quinta-feira, 30 de julho de 2009

Ensaio: Antropologia e Direitos Humanos

Kílvia Bernardes Cunha (estudante de Ciências Sociais da UnB)

Da articulação entre a Antropologia e os direitos humanos, estes tão evocados e, ao mesmo tempo, questionados contemporaneamente, este ensaio dirige sua atenção para a questão de como a disciplina antropológica e como a categoria dos direitos humanos são repensadas e ressignificadas quando se estabelece um diálogo entre as mesmas. Quanto à Antropologia, primeiramente, veremos como a adoção dos direitos humanos em sua pauta de suas discussões e pesquisas abriu portas para o questionamento de suas bases teóricas (conceituais) e metodológicas. Quando abordados por uma perspectiva antropológica, por outro lado, os direitos humanos são contextualizados e desmistificados.
Tais evidências refletem, ainda, sobre o papel do antropólogo quando este se vê diante de situações por ele não vislumbradas antes durante o momento de pesquisa que o impele a fazer novas indagações sobre o seu fazer antropológico e também de ordem epistemológica. Novas questões surgem diante do debate dos direitos humanos pelos antropólogos e novas configurações sócio-político-culturais igualmente demandam um repensar de certas categorias como a categoria cultura, por exemplo.
Estes questionamentos foram suscitados durante experiências de pesquisas de graduandos de Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, a UFRGS. Seus trabalhos estão publicados no livro Antropólogos em Ação: Experimentos de Pesquisa em Direitos Humanos, de 2007. Nos artigos, os alunos buscam problematizar o papel do antropólogo através de reflexões feitas a partir de experiências em projetos e pesquisas.
À luz de três artigos de Luis Felipe Rosado Murillo, Jaqueline Russczyk e Laura Zacher e da bibliografia fornecida sobre os desafios antropológicos no que tange à discussão dos direitos humanos, serão apresentadas diferentes possibilidades de se fazer Antropologia, até mesmo pelo fato de que trata-se de Antropologias e diferentes formas de engajamento antropológico consideradas as situações sociais estudadas.


