Por: Phydia de Athayde
O menino tem 14 anos e passou os últimos nove meses na Escola João Luís Alves, uma das unidades do Degase, a antiga Febem, do Rio de Janeiro. Acusado de tentativa de assalto e com histórico de uso de drogas e prostituição, o garoto, durante todo o período de internação, foi obrigado a ingerir quatro medicamentos diferentes por dia. “O juiz pediu uma avaliação psiquiátrica, e acharam que ele tinha algum distúrbio e precisava de remédio para depressão e ansiedade”, diz a mãe. Apesar de pedir ao diretor e à psicóloga da unidade, ela nunca teve acesso à psiquiatra nem ao laudo. “Ele ainda está tomando. Vou visitá-lo todos os sábados. Às vezes ele está aéreo, não fala coisa com coisa, outras vezes, só chora. Ainda acredito na mudança do meu filho. Ele me diz que não é louco, que não quer tomar remédio e que nunca mais quer usar droga.” O uso de medicamentos psicotrópicos, como calmantes e soníferos, não é novidade nas unidades de internação de jovens infratores. Ao contrário, é parte de um passado que a criação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em 1990, deveria ter deixado para trás. “A chamada contenção química era comum na época do Código de Menores, e o Estatuto representou uma ruptura ao estabelecer direitos específicos à criança e ao adolescente”, explica a psicóloga da Universidade Católica de Goiás, Maria Luiza Moura. “A medicalização é uma forma de anestesiar o adolescente e funciona como um tampão para as questões que as unidades têm de enfrentar”, diz a psicóloga, ex-presidente do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda). Se não é uma novidade, a psiquiatrização volta ao centro das atenções como um reflexo de mudanças tanto na estrutura das ex-Febens quanto na percepção, pela sociedade, do que é considerado “normal” quando se trata de comportamento juvenil. Tanto que a imposição de drogas psiquiátricas a adolescentes que cometeram ato infracional acaba de ser escolhida como um dos casos a receber intervenção exemplar da Associação Nacional dos Centros de Defesa (Anced), que reúne os 37 Centros de Defesa da Criança e do Adolescente (Cedeca) espalhados por dezoito estados do País. Na apresentação de um relatório nacional sobre violação dos direitos de crianças e adolescentes brasileiros, quatro episódios exemplares, no mau sentido, foram destacados. O primeiro, o caso da menina encarcerada em uma cela repleta de homens na cadeia em Abaetetuba (PA), sujeita a estupros, entre outras violências. Em segundo, a denúncia de tortura e extermínio de doze jovens em Fortaleza, com suspeita da ação de grupo de extermínio formado por policiais e financiado por empresários locais. Outro inclui tortura, abuso sexual e mortes tornados rotina na unidade para jovens infratores Santo Expedito, parte do complexo penitenciário de Bangu (RJ). Por fim, a psiquiatrização, que, apesar de ser disseminada, baseou-se na situação encontrada em uma vistoria no Centro de Internação Provisória Carlos Santos, em Porto Alegre, em 2006, quando 80% dos jovens eram medicados com o antipsicótico amplictil. “Ao entrar na unidade, os adolescentes passam por uma triagem psiquiátrica automática, não prevista no ECA nem nas diretrizes do Conanda, o que configura um abuso”, argumenta Daniel Adolpho, um dos advogados da Anced responsáveis pelo caso de Porto Alegre. “Mais estranho é que a maior parte deles acaba medicada pelo psiquiatra e não por enfermeiros, por conta de eventos cotidianos, como uma dor de cabeça.” O presidente da Fundação de Atendimento Socioeducativo do Rio Grande do Sul (Fase, a ex-Febem gaúcha), Irany Bernardes Souza, explica que a instituição terceirizou o serviço de psiquiatria há cerca de três anos e defende a triagem na chegada dos garotos. “Eles passam por uma avaliação física, dentária, psiquiátrica, psicológica e pela assistente social. A partir dela, discute-se a intervenção”, diz. Souza observa que, desde 2008, quando entrou na Fase, há um aumento no ingresso de jovens usuários de drogas, especialmente