trânsito do que os apenados da FASE, soltos nas ruas, com direito a bons advogados, que jamais puseram nem porão os seus pés na FASE? A justificativa da permanência da escolha pelos jovens homicidas apenados da FASE só se apresenta se 1) a violência no trânsito for considerada de ordem alheia à violência social, de modo que matar no trânsito não ameaça a segurança pública e 2) se for mais fácil usar jovens pobres, negros e socialmente desamparados como objetos de análise, do que aqueles outros, também homicidas – portanto, juridicamente tão criminosos quanto – que não estão na FASE.

Qual o problema? É que essa hipótese, acima, não pode ser descartada e, contudo, a escolha pelos jovens homicidas apenados da FASE pretende ser neutra. Conforme o neurologista que citei disse: “escolhemos a FASE porque acreditamos que estariam lá”. E se não estiverem só lá? No mínimo, a multidisciplinaridade merece ser levada a sério.

Por fim – desta segunda parte – não vou enveredar por argumentos ad hitlerum. Simplesmente não é preciso, já que não calo nem me abstenho. Agora bem, há algo que é necessário, sim, ser lembrado. Alguns meses após assumir o governo do estado do Rio Grande do Sul, Yeda Crusius foi a entrevistada do programa Roda Viva, da TVCultura de São Paulo. Questionada sobre a violência, a governadora respondeu, de pronto, algo mais ou menos assim: “já se sabe, através de estudos, que há um componente genético nesse problema da violência”. Não sei o que era mais bizarro, se o queixo da governadora ou a ausência de referência ao tal estudo.

Isso para lembrar que há algo muito esquisito e (talvez seja o caso lembrar) cientificamente indefensável neste projeto de pesquisa de que estou falando. Osmar Terra é secretário de estado da saúde e é, também, aluno de uma pós-graduação na medicina da PUCRS. Consta nas matérias de ZH que o secretário é um dos membros desta pesquisa. O que um secretário de saúde faz nesta pesquisa? Isso não seria motivo de escândalo, por si só, perante ninguém? Então, não é só a circularidade da petição de princípio de que não se faz, nunca, a ciência, o problema. Não é a hipótese de que a violência seja um caso de saúde, mas que a saúde mental – genética? – seja parte de uma decisão que não é, pelo menos segundo o que se leu nos jornais, científica, absolutamente, mas política, o que espanta. Isso não é esclarecimento, nem ciência. É um assombro obscurantista e historicamente temerário.

Continuo, com Lebrun. Recomendo vivamente o site português Conta Natura, sobre política de ciência, biologia, genética e quetais. É excelente e nada menos.
Texto escrito por Katarina Peixoto, publicado no blog: Palestina do Espetáculo Triunfante, em 31/01/2008

Enunciados científicos a título de ensaios, não preces I

Por: Katarina Peixoto (doutoranda em filosofia da UFRGS)

“O velho ideal científico da episteme, o ideal de um conhecimento científico absolutamente certo e demonstrável, revelou-se um fetiche. A exigência de objetividade científica torna inevitável que todo enunciado científico seja dado, e permaneça necessariamente, e para sempre, a título de ensaio.” Karl Popper

Pois é, gente amiga, posso dizer-lhes com toda galhardia, eu nunca pensei que estaria aqui citando Popper, o autor de uma das mais célebres porcarias de filosofia política. É que o cara, reza a lenda, é um epistemólogo e essa passagem do seu Lógica da Descoberta Científica atesta a modéstia anti-delirante que bem poderia ter acompanhado o pensador da ciência nas suas considerações, nada reflexivas, sobre a política. Também essa escolha de uma citação de Popper me ajude a dizer o que pretendo, sem suspeição de obscurantismo.

Interrogar a possibilidade de limite à fé pode ser buscar o instante em que a razão ou uma descoberta ou invenção do entendimento irrompe a nossa jaulinha de crenças. Também pode ser duvidar de que a crença ou a fé religiosa tenha algum papel, dentro ou fora das igrejas, salvo o de prejudicar o pensamento e a ciência. Se é certo que o universo de crenças não é necessariamente avesso ao da razão isso não torna a relação entre ambos menos complicada e cinza. E um olhar cuidadoso e modesto sobre a história do pensamento desde o grande combate que resultou no iluminismo não assegura a tese de um avanço irreversível no tratamento da relação entre Fé e Razão, assim, generalisticamente, conforme tentarei esclarecer. Tirando o otimismo delirante pré-oitocentos, os embates entre esclarecimento e obscurantismo nunca pareceram, nitidamente, correlatos aos embates entre fé e razão.

Tipo de briga em que todo esquematismo funciona como bala perdida.

Neste início de século XXI o espetáculo triunfante converteu a palavra ciência numa espécie de tábua de salvação religiosa. Foucault, na sua luminosa e produtiva paranóia, já havia-nos alertado sobre um dos aspectos mais tenebrosos dessa conversão, a saber, a politização da saúde, conforme se pode depreender desta passagem do seu Vontade de Saber: “Por milênios o homem permaneceu o que era para Aristóteles: um animal vivente e, além disso, capaz de existência política; o homem moderno é um animal em cuja política está em questão a sua vida de ser vivente”.[1] Foucault diagnostica o que chama de “limiar de modernidade biológica” como o ponto em que espécie e individuo – tomado como mero corpo – tornam-se o que é estratégico em política. Para nós todos, que lemos estas coisas agora, a imagem de que a política hoje parece-se mais com o atendimento de emergência de um hospital do SUS de grandes cidades vem logo à mente. Só que não é só esse caráter precário, urgente, atrasado e diminuído da política o que tem Foucault em mente. Ele está preocupado é com a conversão da saúde num tema estratégico do poder político, de tal maneira que uma visão apocalíptica, como esta, não cause surpresa alguma. Diz Foucault: “Resulta daí uma espécie de animalização do homem posta em prática através das mais sofisticadas técnicas políticas. Surgem então na história seja o difundir-se das possibilidades das ciências humanas e sociais, seja a simultânea possibilidade de proteger a vida e de autorizar o seu holocausto”. As possibilidades das ciências humanas e sociais não interessam, aqui. Não é com um estatuto ou com a ausência deste, nas ciências humanas, que estou preocupada. Mas a última frase é mesmo meio estonteante: o que pode querer dizer proteger a vida e autorizar a sua destruição?