ENGAJAMENTO ANTROPOLÓGICO E CONSEQUÊNCIAS TEÓRICO-METODOLÓGICAS

Dos três artigos selecionados, em dois os autores enfatizam a necessidade de engajamento antropológico, tendo em vista as carências sociais dos grupos por eles estudados. Mais que compreender a realidade social de seus interlocutores, os estudantes buscam, de alguma forma, transformar a realidade local dos mesmos. Luis Rosado Murillo defende tal posicionamento em seu artigo: “Esboço de uma reflexão acerca da posição e do lugar do antropólogo” tendo como referência a dissertação de mestrado de Diego Soares da UFRGS sobre o Movimento dos Sem Terra, o MST (2003). Murillo mostra como através da produção de um discurso acadêmico e nomeador de ações o pesquisador pode ser um aliado de uma causa social. Este mesmo discurso que é carregado de um poder simbólico e produzido por um pesquisador o qual possui um vínculo com uma instituição de renome – o que lhe possibilita a negociação com as lideranças, no caso do MST para a inserção no campo.
Deve-se, entretanto, atentar-se para as “consequências políticas” desta postura equacionando quais os benefícios na defesa de grupos minoritários como os “sem-terra” e também os riscos quando se pretende assumi-los. Quanto à nominação de ações como fez Soares ao denominar de ocupação as atividades do MST, em vez de invasão como faz frequentemente a mídia, deve-se ter em mente o poder de nominação de leis e ações, poder este criador de entidades sociais (Segato, 2006) e de realidades. Ribeiro (2004:6) lembra quanto “classificações frequentemente produzem estereótipos úteis para sujeitar pessoas e povos através de simplificações que justificam a indiferença à heterogeneidade.”
Na mesma linha de pensamento segue a graduanda Jaqueline Russczyk em seu artigo “Dilemas e do fazer antropológico: considerações sobre uma experiência particular”. Nele, Jaqueline divide com o leitor sua experiência como cadastradora na comunidade de remanescentes de quilombolas de Morro Alto em Porto Alegre, no ano de 2005 e sua vivência na comunidade quilombola de Cambará no ano de 2003, pelo Programa Convivência. Em Morro Alto, Jaqueline auxiliou na coleta de dados para Relatório Técnico do INCRA. Este relatório deve conter o perfil socioeconômico dos indivíduos para averiguar quais dentre eles teriam direito à terra. O INCRA é responsável por identificar, reconhecer, delimitar, demarcar e titular os territórios quilombolas.
Diante da constatação de uma ausência de infra-estrutura na comunidade de Cambará, onde prevalece a falta de empregos, de água potável e de eletrificação rural, Russczyk apóia uma intervenção acadêmica na comunidade com vistas à resolução de problemas sociais, “um voltar-se para a defesa das minorias discriminadas”, onde cabe ao antropólogo dialogar com o grupo, no caso, os remanescentes de quilombolas com o intuito de compreender suas necessidades e suas concepções sobre direito e justiça, por exemplo. Deve o antropólogo também ser um mediador para permitir ações por parte de instituições do Governo que visem à melhoria da qualidade de vida da população objeto de estudo.
Semelhantemente à Murillo, a autora enxerga nos movimentos sociais, bem como nas instituições do governo e acadêmicas, tomando a expressão de Foucault, agentes produtores de um saber-poder, justificando, assim, sua proposta intervencionista nos grupos minoritários.
Autores como Otávio Velho, Theophilis Rifiotis e Gustavo Lins Ribeiro também apostam em um engajamento antropológico que contesta um relativismo imóvel que unicamente descreve sociedades e não deve para com elas nenhum compromisso ético. Geertz (1999) explora em seu texto este tipo de relativismo à luz das considerações do antropólogo Lévi-Strauss sobre o etnocentrismo, conceito este tido por este autor como algo bom, necessário para a integridade de uma cultura. Geertz, por outro lado, rebate as alegações de Lévi-Strauss e mostra como o contato com valores diferentes dos nossos é enriquecedor para ambas as culturas e um relativismo que contemple trocas é chamado a atuar, de modo a “mudar nossa mentalidade”.
Retomando a questão lançada no parágrafo anterior, para Velho (1995), a Antropologia tem um “papel público” e pode-se dizer aí, político, com as sociedades que estuda. Isso se daria em razão da comprovação de uma falta de crenças e valores na nossa sociedade, o que levaria ao encontro de um homem sem convicções e amarras.
Rifiotis (1998) faz outras considerações a respeito de um engajamento antropológico. Para ele, uma intervenção acadêmica faz-se necessária considerando que os próprios grupos minoritários demandam ajuda e diálogo. Para Rifiotis, a dificuldade reside, porém, como conciliar o discurso científico e a intervenção, de modo que o texto antropológico produzido também possa servir para os grupos estudados.
Por último, Gustavo Ribeiro (2004) afirma o papel político do antropólogo ao explicitar os múltiplos pontos de vista presentes em uma dada cultura e conceder-lhes igual poder de fala.
O terceiro texto de Laura Zacher “Antropologia em campo no campo ou acampada? - Reflexões sobre o lugar do antropólogo junto a uma organização não-governamental na cidade de Porto Alegre” faz outro direcionamento quanto à questão do engajamento do antropólogo num nível não somente prático, de atuação do pesquisador, mas igualmente num nível de ordem metodológica. No artigo, Laura fala sobre a etnografia por ela realizada numa ONG em Porto Alegre surgida em 2004 que trabalha buscando garantir às crianças e adolescentes com menos probabilidade de serem adotados, à, efetivamente, ganhar uma convivência familiar.
A autora expõe angústias e anseios advindos do trabalho de campo na ONG, que depois ela própria após refletir sobre seu posicionamento em campo, de um estranhar de si mesma e não somente o “outro”, faz uma releitura dos mesmos. O estar em campo em busca da compreensão da política desenvolvida pela instituição levou Laura a problematizar não somente as práticas dos participantes da ONG, mas também as suas. Além disso, mais que registrar em caderno de campo suas observações, a estudante passou a dialogar com os atores-objeto-de-estudo, sem, contudo, intervir na realidade por ela estudada, mas como ela mesma diz “interagindo”. Tal decisão livrou-a do incômodo de definir uma posição perante o campo. Laura não era mais nem observadora, o que achava ser uma postura arrogante, nem consultora, mas uma antropóloga que interagia com a realidade social estudada.

