Patrice Schuch
Atualmente, uma das grandes questões da nossa sociedade é o problema da exploração infantil. Descrito em reportagens de jornais, tema de programas de televisão, preocupação de religiosos e filantropos, objeto de financiamento de instituições de desenvolvimento, foco de políticas públicas e de assistência social, matéria de leis nacionais e internacionais, tópico de dissertações e teses científicas, em todas essas formas o assunto é debatido, nomeado e constituído. A exploração infantil é, desta forma, inventada e reinventada. Mas o que significa dizer que a noção de “exploração infantil” foi inventada?
Antes de tudo, implica em rejeitar a idéia de que ela não existe ou nunca existiu. Certamente, crianças exploradas não são novidades históricas; o que é relativamente novo é a própria noção de “exploração infantil”. Para que exista tal como a conhecemos foi necessária a constituição de uma sensibilidade especial hegemônica em relação à infância, que só se consolidou plenamente a partir da modernidade e, mais diretamente, incidiu sobre as famílias burguesas: a noção de infância como uma fase de inocência, educação e aprendizado para a vida adulta. Essa idéia tem como corolário a distinção entre o mundo das crianças e o mundo dos adultos: a infância passou a ter, especificamente a partir do século XVIII, uma particularidade a ser conhecida, diagnosticada, fomentada e resguardada. A peculiaridade da noção de infância e os significados que passa a ensejar articulam um conjunto de ações e preocupações de promoção e proteção que entrecruzam anseios de emancipação e regulação. Daí o perigo de sua “exploração”: explorar a infância é contrariar sua inocência, colocando em risco todo um conjunto de sentidos elaborados acerca do processo de aprendizado para a vida adulta, no qual os vetores do afeto, cuidado e sustento se dão no sentido ideal dos adultos/pais para as crianças/filhos.
Dizer que a noção de “exploração infantil” foi inventada é salientar que este problema foi modelado por instâncias diversas: leis, políticas públicas, pesquisas acadêmicas, mídia, senso comum, sensibilidades de classe e outros elementos. O conjunto desses ingredientes configurou algumas formas de maior visibilidade do tema que são estreitamente relacionadas aos significados hegemônicos de ingenuidade, inocência e desenvolvimento, associados à infância. Não por acaso, os maiores riscos de “exploração infantil” se concentram em práticas que subvertem o significado da infância: seja elevando crianças à condição de participantes ativos de seu próprio sustento ou do mantimento de seu núcleo familiar, como é o caso do “trabalho infantil”, seja tornando-os ativos sexualmente, como no caso do “abuso infantil”.
No caso do “trabalho infantil”, o tema vem sendo objeto de debates nacionais e internacionais. Sendo impossível descobrir sua origem – pois isso significaria adentrar em concepções específicas do que seja trabalho e infância em contextos muito diversos – cabe destacar que as regulações em torno de sua existência efetivaram-se a partir do século XIX. No Brasil, a primeira legislação de regulamentação do trabalho infantil foi o Decreto Lei 1313 de 1891. Atualmente, o Estatuto da Criança e do Adolescente (1990) delimita a idade mínima de 16 anos para o trabalho, salvo na condição de aprendiz, cuja idade mínima é 14 anos. Internacionalmente, desde 1919 a Organização Internacional do Trabalho (OIT) lança orientações e programas para eliminação do trabalho infantil. Junto com a OIT, o Brasil desenvolve, desde 1992, o Programa Internacional para Erradicação do Trabalho Infantil (IPEC), que tem diminuído os índices do trabalho infantil. No entanto, ainda existem 5 milhões de crianças classificadas como trabalhadoras, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 2001.
O descompasso entre os investimentos históricos na sua regulação e a permanência do trabalho infantil sugere a necessidade de incluir os recortes de classe, gênero, etnia e nacionalidade no debate sobre o trabalho de crianças, para além de uma definição hegemônica de infância universal. Ser criança não é apenas estar situado em uma determinada faixa etária, mas sim viver em um mundo com determinadas condições políticas, sociais e culturais. Tais condições recortam a experiência etária e produzem não apenas diferentes sentidos sobre infância e trabalho, mas visões específicas sobre o que seja exploração e quais as práticas ilegítimas para a infância. O perigo de uma abordagem que descontextualize determinadas práticas e seus sentidos dos seus contextos de produção é o de reduzir as próprias alternativas para o combate dos problemas, procurando culpados ao invés de soluções.
A análise de um pesquisador americano chamado Ian Hacking sobre o “abuso infantil” pode ser reveladora. Hacking afirma que a noção de “abuso infantil” é, nos Estados Unidos de hoje, uma preocupação que coloca em risco toda a sociedade. Tal idéia foi construída eminentemente por pediatras, por volta dos anos 1960, reconfigurando a noção de “crueldade contra crianças”, existente no discurso público desde 1874. Enquanto o conceito de “crueldade contra crianças” era definido como um problema da sociedade, em geral associado as famílias populares – as quais pensava-se ser necessário auxiliar – a imagem do “abuso infantil” associa o abuso a uma doença, que deve ser tratada individualmente. O interesse de Hacking, ao contrastar essas duas noções, é trazer à tona a relação entre a formulação de problemas e os contextos de sua produção: por que, exatamente quando a pobreza se intensifica e os programas de bem estar social desaparecem, a atenção se dirige para o “abuso infantil”? Suas inquietações podem ser frutíferas para pensarmos a “invenção” da “exploração infantil” no Brasil. Sobretudo, pode dar pistas inteligentes acerca de maneiras mais eficazes de abordá-la, com todos os seus dilemas e paradoxos.
