sexta-feira, 16 de maio de 2008

Desabafo II: Caso Marcelly

Por: José Miguel Olivar (doutorando em Antropologia Social pela UFRGS)
Hoje estive na reunião do CMDH. A Marcely está bastante machucada e bastante bastante triste. Só imaginem. Ela é o referente geral para a defensa dos DH na cidade. Apanhando, no interior dum posto de saúde da prefeitura e com duas enfermeiras como testemunhas, ela não conseguia lembrar a quem ligar naquela hora. "Porque sempre é a mim que ligam". Apanhando, no interior dum posto de saúde da prefeitura e com duas enfermeiras como testemunhas que diziam "tem mesmo é que tirar esse putão daqui"... apanhando, de seguranças da empresa privada "Reação", contratada pela prefeitura para cuidar dos postos de saúde e que cuida também do Mercado Público. Apanhando da "Reação", empresa que já tem denúncias por agredir outras travestis em outro posto de saúde e meninos de rua e prostitutas no interior e exterior do Mercado. Apanhando da prefeitura, conclui ela, primeiro com palavras (putão, "o senhor não entra mais aqui"), socos na cara, depois quase asfixiada e afinal com chutes no corpo. Todas as denúncias estão encaminhadas. Zero Hora e Correio do Povo não quiseram publicar a denúncia.

Marcely é um instante... cheio de camadas e de densidades. Cris, outra travesti, chorando, dizia que sintiu cada soco no seu próprio corpo (corpo fabricado à força de desejo humano), que chorava de indignação por descobrir que "isto" continuava acontecendo desse jeito. "Eu sabia, um tempo atrás, que a gente apanhar era normal... a gente carregava uma culpa, e tinha que apanhar"..... Muitos, como ela, pensa(va)m que esta história, na muito moderna Porto Alegre, era tempo ultrapasado... Ontem foi Marcely, mas não é só Marcely nem as travestis. Na Praça da Alfândega, lugar histórico e icónico da prostituição feminina na cidade, várias prostitutas foram agredidas com garrafas PET ("para não deixar marcas na gente... eles também vão aprendendo de Direitos") pela Brigada Militar e estão sendo expulsas do lugar em função do Projeto Monumento (de "revitalização" do Centro). Na Garibaldi, no ano de 2006, as prostitutas também foram agredidas, ameaçadas e obrigadas a sair da rua, a não circular... e, no melhor dos casos, a "usarem roupas mais discretas". Nesse caso a ordem veio da Secretaria de Segurança e Justiça e, como em muitos casos denunciados pelo CMDH, a agencia operadora foi a Brigada Militar. As denúnicas são incontáveis. Queima de meninos de rua, retenção forçada, tortura, agressão verbal a moradores de rua, prostitutas, travestis ou tudo aquilo que excite a raiva da vertical masculina branca (ou ao serviço de). Homens fardados (material ou simbólicamente) ao serviço da Prefeitura ou do Estado, sejam eles servidores públicos ou funcionários de empresas privadas. Sejam ruas, shoppings, postos de sáude (!!!!), praças públicas ou Mercados (ex)Públicos....

Parece a expressão interminável e angustiada de um continnum de violência de gênero (e racial e de classe e enfim) onde os e as profissionais do sexo (putões, como o guarda chamou a Marcely) e os fardados ocupam o lugar mais visível e extremo do jogo. Ação pedagógica duma cidade onde as construções de gênero às vezes parecem intocadas... ou na qual se desenvolve uma política pública de mutilação das diversidades, de controle eugenista dos riscos (so imaginário hegmônico), que declarou a guerra material e simbólica a pessoas como Marcely. Porém, de novo, Marcely não é só ela nem os travestis nem as putas. É o "ethos" feminino em construção. É uma lição de vida e de obediência que essa "anima" masculina encarnada naqueles dois ou três guardas que explodiram sobre ela dá, todos os dias, a formas de gênero e de sexualidade (e de raça, e de formas de ser-no-mundo) que sente innsuportáveis. Ô, mulher, cuida de não ser tão puta assim... Ô, cara, cuida de não fugir do teu lugar (de gênero, de classe, de obediência)... e, muito mais importante, cuidem de não serem felizes assim. Grande parte do movimento social já se movilizou para resistir, denunciar e tentar transformar essa "política pública".

Um comentário:

Anônimo disse...

Patrice, por favor, repasse meus cumprimentos ao Ze Miguel, pelo sensivel e indigando texto. Temos de fazer alguma coisa... Nao sei o que, mas e preciso fazer algo.

Denis