A CATEGORIA DIREITOS HUMANOS

Cabe discutir neste ensaio também a própria categoria dos diretos humanos, categoria esta não consensual tanto no meio acadêmico quanto fora dele e motivadora de inúmeras indagações e dilemas.
É a partir do fim da Segunda Grande Guerra Mundial em 1948 que os direitos humanos começaram a ser fortemente discutidos pela comunidade internacional que temia novos ataques nazistas. Representes políticos de países como Estados Unidos e Rússia concordaram na formulação e implementação de uma Declaração Universal dos Direitos do Homem que estipulava os direitos civis e individuais do homem. Schuch (2009) nos mostra quão cheia de controvérsias foi a formulação desta Declaração e como diversos representantes nacionais não tiveram suas participações e opiniões expressas no conteúdo da mesma que privilegiou concepções ocidentais sobre o indivíduo e suas relações sociais.
Além disso, a história mundial nos fornece fatos de como a Declaração Universal dos Direitos do Homem é apropriada de forma arbitrária por diversos atores políticos que dela fazem uso para legitimar opressões sobre povos. Essa apropriação, por outro lado, incita a reivindicação de direitos pelas minorias sociais. Percebe-se aqui como os direitos humanos podem abrir diálogos para a construção de espaços sociais democráticos e como os mesmos igualmente podem autorizar ações autoritárias e que, desse modo, violam estes mesmos direitos.
Ribeiro (2004:2) nos atenta para o “campo de conflitos de interpretações” que são os direitos humanos e Daniela dos Santos (2003) nos apresenta as relações de poder estabelecidas neste campo dos direitos humanos, uma “categoria teórica”, mas também um “discurso político pragmático”.
Santos mostra de que forma as relações de poder refletem no fazer antropológico, este influenciado pelas relações assimétricas entre as antropologias centrais ( Estados Unidos, França e Inglaterra) e antropologias periféricas, estas frequentemente com um passado colonial, como no caso do Brasil. Isto, por sua vez, condicionará a maneira como os antropólogos periféricos apropriarão a categoria direitos humanos e como a antropologia terá suas especificidades/características (teóricas e metodológicas) de acordo com o contexto sócio-cultural-político em que ela se desenvolver. Por isso, a afirmação feita inicialmente no ensaio da existência de Antropologias e não de uma Antropologia.
Esta afirmação pode ser conferida no próprio objeto de estudo das antropologias centrais: o “outro” distante, exótico e da antropologia feita no Brasil, onde o “outro” faz parte da sociedade da qual o pesquisador vive.
Esta tradição disciplinar das antropologias centrais autoriza que o pesquisador intervenha em países periféricos quando observa que direitos humanos estão sendo violados (Santos, 2003). Tal atitude pode ser benéfica ao permitir que tais indivíduos possam ter garantida sua cidadania, mas também bate de frente com questões relativistas: o que é um atentado aos direitos humanos para o pesquisado dotado de valores ocidentalizados, pode não o ser para um indivíduo na China, por exemplo. Quanto a isso, Schuch (2009) cita em seu trabalho a antropóloga americana Laura Nader (1999) quando esta compara dois contextos culturais: o americano e o africano quanto as suas concepções sobre violações dos direitos humanos. Se por um lado, o implante de silicone pode ser tomado como uma violação dos direitos humanos pelo olhar de mulheres africanas, por outro, a retirada do clitóris pelas mulheres americanas é igualmente visto como uma monstruosidade que fere os direitos humanos. Como, então, implementar a noção de direitos humanos que consta na Declaração Universal dos Direitos do Homem em um nível global, tendo em vista diferentes concepções sobre esses mesmos direitos? Como querer que estes direitos tenham caráter universal? As respostas a estas perguntas são as mais variadas.
Schritzmeyer (2008) acredita numa “adesão crítica e sem culpa” aos direitos humanos que supere um relativismo evocado por Lévi-Strauss que se conforma com “cada um no seu quadrado” e que estimule diálogos entre diferentes indivíduos. Boaventura de Sousa Santos (2000) reitera e complementa o pensamento de Schritzmeyer ao propor uma “hermenêutica diatópica” que consiste na afirmação de que as culturas são incompletas. Por isso há a necessidade de um diálogo que contemple uma perspectiva do olhar do outro entre elas que, por sua vez, permitirá a constatação pelas mesmas de que ambas são, de fato, incompletas.