Atualmente, uma das grandes questões da nossa sociedade é o problema da exploração infantil. Descrito em reportagens de jornais, tema de programas de televisão, preocupação de religiosos e filantropos, objeto de financiamento de instituições de desenvolvimento, foco de políticas públicas e de assistência social, matéria de leis nacionais e internacionais, tópico de dissertações e teses científicas, em todas essas formas o assunto é debatido, nomeado e constituído. A exploração infantil é, desta forma, inventada e reinventada. Mas o que significa dizer que a noção de “exploração infantil” foi inventada?
Antes de tudo, implica em rejeitar a idéia de que ela não existe ou nunca existiu. Certamente, crianças exploradas não são novidades históricas; o que é relativamente novo é a própria noção de “exploração infantil”. Para que exista tal como a conhecemos foi necessária a constituição de uma sensibilidade especial hegemônica em relação à infância, que só se consolidou plenamente a partir da modernidade e, mais diretamente, incidiu sobre as famílias burguesas: a noção de infância como uma fase de inocência, educação e aprendizado para a vida adulta. Essa idéia tem como corolário a distinção entre o mundo das crianças e o mundo dos adultos: a infância passou a ter, especificamente a partir do século XVIII, uma particularidade a ser conhecida, diagnosticada, fomentada e resguardada. A peculiaridade da noção de infância e os significados que passa a ensejar articulam um conjunto de ações e preocupações de promoção e proteção que entrecruzam anseios de emancipação e regulação. Daí o perigo de sua “exploração”: explorar a infância é contrariar sua inocência, colocando em risco todo um conjunto de sentidos elaborados acerca do processo de aprendizado para a vida adulta, no qual os vetores do afeto, cuidado e sustento se dão no sentido ideal dos adultos/pais para as crianças/filhos.
Dizer que a noção de “exploração infantil” foi inventada é salientar que este problema foi modelado por instâncias diversas: leis, políticas públicas, pesquisas acadêmicas, mídia, senso comum, sensibilidades de classe e outros elementos. O conjunto desses ingredientes configurou algumas formas de maior visibilidade do tema que são estreitamente relacionadas aos significados hegemônicos de ingenuidade, inocência e desenvolvimento, associados à infância. Não por acaso, os maiores riscos de “exploração infantil” se concentram em práticas que subvertem o significado da infância: seja elevando crianças à condição de participantes ativos de seu próprio sustento ou do mantimento de seu núcleo familiar, como é o caso do “trabalho infantil”, seja tornando-os ativos sexualmente, como no caso do “abuso infantil”.
No caso do “trabalho infantil”, o tema vem sendo objeto de debates nacionais e internacionais. Sendo impossível descobrir sua origem – pois isso significaria adentrar em concepções específicas do que seja trabalho e infância em contextos muito diversos – cabe destacar que as regulações em torno de sua existência efetivaram-se a partir do século XIX. No Brasil, a primeira legislação de regulamentação do trabalho infantil foi o Decreto Lei 1313 de 1891. Atualmente, o Estatuto da Criança e do Adolescente (1990) delimita a idade mínima de 16 anos para o trabalho, salvo na condição de aprendiz, cuja idade mínima é 14 anos. Internacionalmente, desde 1919 a Organização Internacional do Trabalho (OIT) lança orientações e programas para eliminação do trabalho infantil. Junto com a OIT, o Brasil desenvolve, desde 1992, o Programa Internacional para Erradicação do Trabalho Infantil (IPEC), que tem diminuído os índices do trabalho infantil. No entanto, ainda existem 5 milhões de crianças classificadas como trabalhadoras, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 2001.
O descompasso entre os investimentos históricos na sua regulação e a permanência do trabalho infantil sugere a necessidade de incluir os recortes de classe, gênero, etnia e nacionalidade no debate sobre o trabalho de crianças, para além de uma definição hegemônica de infância universal. Ser criança não é apenas estar situado em uma determinada faixa etária, mas sim viver em um mundo com determinadas condições políticas, sociais e culturais. Tais condições recortam a experiência etária e produzem não apenas diferentes sentidos sobre infância e trabalho, mas visões específicas sobre o que seja exploração e quais as práticas ilegítimas para a infância. O perigo de uma abordagem que descontextualize determinadas práticas e seus sentidos dos seus contextos de produção é o de reduzir as próprias alternativas para o combate dos problemas, procurando culpados ao invés de soluções.
A análise de um pesquisador americano chamado Ian Hacking sobre o “abuso infantil” pode ser reveladora. Hacking afirma que a noção de “abuso infantil” é, nos Estados Unidos de hoje, uma preocupação que coloca em risco toda a sociedade. Tal idéia foi construída eminentemente por pediatras, por volta dos anos 1960, reconfigurando a noção de “crueldade contra crianças”, existente no discurso público desde 1874. Enquanto o conceito de “crueldade contra crianças” era definido como um problema da sociedade, em geral associado as famílias populares – as quais pensava-se ser necessário auxiliar – a imagem do “abuso infantil” associa o abuso a uma doença, que deve ser tratada individualmente. O interesse de Hacking, ao contrastar essas duas noções, é trazer à tona a relação entre a formulação de problemas e os contextos de sua produção: por que, exatamente quando a pobreza se intensifica e os programas de bem estar social desaparecem, a atenção se dirige para o “abuso infantil”? Suas inquietações podem ser frutíferas para pensarmos a “invenção” da “exploração infantil” no Brasil. Sobretudo, pode dar pistas inteligentes acerca de maneiras mais eficazes de abordá-la, com todos os seus dilemas e paradoxos.
2 comentários:
Muito bom post. Parabéns.
Seu escrito me inspirou. Obrigado.
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