Não precisa enveredar nas considerações, manifestos e quetais da Biopolítica, para nos assombrarmos com alguns acontecimentos, internos e externos ao debate científico. Quer dizer: não precisa recorrer a uma estrutura paranóica para denunciar outra. Tentarei não enveredar por esse caminho, porque há vidas humanas e muitas, em jogo. E a paranóia, ao contrário da fé, tem limite (ela precisa do outro para existir). O ponto é o que quer dizer confiar na ciência? O que se pode esperar do conhecimento científico e se há ou deve haver limites à investigação científica, para aquém das nhacas do “difundir” da bioética.

Tornou-se lugar comum, ao ponto de zeagá repercutir a título de notícia, a tese de que a crítica a qualquer autoridade da comunidade científica é obscurantista. Para além da intermitente guerra ideológica de que se alimenta o espetáculo (de que o caso da transgenia by Monsanto é só mais um exemplo, hoje substituído pela falcatrua triunfante dos desertos verdes), a crença na ciência tem cada vez mais se parecido com uma fé religiosa. Não é só o dogmatismo bocó de alguns professores ou jornalistas ou assessores de imprensa. É a certeza psicótica de que se faz a promessa cientificista dos dias que correm. Às vezes é como se o pesadelo da Terceira Internacional tivesse penetrado nos departamentos de genética e nos laboratórios privados que as grandes corporações químicas dos EUA financiam. Troço assustador. E, sobretudo, nada livre.

Mas eu falava da (boa) paranóia de Foucault, que aponta o caráter estratégico da vida biológica para a estratégia política do poder triunfante na “modernidade”. Por que? A seguir tentarei explicar. Porque a conversão do tratamento da violência numa questão de saúde – biológica – é nada mais que uma variante tenebrosa da fantasia malévola segundo a qual a sociedade deve ser uma comunidade de corpos sem cabeça, governados pelo monstruoso vigia do grande e nunca histórico museu de cérebros que atende pelo nome mágico de cientista.
[1] Citação feita por Agamben, em Homo Sacer, p. 11.
Texto escrito por Katarina Peixoto, publicado no blog: Palestina do Espetáculo Triunfante, em 30/02/2008.

quinta-feira, 27 de março de 2008

Desafio:


"Espero,
tenho fé,
que jamais, jamais
passarei pela vergonha
de me acomodar".
Maiakovsky (1983 – 1930)

quarta-feira, 26 de março de 2008

Convite: Calouradas 2008 - Ações Afirmativas

O Fórum de Ações Afirmativas convida a participar das atividades que visibilizam as ações afirmativas na UFRGS dentro da programação das Calouradas 2008 organizadas pelo DCE, que esse ano tem como tema: "Universidade em movimento: autonomia, diversidade e democracia".

Dia 27 de março - Sala 101 FACED – Campus do Centro
10h Debate com Vera Rosane (MNU)
12h Teatro
18h30 Discussão sobre a implementação do Programa de Ações Afirmativas na UFRGS.
Mesa de abertura com movimento negro, indígena e estudantes do Programa de Ações Afirmativas.
Mesa - Debate: Comissões de Acompanhamento, DCE, Assurgs e Fórum de Ações Afirmativas.

Dia 27 e 28 de março – frente à FACED
Feira de artesanato Diversidade na Universidade.

segunda-feira, 24 de março de 2008

O parto anônimo – uma medida na contramão da história

Claudia Fonseca (coordenadora do Núcleo de Antropologia e Cidadania - professora do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da UFRGS)

O projeto de lei n. 2747/08 do deputado federal Eduardo Valverde (PT-RO), que estabelece o parto anônimo, vai na contramão dos avanços no campo da adoção. Ao tentar desfazer algumas confusões que voltam repetidamente nas discussões sobre seus supostos méritos, vou explicar por que considero esta inovação legislativa, no mínimo, desnecessária.

Confusão n. 1: Argumenta-se que o parto anônimo vai “descriminalizar” o abandono dos filhos. Ora, conforme a legislação em vigor, entregar um filho em adoção não é crime. Como o parto anônimo vai “descriminalizar” um ato que não é crime? No Brasil, como na maior parte do mundo moderno, uma mulher pode legalmente dar seu recém-nascido em adoção. Conforme o artigo 134 do Código Penal, o que é crime é “expor” uma criança, ou deixá-la correr perigo em situação desassistida. Com ou sem a nova legislação sobre parto anônimo, essa “exposição” continua sendo crime, e a entrega de uma criança pela mãe a adoção continua sendo uma opção absolutamente legal.


Confusão n. 2: Defende-se que o anonimato traria uma inovação importante. Ora, conforme a legislação em vigor, já existe a possibilidade da mãe biológica gozar de sigilo total. De acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente (1990), a criança adotiva é registrada no nome de seus pais adotivos, sem nenhuma menção do status adotivo. O registro original é cancelado e arquivado pela autoridade judiciária. É só com autorização do juizado, mediante farta justificação, que é permitida a consulta a essa documentação. O novo projeto de lei pouco difere dessa política, pois prevê a possibilidade de quebrar o sigilo em circunstâncias precisas (“A identidade dos pais biológicos será revelada pelo Hospital, caso possua, somente por ordem judicial ou em caso de doença genética do filho”, art. 11).