CONCLUSÃO

Este ensaio apresentou algumas formas de engajamento antropológico, considerando-se que o tão propalado “compromisso social, político e ético” para com os grupos estudados pelo pesquisador está na ordem do dia dentro e fora dos âmbitos acadêmicos. Isso pode ser verificado pela atuação de antropólogos como peritos quando o que se está em questão é a demarcação de terras, pelo trabalho deles em organizações não-governamentais, em ministérios e em organismos privados.
O que se deve ser levado em consideração quando os mesmos pretendem trabalhar em suas pesquisas com questões que passam pela discussão dos direitos humanos é de que essa não é uma categoria estável e remete-se a complexas relações de poder travadas por instâncias políticas exterior e, ao mesmo tempo, internamente ao mundo acadêmico. É preciso, pois, uma vigilância quanto “as categorias que utilizamos para descrever realidades” (Schuch, 2009:79) por parte do antropólogo-pesquisador, pois as mesmas possuem consequências políticas já observadas acima no artigo de Murillo (2007).
Além disso, a apresentação de algumas formas de pensar o papel do antropólogo e sua problemática relação com os direitos humanos, evidenciada nos trabalhos dos graduandos e em trabalhos de antropólogos mais experientes mostram o leque de opções, opções estas que são configuradas em campo, no contato com os interlocutores. Por isso, não existe uma única metodologia que dê conta de um trabalho etnográfico. A metodologia na disciplina é constantemente construída assim como a própria Antropologia ou Antropologias é (são) renovada(s) a todo instante. Este é um traço da disciplina, antes tido como uma crise.
O que é importante mesmo é a contribuição que o antropólogo pode dar ao estudo dos direitos humanos utilizando-se de seu instrumental teórico e metodológico para pensá-los, gerando novas apreciações. Da mesma forma, o conceito de direitos humanos obriga o pesquisador a repensar suas categorizações, seus pressupostos. A categoria, cultura, por exemplo, sofre uma reformulação quando se introduz o estudo dos direitos humanos. A cultura antes tida como fechada, compartilhada, consensual, é observada por outro ângulo que lhe confere características opostas às citadas.
Não me propus de forma alguma a escolher a “melhor forma” de pensar o trabalho do antropólogo e seu diálogo com os direitos humanos. Repito que o contexto é que definirá os instrumentos e as reflexões epistemológicas suscitadas no campo que tanto contribuirão para o fazer antropológico.
Concluindo com uma questão que foi levantada por Schuch (2009) citando Kant de Lima (1995), é difícil pensar em direitos humanos tendo em vista um sistema jurídico brasileiro cujo tratamento dos seus “sujeitos de direito” por suas diversas instâncias se dá de forma hierárquica e desigual. Como, portanto, pensar direitos humanos se a estrutura jurídico-política do país é permeada por contradições e atravessada por relações de poder?

Referências Bibliográficas:

MURILLO, Luis Felipe Rosado (2007). : “Esboço de uma reflexão acerca da posição e do lugar do antropólogo” in FLEISCHER, Soraya; SCHUCH, Patrice e FONSECA, Claudia (Org.) Antropólogos em Ação: Experimentos de Pesquisa em Direitos Humanos. Porto Alegre: Editora Da UFRGS, 2007.223P.
RIBEIRO, G. L. . Cultura, Direitos Humanos e Poder. Mais além do império e dos humanos direitos. Por um universalismo heteroglóssico. In: Claudia Fonseca. (Org.). Antropologia, Diversidade e Direitos Humanos. Porto Alegre: Editora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2004.

RUSSCZYK, Jaqueline Rosado (2007). : “Antropologia em campo, no campo ou acampada? – Reflexões sobre o lugar do antropólogo junto a uma organização não-governamental na cidade de Porto Alegre” in FLEISCHER, Soraya; SCHUCH, Patrice e FONSECA, Claudia (Org.) Antropólogos em Ação: Experimentos de Pesquisa em Direitos Humanos. Porto Alegre: Editora Da UFRGS, 2007.223P.
SANTOS, Daniela C. C. . Antropologia e Direitos Humanos no Brasil. In: Roberto Kant de Lima. (Org.). Antropologia e Direitos Humanos 2. 1 ed. Niterói: Editora da Universidade Federal Fluminense, 2003, v. 1, p. 11-36.

ZACHER, Laura Rosado (2007). : “Dilemas e desafios do fazer antropológico: considerações sobre uma experiência particular” in FLEISCHER, Soraya; SCHUCH, Patrice e FONSECA, Claudia (Org.) Antropólogos em Ação: Experimentos de Pesquisa em Direitos Humanos. Porto Alegre: Editora Da UFRGS, 2007.223P.

SCHUCH, Patrice. “Entre o real e o ideal: a Antropologia e a construção de enunciados sobre direitos humanos”. In: Práticas de justiça: antropologia dos modos de governo da infância e juventude no contexto pós-ECA. POA, Editora da UFRGS, 2009.
RIFFIOTHIS, Theophilos. “Direitos Humanos: declaração, estratégia e campo de trabalho”. Trabalho publicado no Boletim da Associação Brasileira de Antropologia, n° 30.
SCHRITZMEYER, Ana Lúcia Pastore. A defesa dos direitos humanos é uma forma de “ocidentalcentrismo”? Trabalho apresentado na 26ª Reunião Brasileira de Antropologia. Porto Seguro, 2008.
RIBEIRO, Gustavo Lins. “Cultura, direitos humanos e poder. Mais além do império e dos humanos direitos. Por um universalismo heteroglóssico”. In: FONSECA, Cláudia, TERTO JR, Veriano, e ALVES, Caleb Faria et al. Antropologia, diversidade e direitos humanos: diálogos interdisciplinares. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2004.
SOUZA SANTOS, Boaventura de. “Por uma concepção multicultural de Direitos Humanos”. In: FELDMAN-BIANCO, Bela (org.). Identidades, Estudos de Cultura e Poder. SP, Hucitec, 2000.
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