In: Correio do Povo, ANO 117 Nº 208 - PORTO ALEGRE, QUARTA-FEIRA, 25 DE ABRIL DE 2012
Elio Gaspari
O Supremo Tribunal Federal julgará hoje a constitucionalidade das cotas
para afrodescendentes e índios nas universidades públicas brasileiras.
No palpite de quem conhece a Corte, o resultado será de, pelo menos,
sete votos a favor e quatro contra. Terminará assim um debate que durou
mais de uma década e, como outros, do século XIX, expôs a retórica de um
pedaço do andar de cima que via na iniciativa o prelúdio do fim do
mundo.
Em 1871, quando o parlamento discutia a Lei de Ventre Livre,
argumentou-se que, libertando-se os filhos de escravos, condenava-se as
crianças ao desamparo e à mendicância. "Lei de Herodes", segundo o
romancista José de Alencar. Quatorze anos depois, tratava-se de libertar
os sexagenários. Outro absurdo, pois significaria abandonar os idosos.
Em 1888 veio a Abolição (a última de país americanos independente), mas o
medo a essa altura era menor, temendo-se apenas que os libertos caíssem
na capoeira e na cachaça. Como dizia o Visconde de Sinimbu: "A
escravidão é conveniente, mesmo em bem ao escravo". A votação do projeto
foi acelerada pelo clamor provocado pelo linchamento de um promotor que
protegia negros fugidos no interior de São Paulo. Entre os assassinos
estava James Warne, vulgo "Boi", um fazendeiro americano, que emigrara
depois da derrota do Sul na Guerra da Secessão.
As cotas seriam coisa para inglês ver, "lumpenescas propostas de reserva
de mercado". Estimulariam o ódio racial e baixariam a qualidade dos
currículos da universidades. Como dissera o Barão de Cotegipe, "brincam
com fogo os tais negrófilos". Os cotistas seriam incapazes de acompanhar
as aulas. Passaram-se dez anos, pelo menos 40 universidades instituíram
cotas para afrodescendentes, e hoje há milhares de negros exercendo
suas profissões graças à iniciativa. O fim do mundo ficou para a
próxima. Para quem acha que existe uma coisa como ditadura dos meios de
comunicação, no século XXI, como no XIX, todos os grandes órgãos de
imprensa posicionaram-se contra as cotas. Ressalve-se a liberdade
assegurada aos articulistas que as defendiam.
Julgando a constitucionalidade das iniciativas das universidades
públicas que instituíram as cotas, o Supremo tirará o último caroço da
questão. No memorial que encaminharam na defesa do sistema, os advogados
Marcio Thomaz Bastos, Luiz Armando Badin e Flávia Annenberg começaram
pelos números:
"Em 2008, os negros e os pardos correspondiam a 50,6% da população e a
73,7% daqueles que são considerados pobres." (...) Em 1997, 9,6% dos
brancos e 2,2% dos pretos e dos pardos de 25 ou mais de idade tinham
nível superior".
E concluíram: "A igualdade nunca foi dada em nossa história. Sempre foi
uma conquista que exigiu imaginação, risco e, sobretudo, coragem. Hoje
não é diferente".
O senador Demóstenes Torres, campeão do combate às cotas, chegou a
lembrar que a escravidão era uma instituição africana, o que é verdade,
mas não foram os africanos que impuseram a escravatura ao Brasil. Nas
suas palavras: "Não deveriam ter chegado aqui na condição de escravos,
mas chegaram...".
Hoje, o Supremo virará a última página dessa questão. Ninguém se lembra
de James Warne, mas Demóstenes será lembrado por outras coisas.
Eles estimulariam o ódio racial e rebaixariam as universidades, mas, como no século XIX, era tudo lorota.
Elio Gaspari
quarta-feira, 25 de abril de 2012
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