Existe, no entanto, uma diferença entre sigilo e anonimato. No primeiro caso, existem pistas – informações a serem controladas ou mesmo escondidas, mas que encerram a possibilidade eventual de consulta. No segundo caso, quer-se apagar todo rastro dos vínculos implicados no nascimento, fazendo com que uma decisão no presente determine a falta de qualquer outra opção no futuro. Críticos ao parto anônimo lembram reiteradamente de mães biológicas – mesmo vítimas de estupro ou de incesto – que, com o tempo, mudam de sentimento. Assim, a “rejeição” inicial é substituída pelo desejo de ter informações ou até algum contato com a criança doada. O anonimato total do processo criaria uma barreira intransponível à possibilidade de mudança.


Confusão n. 3: Supõe-se que a maioria das mães que abandonam seus filhos querem permanecer anônimas. Tal pressuposto não leva em conta a realidade atual. Quando foi inventada no início da época moderna, a famigerada “Roda dos Expostos” servia para preservar a “honra familiar”. Além dos pais que abandonavam seus filhos por causa de extrema pobreza, encontravam-se ali crianças “bastardas”, filhos de relações adulterinas, e outros cuja revelação pública podia causar grande incômodo à família e, eventualmente, prejudicar as chances da parturiente a se integrar na vida social. Nestas condições, a roda fornecia uma alternativa ao infanticídio. Imaginar que, em 2008, o clima moral seja tão coercitivo quanto o do século XVIII seria ignorar o impacto das várias “revoluções” (social, sexual, feminista, tecnológica) do fim do século XX. Seria também ignorar o fato de que a grande maioria das mães que entregam seus filhos em adoção são coibidas não pela moralidade puritana, mas sim pela miséria. Para estas, não interessa nem anonimato, nem sigilo. Muitas escolhem fazer adoções “diretas” onde participam da escolha dos pais adotivos justamente porque não querem ficar inteiramente no anonimato.

Certamente, existem situações ainda hoje – casos de incesto, por exemplo -- que podem exigir sigilo total das informações sobre o parto. A possibilidade desse sigilo total já existe na lei. Mas devemos atentar para as interdições não se tornarem conveniência da família em vez de desejo da mãe. Como sugere um especialista desse assunto na França, o anonimato protege, sim. Protege o agressor adulto que perpetrou o abuso ou o incesto: não há mãe, não há criança, não há indícios, portanto não há perigo de penalização..


Confusão n. 4: Há defensores do projeto que argúem que o parto anônimo servirá para encorajar a maternidade e paternidade responsáveis. Críticos sugerem que, pelo contrário, se passar essa lei, é possível que certas mulheres sejam induzidas (pela publicidade, falta de outras informações) a escolher essa forma de abandono preterindo alternativas menos radicais de entrega e adoção.

Ainda mais grave é o fato de que, no parto anônimo, a entrega da criança depende de uma decisão unilateral da mãe, não havendo possibilidade de investigação ou responsabilização paterna. Céticos podem opinar que é justamente o fato de não ter um parceiro fixo, pronto a assumir o papel de pai, que leva a mulher a procurar um parto anônimo. Por outro lado, tomamos conhecimento de não poucos casos em que a mulher entrega seu filho em adoção justamente para magoar um ex-companheiro, prevenindo contra seu desejo de exercer a paternidade. Na França, o parto anonimo já enfrentou sua primeira derrota por causa desse tipo de complicação paterna. Em 2006, uma corte superior deliberou por anular a adoção de um recém-nascido, fruto de um “parto anônimo”, pois o pai da criança, que tinha tomado o cuidado de fazer uma declaração pré-natal de sua paternidade, se obstinou em ser pai malgrado os esforços contrários de sua ex-companheira.


Confusão n. 5: Em certos debates, ainda emerge uma noção que o parto anônimo é nos melhores interesses da própria criança. Ora, existe um consenso hoje, ratificado pela legislação internacional, e presente no discurso da maioria de profissionais lidando com o bem-estar de crianças adotadas, que uma pessoa deve ter acesso a informação sobre suas origens. Tal movimento luta contra o clima de clandestinidade (que associa a adoção a segredos assombrosos), e a favor da circulação mais livre de informação. Assim, por exemplo, existem desde os anos 70 serviços administrados pelo próprio governo em paises como Inglaterra, Noruega e Suécia – que fornecem a qualquer indivíduo adotado, acima de 18 anos, cópia de sua certidão de nascimento original, com nome de mãe e/ou pai biológicos. Conforme o caso, e – geralmente mediante concordância expressa dos pais biológicos -- esses serviços podem até facilitar um reencontro. Na França, esse tipo de serviço iniciou apenas em 2002, sob a administração da então Ministra da Família, Ségolène Royale. De forma significativa, na França, são os integrantes desse serviço que assumiram liderança na luta contra o parto anônimo. É curioso que os proponentes brasileiros do parto anônimo, tão animados pelos exemplos de além-mar, não falam nunca em organizar esse tipo de serviço (ou registro) no Brasil. Por enquanto, o esforço de mudar a “cultura da adoção” fica a cargo de organizações não-governamentais (grupos de apoio à adoção), e o desejo dos adotados de “conhecer suas origens” só recentemente ganha um tímido lugar em associações como a recém-fundada “Filhos Adotivos do Brasil” (www.filhosadotivosdobrasil.com.br).


