quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

Entrevista com João Pacheco de Oliveira, sobre suposto ato de antropofagia


João Pacheco de Oliveira é antropólogo e professor da UFRJ/Museu Nacional






Suposto caso de antropofagia no Amazonas força o reexame da relação do Brasil com suas comunidades indígenas Que interesses estão por trás dessas sistemáticas campanhas contra os indígenas? A morte de Océlio de Carvalho, 21, em uma aldeia da etnia culina, em Envira, no Amazonas, em 3/2, traz à tona questões complexas envolvendo populações indígenas brasileiras. Segundo relato do sargento da PM José Carlos da Silva, que iniciou a apuração do caso, Carvalho levou pelo menos 80 facadas, teve o corpo partido em duas partes e o fígado, o coração e parte da coxa comidos. Os culinas têm contato com não-índios desde o século 19 e, de acordo com a Funai, não existe a prática da antropofagia entre os povos indígenas no Brasil contemporâneo. Em entrevista à Folha, o antropólogo e coordenador da Comissão de Assuntos Indígenas da Associação Brasileira de Antropologia (ABA) João Pacheco de Oliveira diz que a antropofagia é "um hábito defasado temporalmente". Também diz que esse caso traz "para a discussão pública temas bizarros", que "omitem sistematicamente os problemas reais vividos pelos indígenas", reforçando estereótipos. Na entrevista abaixo, Pacheco -que também é professor do Museu Nacional da UFRJ- alerta para a necessidade de reavaliarmos a relação da sociedade brasileira com os povos indígenas.





FOLHA - Do ponto de vista antropológico, os hábitos culturais indígenas -inclusive a antropofagia- devem ser respeitados?


JOÃO PACHECO DE OLIVEIRA - Penso que se deve lidar com esse assunto de forma cuidadosa. Neste caso, o relativismo cultural deve ser sustentado enquanto metáfora. A antropologia supõe uma dialogia entre culturas. Essa ideia de uma aplicação plena dos direitos culturais deve ser analisada cuidadosamente. Essa questão deverá ser avaliada segundo o código cultural com o qual se deu o fato.


FOLHA - Ainda poderiam existir grupos indígenas isolados no interior do país em que a antropofagia constitua um hábito cultural?


OLIVEIRA - Existem no brasil cerca de 740 mil índios divididos em aproximadamente 220 povos. Os índios isolados, não-contactados, somam menos de 20 povos. Demograficamente, as estimativas trabalhariam com 2.000 pessoas. Tratam-se, às vezes, de famílias isoladas dentro da mata, vivendo como refugiados dentro de uma Amazônia cheia de projetos econômicos. É muito difícil supor que a antropofagia ainda aconteça na Amazônia. Ela viveria apenas na memória das populações.


FOLHA - Que aspectos caracterizam a antropofagia na história social dos índios brasileiros?


OLIVEIRA - Tratava-se de uma promoção social da vítima, uma forma de prestígio social específico, a ideia de uma morte gloriosa, honrosa, pois a antropofagia estava relacionada a sociedades guerreiras. É um contexto que, hoje, se apresenta defasado

temporalmente. Por isso, me parece inviável a antropofagia no contexto atual dos indígenas brasileiros.


FOLHA - A morte na aldeia da etnia culina poderia, de fato, ser considerada um caso de antropofagia?


OLIVEIRA - Acredito que não se trata de um caso de antropofagia ocorrido dentro dos códigos culturais tradicionais indígenas. Que sentido tem falar em um caso real de antropofagia supostamente ocorrido neste contexto? Apenas reforçar velhos estereótipos sobre a crueldade dos índios, sobre o seu caráter vingativo e traiçoeiro, reforçar as formulações que colocam em risco a oportunidade de lhes conceder direitos e de tratá-los como cidadãos. Não estamos falando em canibalismo metafórico, como no modernismo, onde os índios não são isolados dos demais brasileiros nesse aspecto, mas apenas explicitam uma dimensão latente da nossa cultura. Também não estamos falando de uma pesquisa científica sobre a instituição da antropofagia ritual, o impacto de memórias, mitos e valores guerreiros sobre a organização social. O que se instaura é uma investigação policial que irá vitimizar pessoas e, no fundo, buscar reexaminar as relações do Brasil com essas sociedades, herdeiras das populações autóctones desta terra.


FOLHA - No Brasil, os processos criminais envolvendo índios desconsideram questões de relevância antropológica?


OLIVEIRA - O tema da antropofagia é apenas um entre vários acionados. Há pouco, perguntava-se sobre o infanticídio! No caso de Roraima, demarcar a terra dos makuxis iria implicar a expulsão de não-índios casados com índias e, portanto, na dissolução de famílias interétnicas (note-se que nunca os índios reivindicaram isso!). Há alguns anos, falou-se de garimpeiros mortos por indígenas em Rondônia, sem nem sequer estabelecer que mortes resultaram de conflitos entre os diferentes e opostos grupos de exploradores. Quantos casos desses temas podemos citar? Pouquíssimos, nem uma dezena. E quantas são as mortes de índios em conflitos fundiários nos últimos anos? Sobem a centenas, segundo levantamento realizado pelo Conselho Indigenista Missionário! E as mortes provocadas por epidemias diversas e por condições de saúde extremamente precárias? E os suicídios de jovens ocorridos entre os guaranis do Mato Grosso do Sul, que foram desalojados de suas terras tradicionais? O objetivo (com acusações como a atual) parece ser sempre fazer os indígenas sentarem no banco dos réus, justificarem-se perante a sociedade, voltarem a ser suspeitos de constituir uma forma imperfeita de humanidade. Voltarem a ter quem os tutele de perto, que limite sua liberdade e seus direitos. Que não possam ser respeitados e aceitos como cidadãos normais. Gostaria de saber que interesses concretos estão por trás dessas sistemáticas campanhas contra os indígenas, que levam para a discussão pública temas bizarros e omitem sistematicamente os problemas reais vividos por eles.


FOLHA - Qual é o cenário social, político e cultural das populações indígenas no Brasil contemporâneo?


OLIVEIRA - O cenário é bastante delicado. Por um lado, existem vários programas governamentais contra a pobreza e a marginalidade que têm impactado positivamente os indígenas.Por outro, a economia para exportação (notoriamente, mas não só, a soja) tem criado fortes pressões contra os indígenas em vários pontos da Amazônia e fora dela.

A atividade da Funai no reconhecimento e na regularização de terras indígenas tem enfrentado pesada carga de governadores, políticos e empresários.


Euclides Santos Mendes - Colaboração para a Folha

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