o crack. “Este é um dos fatores preponderantes na aplicação de psicotrópicos. Pessoalmente, não sei quais os medicamentos receitados, pois não sou médico, mas asseguro que nossa política é ficar atentos e não permitir a chamada algema medicamentosa.” Souza diz que, historicamente, a maior parte dos internos se enquadraria na avaliação de Transtorno de Personalidade Antissocial, o que “não significa que tenha de ser medicado”, pois a personalidade ainda está em formação. Entra-se em uma área muito nebulosa quando a avaliação psiquiátrica passa a interferir nas decisões judiciais sobre o futuro de um jovem infrator. Há riscos como o de que julgamentos morais sejam travestidos de diagnóstico médico, para citar apenas um. “Não somos contra cuidados médicos, quando necessários, a briga não é essa. Criticamos o uso da saúde mental para contrariar diretrizes construídas nacionalmente”, diz Maria Cristina Vicentin, psicóloga da PUC-SP que estuda a psiquiatrização do adolescente em conflito com a lei. Ela se refere aos preceitos do ECA, que determina no máximo três anos de internação, ou a liberação aos 21 anos completos. O problema começa quando a alegação de uma patologia serve de justificativa para manter os infratores presos. Ainda que com o discurso de que estejam sendo protegidos. “Ato infracional não é doença. Existe um mito de que há uma disfunção psíquica na infração, mas a diversidade de teorias a respeito indica que este é um campo não apenas científico, mas atravessado pela moral”, alerta a pesquisadora. O Transtorno de Personalidade Antissocial (antes designado psicopatia) tem sido usado, judicialmente, como argumento para manter jovens infratores internados. Mas este diagnóstico é controverso mesmo para a medicina. A própria Organização Mundial da Saúde, ao classificar os transtornos mentais, reconhece ser “problemático” estabelecer critérios para o caso e ressalva que “é improvável que o diagnóstico de transtorno de personalidade seja apropriado antes de 16 ou 17 anos”. Na prática, juízes e promotores têm se valido, cada vez mais, de avaliações psiquiátricas para prolongar o encarceramento de infratores. O defensor público do Núcleo da Infância e Juventude em São Paulo, Flavio Frasseto, integra um grupo multidisciplinar contrário ao procedimento. “Há juízes que não querem liberar o infrator por pressão da sociedade. Alegam ‘maldade congênita’ e outros artifícios, como a periculosidade futura, para mantê-los internados. O discurso médico torna-se conveniente e passa-se a dizer que a privação de liberdade é para o bem do adolescente. Aí muda tudo”, diz. Por pressão do Judiciário, o estado de São Paulo criou a Unidade Experimental de Saúde (UES), um local para onde iriam os internos da Fundação Casa (ex-Febem paulista) com deficiências mentais e também aqueles com “distúrbio de conduta”. Em 2000 e em 2005 outras tentativas de lidar com os problemáticos resultaram ilegais, além de desumanas. Na prática, a UES está recebendo os que já cumpriram a internação máxima e, portanto, estão num limbo legal. “É uma Guantánamo paulista, pois não existe regulamentação para controlar a privação de liberdade desses internos. É um equipamento carcerário sem fundamento legal, uma modalidade de privação de liberdade disfarçada de tratamento, à revelia da lei. Aí está o perigo”, diz. “Sabemos dos usos da psiquiatria para criar regimes de exceção”, alerta Maria Cristina. A psicóloga aponta a diferença entre os dois grupos com avaliações distintas nesse campo: um opta por segregar, enquanto outro aposta na educação e na punição legal. “Os chamados intratáveis dizem algo sobre nosso modo de vida. Esses casos nos transtornam, mas acreditamos que podem mudar e não repetir o ato violento”, diz. Ela sustenta o uso correto de medicamentos, bem como internação, “pelo que fez e não pelo que poderá fazer”. Se, esgotadas as alternativas, ele reincidir? “Que seja responsabilizado pelos atos, como qualquer outro.”
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