Confusão n.6: Ironicamente, enquanto críticos em outros paises observam que o parto anônimo tem exacerbado as possibilidades de tráfico de crianças (como controlar o paradeiro de um ser anônimo?), no Brasil há defensores sugerindo que a lei preveniria casos de tráfico. É importante aqui lembrar algo da história recente. No Brasil, existem diversas instâncias com longa história de reflexão, luta e experiência na adoção de crianças. Desde os anos 80, os Juizados de Infância, estão organizando e reorganizando seus serviços, integrando-se em debates nacionais e internacionais, paraforjar políticas de adoção condizentes com os princípios dos direitos da criança. Desde os anos 90, cresce o movimento dos Grupos de Apoio à Adoção, associações de voluntários leigos (em geral, pais adotivos) que mantêm um diálogo, ora amistoso, ora crítico, com os Juizados quanto ao andamento da adoção. Foi o conjunto dessas forças que agiram para coibir o “tráfico de crianças”, implantando regulamentações cada vez mais respeitadas sobre a adoção.

O projeto de lei, ao sugerir que o parto anônimo seja administrado pelos hospitais, enfermeiros e médicos, coloca uma enorme responsabilidade justamente em uma categoria médica já sobrecarregada e com pouquíssima experiência nesse assunto. É verdade que, até o início dos anos 80, os hospitais, maternidades e casas de parto (muitas vezes de inspiração filantrópica ou religiosa) eram o foco principal do processo de adoção. Contudo, foi no esforço de profissionalizar essas práticas, assegurando uma equação equilibrada entre os direitos de todos os envolvidos (criança, famílias de origem e pais adotivos) que a administração da adoção foi gradativamente retirada dos hospitais e entregue nas mãos de autoridades centrais do governo. Transferir mais uma vez essa responsabilidade para os hospitais arrisca deixar para trás décadas de reflexão, abrindo a porta para a ascendência de milhares de pequenos serviços, administrados por pessoas que não têm nem experiência, (nem, muitas vezes, o desejo) de lidar com as situações complicadas envolvidas na entrega de uma criança para adoção.

Os autores da proposta de lei trazem uma preocupação válida com o destino de mães desesperadas e seus recém-nascidos – que devem, em qualquer caso, receber assistência gratuita, com todo o acompanhamento psicológico necessário. No entanto, é dificil imaginar como o parto anônimo -- que não traz grandes inovações para essas mães -- vai prevenir o abandono. Pelo contrário, trata-se de uma medida que facilita a adoção de recém-nascidos, liberando o processo dos longos inquéritos sociais ou buscas de paternidade. São tais considerações que levaram críticos franceses a fazer uma pergunta que cabe também no contexto brasileiro. O parto anônimo é fruto de uma necessidade social ou de um lobby político de pais adotivos que querem se esquivar ao controle dos serviços estatais?

Devemos lembrar que houve um imenso esforço nos últimos anos em desenvolver políticas para promover a “convivência familiar”, isto é, políticas voltadas ao direito da criança de crescer na sua família/bairro/país de origem. Acompanhou esse esforço a ênfase crescente em “adoções necessárias” – adoções voltadas antes de tudo para o bem-estar das crianças mais velhas, claramente sem família, que foram “esquecidas” nos abrigos. Nessa conjuntura, o filho idealizado pela maioria de pais adotivos – isto é, o recém-nascido branco, em perfeitas condições de saúde—tornou-se escasso. O projeto do parto anônimo é, nesse sentido, uma resposta às orações dos adotantes: promete impor prazos limites à tramitação do processo, produzindo uma fartura de adotados ideais em tempo recorde. Ademais, será uma coincidência que exatamente no momento em que afloram em todo o mundo ocidental movimentos de adotados em busca de suas “origens” é que renasce a noção do parto anônimo? Com essa medida, os pais adotivos conseguem eliminar antecipadamente o eventual desejo do seu filho, simplesmente apagando a história de seu nascimento e, assim, afastando qualquer possibilidade de lidar com a realidade inconveniente de sua “outra” família.



Dados sobre França consultados nos textos:

Ver também “L´accouchement dans l´anonymat et ses incidences juridiques » por Pierre Murat, professor na Universidade Pierre Mendes-França de Grenoble, França. (www.ciec1.org/Etudes/ColloqueCIEC/CIEColloqueMuratFr.pdf).

E “Láccouchement sous X: symbole ou faits?” por Claude Sageot, sociólogo, Presidente de la D.P.E.A.O. (Association pour le droit aux origines des pupilles de l'Etat et des adoptés).
(http://www.ancic.asso.fr/textes/ressources/ethique_acouchement_sous_x.html)

quarta-feira, 19 de março de 2008

O mapa das ações afirmativas na Educação Superior¹

Renato Ferreira*


Racismo estrutural histórico

Historicamente, é a desigualdade um dos caracteres mais significativos da sociedade brasileira. No que tange às relações raciais, a opressão estabelecida sobre os negros se tornou ainda mais aguda por conta de o Estado não ter implementado políticas públicas voltadas para promover os direitos dos libertos depois da abolição.

Isso possibilitou a cristalização de um racismo estrutural que se caracteriza pela manutenção de processos nefastos de exclusão que legaram aos afro-brasileiros uma trajetória inconclusa em relação à cidadania. Vale dizer que a ausência de políticas dirigidas à promoção dos negros cristalizou diferenças abissais entre estes e os brancos, tornando a superação dessas desigualdades como um dos principais desafios republicanos para este início de século.

Os afro-brasileiros, que correspondem a 47,3% da população, encontram-se em situação profundamente desvantajosa em relação aos brancos em todos os indicadores sociais relevantes. As desigualdades raciais na educação, por exemplo, não foram reduzidas de modo significativo. Até a década de 1950, quase 70% dos negros eram analfabetos. Em 2004, 47% dos negros com 60 anos ou mais de idade eram analfabetos enquanto 25% dos brancos estavam na mesma situação.³). Entre as crianças negras, de 10 a 14 anos de idade, o analfabetismo chega a 5,5% comparados a 1,8% entre as crianças brancas da mesma idade.
Atualmente, a média de estudos dos brasileiros brancos é de 7,7 anos e a dos negros é de 5,8 anos. Está em 16% a estimativa de negros, maiores de 15 anos, analfabetos. Esse valor é de 7% para os brancos.

Já no ensino superior, a situação é ainda mais grave. Apenas 10,5% dos jovens de 18 a 24 anos estão matriculados nas universidades. Dentre eles, o número de negros é ínfimo, 94% deste grupo não está matriculado nestas instituições de ensino.4 Vale dizer que o Brasil sempre desenvolveu uma educação elitista, seus processos funcionam como filtragem humana – produto de uma discriminação estruturada – que se reproduz historicamente, de forma pusilânime, contra pobres e negros.5

Há cinco anos, algumas universidades públicas começaram, ou tiveram que começar, a adotar políticas de democratização do acesso às suas vagas. Segundo dados do Ministério da Educação, o Brasil possui 224 instituições públicas de ensino superior. Dessas, 87 são federais, 75 estaduais e 62 municipais.

O mapa das ações afirmativas na Educação Superior², pesquisa recente realizada pelo Laboratório de Políticas Públicas da Uerj, constatou que 72 instituições (32 % do total de universidades públicas) promovem algum tipo de ação afirmativa. O estudo demonstrou também, que existem variações significativas nesse processo de inclusão.

Essas variações são relativas ao modelo da política pública adotada: sistema de cotas, sistema de bonificação por pontos, reserva de vagas, etc e diferem quanto ao grupo promovido pela política, tendo a ver com a identificação dos sujeitos de direitos da ação afirmativa: negros, indígenas, pessoas com deficiência, alunos da rede pública, pobres, mulheres negras etc.

O estudo, comparativo entre as políticas de inclusão, demonstrou que existe uma ampla adoção de cotas étnico-raciais. Ao todo, 53 universidades implementaram esse tipo de política. Dessas, 34 instituições possuem medidas afirmativas para negros, sendo que 31 se desenvolvem pelo sistema de cotas e três por meio do sistema de bonificação por pontos. E uma universidade adota a reserva, de um número específico de vagas, para mulheres negras. Identificamos, no total, nove instituições que adotam ações afirmativas para pessoas com deficiência.

O estado de São Paulo é o que possui mais universidades com ações afirmativas, são sete no total. E, no que diz respeito aos indígenas, já são 37 instituições que adotam ações afirmativas (a maioria sob a forma de reserva de vagas). O estado do Paraná possui o maior número de instituições que aplicam essa forma de inclusão, são 18 ao todo.

É importante ressaltar que a pesquisa também demonstra um pequeno avanço de políticas de inclusão adotadas, sobretudo por universidades federais no uso de sua autonomia, somente para estudantes de escola pública, deixando de contemplar outros grupos de minorias e, conseqüentemente, as lutas sociais que deram suporte ao início do processo de democratização do acesso ao ensino superior.

Trata-se de uma espécie do que chamamos de neojeitinho, no qual, pelo subterfúgio vazio da adoção de uma política pública sem corte étnico-racial, por exemplo, se pretende promover a cidadania dos mais excluídos. O que se quer com isso, na verdade, é evitar um verdadeiro enfrentamento da questão. A promoção do debate, ainda que pelo enfrentamento, é salutar e é a principal forma para o limiar da superação do nosso racismo. Enquanto não houver debate, o racismo estrutural brasileiro continuará vencendo.

Temos, portanto, 17 universidades – boa parte delas na região Nordeste – que estabeleceram medidas somente para estudantes de escola pública. Uma instituição adota o sistema de cotas somente para alunos pobres, independentemente de eles serem oriundos da rede pública ou privada de ensino.

O critério mais utilizado para reconhecer os sujeitos de direito da ação afirmativa é a autodeclaração. Por ela, o candidato à política de inclusão tem que se declarar pertencente aquele grupo específico (negros, indígenas etc.) e dizer que quer concorrer para às vagas destinadas àquela minoria.

Observamos que o desenvolvimento da instituição de políticas afirmativas no ensino superior remete para a necessidade de promover uma ampla reflexão sobre as relações raciais e as práticas institucionais associadas à implementação dessas políticas de inclusão. Devemos ampliar o debate sobre a diversidade de modelos e das estratégias da academia para a implementação de ações afirmativas e, com isso, permitir uma abordagem crítica sobre as dificuldades e entraves (jurídicos, políticos e institucionais), bem como as conquistas, derivadas da implementação dessas políticas.

Nossa emancipação definitiva requer engajamento e reflexão conjunta em prol da cidadania, e também maior participação política, econômica, social e cultural. As políticas afirmativas se constituem, nesse contexto, como um dos instrumentos eficazes para a promoção dos povos historicamente excluídos e são meios que podem ajudar na luta contra a marginalização possibilitando o desfazimento de desigualdades incompatíveis com o Estado democrático de direito.

* Advogado especialista em Direito e Relações Raciais e pesquisador do Laboratório de Políticas Públicas da Uerj.

As opiniões das colunas não traduzem, necessariamente, posições do Ibase.

Notas de Rodapé:
1. Neste artigo nos referimos apenas às instituições públicas de ensino superior.
2. Publicado em www.politicasdacor.net
3. Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (IPEA) & Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para a Mulher (Unifem). Retratos das Desigualdades, 2006.
4. Ver entrevista do economista Marcelo Paixão dada ao jornal Folha Dirigida (Caderno de Educação), publicada em 15 de janeiro de 2008.
5. Ver em A Educação despejada. Artigo de Renato Ferreira Fonte: http://oglobo.globo.com/opiniao/mat/2007/02/28/294741787.asp - Publicado em 28.2.07.

Publicado em 14/3/2008.
http://www.ibase.br/modules.php?name=Conteudo&pid=2252




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terça-feira, 18 de março de 2008

sexta-feira, 14 de março de 2008

"Operários", de Tarsila do Amaral (1933)

A vida não convencional da mãe de Barack Obama

Por: Janny Scott, do New York Times

Na versão resumida da história de Barack Obama, a mãe dele é apenas a mulher branca do Kansas. A frase vem acompanhada da sua contraparte, o pai negro do Quênia. Na campanha eleitoral, ele a chamou de a sua "mãe solteira". Mas nenhuma das descrições consegue retratar a vida não convencional de Stanley Ann Dunham Soetoro, que, dos seus genitores, foi o que mais modelou Obama.O Kansas foi apenas uma etapa intermediária na infância dela, que acompanhou o seu pai, um vendedor de mobílias, rumo ao oeste. No Havaí, aos 18 anos, ela casou-se com um estudante africano. Depois, casou-se com um indonésio, mudou-se para Jacarta, tornou-se antropóloga, escreveu uma dissertação de 800 páginas sobre os trabalhos de serralheria dos camponeses de Java, trabalhou para a Fundação Ford, defendeu o direito das mulheres trabalhadoras e ajudou a criar o sistema de microcréditos para os pobres de todo o mundo. Ela tinha grandes expectativas em relação aos filhos. Na Indonésia, ela acordava o Obama às 4h da manhã para que ele fizesse cursos de inglês por correspondência antes de ir para a escola; ela trouxe para casa gravações de Mahalia Jackson, e discursos do reverendo Martin Luther King Jr. E quando Obama pediu para ficar no Havaí para cursar o segundo grau em vez de retornar à Ásia, ela aceitou viver longe dele - uma decisão que, segundo a sua filha, foi uma das mais difíceis que Stanley Ann tomou em sua vida.
"Ela sentia que, de alguma forma, ao vagarmos por território desconhecido, poderíamos nos deparar com algo que, em um momento, pareceria representar aquilo que somos no nosso âmago", diz Maya Soetoro-Ng, a meia-irmã de Obama. "Essa era basicamente a sua filosofia de vida - não nos limitarmos por medo de definições estreitas, não erguermos muros à nossa volta e nos empenharmos ao máximo para encontrarmos a afinidade e a beleza em locais inesperados".Stanley Ann, que morreu de câncer de ovário em 1995, foi quem criou Obama, o senador por Illinois que está disputando a vaga do Partido Democrata de candidato à presidência. Ele pouco viu o pai após os dois anos de idade. Embora seja impossível precisar a influência que os pais tiveram na vida de um filho, as pessoas que conheceram bem Stanley Ann afirmam que a sua influência sobre Obama é inegável.Eles eram muito próximos, segundo os amigos de Stanley Ann e da meia-irmã de Obama, embora tenham passado grande parte de suas vidas tendo oceanos ou continentes a separá-los. Obama afirmou que, se não fosse pela mãe, ele não estaria onde se encontra hoje. Mas ele também fez algumas escolhas diferentes - casando-se com uma mulher de uma família afro-americana extremamente unida da zona sul de Chicago, tornando-se um cristão praticante e narrando publicamente a sua busca da sua identidade como homem negro.Algumas coisas que ele disse sobre a mãe parecem tingidas por uma mistura de amor e remorso. Ele diz que o seu maior erro foi não ter estado à beira do leito da mãe quando ela morreu. E quando a Associated Press perguntou aos candidatos a respeito das suas "melhores lembranças" - outros mencionaram bolas de beisebol autografadas, um relógio de bolso, uma "mulher-troféu" -, Obama disse que a sua é uma fotografia das montanhas da costa sul da ilha de Oahu, no Havaí, onde as cinzas da sua mãe foram espalhadas."Às vezes penso que caso soubesse que ela não sobreviveria à doença, eu poderia ter escrito um livro diferente - menos uma meditação sobre o pai ausente, e mais uma celebração da mãe que foi o único fator constante na minha vida", escreveu ele no prefácio das suas memórias, "Dreams From My Father" ("Sonhos do Meu Pai"). Ele acrescentou: "Sei que ela foi o espírito mais gentil e generoso que eu já conheci, e devo a ela aquilo que tenho de melhor em mim".Em uma campanha na qual o senador John McCain, o presumido candidato republicano, tem usado freqüentemente a sua itinerante mãe de 96 anos de idade para responder às suspeitas de que ele pode ser muito velho aos 71 anos, Obama, que se recusou a ser entrevistado para esta matéria, invoca a memória da sua mãe com mais parcimônia. Em uma propaganda de televisão ela aparece brevemente - com pele de porcelana, cabelos revoltos e segurando no colo o filho bebê. "A minha mãe morreu de câncer aos 53 anos", diz ele em uma propaganda eleitoral, cuja mensagem é focada na questão da saúde. "Naqueles últimos meses dolorosos, ela se preocupava mais em pagar as despesas médicas e hospitalares do que em melhorar".Ele a descreveu como uma mãe adolescente, uma mãe solteira, uma mãe que trabalhava, ia à escola e criava os filhos ao mesmo tempo. Obama diz que foi só devido a ela que ele teve uma excelente formação educacional e a confiança na sua capacidade de fazer as coisas certas. Mas, em entrevistas, amigos e colegas de Stanley Ann lançam uma luz sobre um lado dela que é menos conhecido."Ela era uma grande pensadora", afirma Nancy Barry, ex-presidente da Women's World Banking, uma rede internacional de fornecedores de micro-financiamento, para a qual Stanley Ann trabalhou na cidade de Nova York no início da década de 1990. "Creio que ela não tinha nem um pouco de ambição pessoal. Ela preocupava-se com as questões centrais, e acredito que não tinha medo de dizer a verdade aos poderosos". Os pais dela eram do Kansas - a mãe de Augusta, o pai de El Dorado, um lugar que Obama visitou em uma escala de campanha em janeiro. Stanley Ann (o pai dela queria um garoto, e por isso a batizou com esse nome) nasceu em uma base do exército durante a Segunda Guerra Mundial. A família mudou-se para a Califórnia, Kansas, Texas e Washington em uma busca incessante de oportunidades antes de aterrissar em Honolulu em 1960.Em um curso de russo na Universidade do Havaí ela conheceu o primeiro aluno africano da instituição, Barack Obama. Eles casaram-se e tiveram um filho em agosto de 1961, em uma época em que os casamentos inter-raciais eram raros nos Estados Unidos. Os pais dela ficaram irritados, segundo Stanley Ann contou anos mais tarde a Obama, mas adaptaram-se. "Tenho certas dúvidas em relação ao que pessoas de outros países me dizem", disse anos atrás em uma entrevista a avó do senador. O casamento durou pouco. Em 1963, o pai de Obama foi para a Universidade Harvard, deixando a mulher e o filho. Ela então se casou com Lolo Soetoro, um estudante indonésio. Quando ele foi convocado para retornar ao seu país em 1966, após a agitação em torno da ascensão de Suharto, Stanley Ann e o jovem Barack foram também para a Indonésia. Segundo vários amigos de Stanley Ann da escola de segundo grau, tais escolhas não foram inteiramente surpreendentes. Eles lembram-se dela como sendo uma pessoa curiosa, aberta e de uma inteligência incomum. Ela nunca namorou com "os garotos brancos engomados", diz Susan Blake, uma amiga daquela época. "Já quando adolescente ela possuía uma visão própria do mundo. Tratava-se de adotar o diferente, em vez de assumir aquela postura etnocêntrica que despreza o que é diferente. Foi nessa direção que a mente dela a conduziu". O seu segundo casamento também acabou, na década de 1970. De acordo com uma amiga, ela queria trabalhar, e Lolo Soetoro desejava mais filhos. Stanley Ann disse certa vez que ele tornou-se mais norte-americano, e ela mais javanesa. "Existe uma crença javanesa segundo a qual se você casa-se com alguém e o relacionamento não dá certo, tal relação fará com que você adoeça", diz Alice G. Dewey, uma antropóloga e amiga de Stanley Ann. "É simplesmente uma idiotice permanecer casada em tais circunstâncias". Alguns amigos dizem que o fato de ambos os casamentos terem acabado não vem ao caso. Stanley Ann permaneceu leal aos dois maridos e encorajou os filhos a manterem vínculos com os pais.(Obama conta que ao ler rascunhos das memórias do filho, ela não fez comentários sobre a forma como foi descrita, mas "não perdeu tempo em explicar e defender os aspectos menos nobres do caráter do meu pai".)"Ela sempre sentiu que o casamento como uma instituição não era algo particularmente essencial ou importante", diz Nina Nayar, que mais tarde tornou-se uma grande amiga de Stanley Ann. "Para ela o que importava era ter amado profundamente".Em 1974, ela estava de volta a Honolulu, como aluna de pós-graduação e criando Barack e Maya, nove anos mais nova. Barack tinha uma bolsa de estudos para a prestigiosa escola preparatória Punahou. Quando Stanley Ann decidiu retornar à Indonésia três anos mais tarde para fazer as suas pesquisas de campo, Barack decidiu não ir."Eu duvidava do que a Indonésia tinha agora a oferecer e estava cansado de começar tudo de novo", escreveu ele nas suas memórias. "E mais do que isso, cheguei a um pacto não declarado com os meus avós: eu poderia morar com eles. E eles me deixariam em paz, contanto que eu não apresentasse os meus problemas. Durante aqueles anos eu estava imerso em uma intermitente luta interior. Eu tentava me preparar para ser um homem negro nos Estados Unidos".Soetoro-Ng recorda-se do dilema da mãe. "Ela queria que Obama fosse também", diz Soetoro-Ng. Mas ela acrescenta: "Embora tenha sido doloroso ficar separada de Obama durante os seus quatro anos de segundo grau, ela reconheceu que isso talvez fosse o melhor para ele. E naquele momento a minha mãe precisava de fato ir para a Indonésia".O período de separação foi difícil tanto para a mãe quanto para o filho. "Ela tinha muita saudade do Obama", conta Georgia McCauley, que ficou amiga de Stanley Ann em Jacarta. Barack passava férias de verão e de Natal com a mãe; eles se comunicavam por cartas, as dele eram ilustradas com caricaturas. O tópico principal de suas conversas era sempre o filho, contam as suas amigas. Quanto a Obama, ele estava lutando com questões relativas à identidade racial, à alienação e à sensação de pertencer a um determinado grupo. "Houve certos momentos na vida dele durante aqueles quatro anos em que Obama poderia ter se beneficiado diariamente da presença da mãe", diz Soetoro-Ng. "Mas creio que ele fez a coisa mais certa para si".Fluente em indonésio, Stanley Ann mudou-se com Maya, primeiro para Yogyakarta, o centro de trabalhos manuais de Java. "Tendo sido uma tecelã na faculdade, Stanley Ann ficou fascinada com aquilo que Soetoro-Ng chama de "minúcias grandiosas da vida". Esse interesse inspirou o seu estudo das indústrias da vila, que se tornou a base da sua tese de doutorado em 1992. "Ela adorava morar em Java", conta Dewey, que se lembra de ter acompanhado Stanley Ann até uma serralheria da vila. "As pessoas diziam, 'Oi! Como vai?' Ela por sua vez perguntava: 'Como vai a sua mulher? A sua filha já teve o neném?'. Eles eram amigos. A seguir ela retirava o seu caderno de anotações da bolsa e indagava: "Quantos de vocês possuem energia elétrica? Vocês têm dificuldades para conseguir ferro?"Ela tornou-se consultora da Agência dos Estados Unidos para Desenvolvimento Internacional (Usaid) para a criação de um programa de crédito na vila, e depois passou a ser funcionária de um programa da Ford Foundation em Jacarta especializado em trabalho das mulheres. Mais tarde, foi consultora no Paquistão, depois ingressou no banco mais antigo da Indonésia para trabalhar naquilo que descreveu como o maior programa mundial de micro-financiamento sustentável, criando serviços como créditos e poupança para os pobres. Os visitantes freqüentavam constantemente o seu escritório da Ford Foundation no centro de Jacarta e a sua casa em um bairro da zona sul da cidade, onde mamoeiros e bananeiras cresciam no jardim e pratos javaneses como opor ayam eram servidos no jantar. Os seus convidados eram líderes do movimento indonésio dos direitos humanos, pessoas de organizações de mulheres e representantes de grupos comunitários que faziam trabalhos de base para desenvolvimento."Eu não conhecia muitos deles, e muitas vezes perguntava, 'quem era aquele sujeito?'", diz David S. McCauley, um economista ambiental do Banco de Desenvolvimento Asiático em Manila, que ocupava o escritório vizinho ao de Stanley Ann. "Depois eu descobria que o cara era o presidente de alguma grande organização que tinha milhares de membros de Java ou algum outro lugar. Alguém que ela conhecera havia algum tempo e que fazia questão de visitá-la ao passar por Jacarta".Como mãe, Stanley Ann era ao mesmo tempo idealista e exigente. Os amigos a descrevem como informal e intensa, bem-humorada e obstinada. Ela pregava ao filho jovem a importância da honestidade, da fala franca e do julgamento independente. Quando ele reclamava das aulas que ela lhe dava de madrugada, Stanley Ann retrucava. "Ei, rapaz, isto também não é nenhum piquenique para mim". Quando Barack estava na escola de segundo grau, ela o criticou pela sua aparente falta de ambição, escreveu Obama. Stanley Ann lhe disse que ele poderia ingressar em qualquer universidade do país, com apenas um pouco de esforço. ("Lembra-se de como é isso? Esforço?") Ele disse que olhava para a mãe, tão séria e segura quanto ao destino do filho: "Eu de repente sentia vontade de acabar com aquela certeza dela. De dizer-lhe que a sua experiência comigo havia sido um fracasso".Soetoro-Ng, que também se tornou antropóloga, recorda-se de conversas com a mãe sobre filosofia ou política, livros e artesanatos indonésios de madeira baseados em temas esotéricos. Em um determinado Natal na Indonésia, Stanley Ann descobriu uma árvore mirrada e decorou-a com pimentas vermelhas e verdes e pipocas."Ela passou para nós um entendimento muito amplo do mundo", diz a filha. "Ela detestava a intolerância, estava bastante determinada a ser lembrada por uma vida de serviços, e achava que tais serviços se constituíam no verdadeiro padrão de avaliação de uma vida".Muitos dos seus amigos enxergam o legado dela em Obama - na sua autoconfiança e energia, na sua capacidade de construir pontes de entendimento, e até no fato de ele aparentemente sentir-se à vontade junto a mulheres fortes. Alguns dizem que ela também os modificou."Sinto que ela me ensinou como viver", afirma Nayar, que tinha pouco mais de 20 anos quando conheceu Stanley Ann no Women's World Banking. "Ela não se preocupava particularmente com aquilo que a sociedade diria a respeito das mulheres trabalhadoras, solteiras, das que se casaram fora de suas culturas originais, daquelas que eram destemidas e sonhavam alto".Após o diagnóstico da sua doença, Stanley Ann passou os últimos meses da sua vida no Havaí, perto da mãe (o seu pai já tinha morrido). Obama lembra-se de ter falado com a mãe no seu leito hospitalar a respeito dos temores dela de terminar financeiramente quebrada. Ele afirmou que ela não estava pronta para morrer. "Mesmo assim, ela ajudou a mim e a Maya a seguirmos as nossas vidas, apesar dos nossos temores, negações ou súbitas ansiedades".Stanley Ann morreu em novembro de 1995, quando Obama começava a sua primeira campanha para um cargo público. Segundo uma amiga, após uma cerimônia fúnebre na Universidade do Havaí, um pequeno grupo de amigos seguiu de carro para a costa sul de Oahu. Enquanto o vento arremessava as ondas sobre as pedras, Obama e Soetoro-Ng lançaram as cinzas da mãe no Oceano Pacífico, na direção da Indonésia.
Tradução: UOL; Ver: http://noticias.uol.com.br