Juremir Machado da Silva (professor da PUCRS, texto publicado no jornal "O Correio do Povo")
Na semana passada, a Universidade Federal do Rio Grande do Sul aprovou o regime de cotas raciais.. É um grande avanço. E um grande retrocesso. O avanço é claro porque só com medidas de força como essa os negros terão realmente acesso às universidades. O retrocesso se dá em relação ao discurso iluminista da igualdade para todos e da anulação da raça como critério de distinção social. Até no racismo o Brasil é um país original. Não se proíbe um negro de fazer algo. Tudo é permitido. Só lhe falta a oportunidade. Essa falta eterna de oportunidade se tornou a maneira mais cômoda de manter tudo sem qualquer alteração. Não haveria necessidade de cotas se a sociedade, por meio dos seus governos, provesse ensino básico de qualidade para todos e criasse vagas na universidade para todos os jovens aprovados num exame de saída do ensino médio. A França não tem cotas pelo simples fato de que não tem vestibular.
É muito mais fácil transformar a origem do problema em justificativa: a pobreza. Os negros não ficariam fora da universidade por serem negros, mas por serem pobres. Esse sofisma absolve o Brasil de crime de racismo, transfere o problema social para os indivíduos e possibilita que nada seja feito. Os governos, por outro lado, em vez de modificarem a estrutura injusta, jogam o problema de volta para as suas vítimas. Em lugar de resolver o problema do ensino básico e das vagas nas universidades, sugerem que a massa se engalfinhe e divida as vagas do jeito que der. Aí tem de ser na base da porrada. Por exemplo, pela cor da pele. Raças não existem. É um conceito antropológico ultrapassado. Tudo é cultural. Ninguém pensa melhor ou corre melhor porque é branco, negro ou amarelo. Mas o preconceito racial persiste e muda de pele para continuar.
Ensino básico de qualidade para todos e vagas nas universidades significa redistribuição de renda. Algo que a elite brasileira não quer nem ouvir falar. Está bom assim. O Brasil é tão original que transformou o preconceito racial em questão de classe social. O sujeito é excluído por ser pobre, não por ser negro. Ora, como não se pretende eliminar a pobreza redistribuindo renda, os pobres vão continuar pobres e os negros vão continuar negros pobres. Salvo se meterem o pé na porta com mecanismos como as cotas. Os inimigos das cotas defendem que o vestibular é o regime do mérito. Bobagem. Não há mérito algum em ganhar de quem não teve oportunidade de se preparar. O mérito só há realmente quando resulta da disputa entre iguais, entre aqueles que tiveram chances equivalentes de preparação. O vestibular é uma armadilha de uma sociedade hipócrita para jogar jovens contra jovens de maneira a que a conta a ser paga pela sociedade e pelos governos em educação seja menor. O custo social, claro, é mais alto.
O Brasil misturou as raças quando era 'normal' separá-las. Hoje, para que fiquem realmente juntas, vê-se obrigado a separá-las por critérios raciais ou as universidades continuarão totalmente abertas a negros que nelas não conseguem entrar. Somos uma das sociedades mais hipócritas do mundo. Praticamos um racismo dissimulado, matreiro e confortável. Negro é bom para jogar futebol e fazer música.. As cotas poderiam desaparecer num passe de mágica. Bastaria promover uma revolução educacional em três pontos: redistribuição de renda e investimento maciço em escolas públicas; fim do vestibular e instauração de um exame de saída do ensino médio, com acesso à universidade de todos os aprovados; mais vagas nas universidades públicas e mais bolsas para estudantes carentes em universidades privadas.
É tudo o que o Brasil branco e rico não quer fazer. Então, o jeito é ampliar as cotas. Aqui vão algumas: cotas de 30% para parlamentares honestos (quase 300, de um total de 513, sofrem algum tipo de processo ou de investigação no Congresso Nacional); cotas de 10% (não convém pedir muito no começo) de governantes eficazes e cumpridores das suas promessas de campanha; cotas de 1% (vejam que é um índice relativo, modesto) de juízes dispostos a pôr na cadeia criminosos do topo da pirâmide; cotas de 0,5% de parlamentares decididos a mudar a legislação para acabar com a impunidades dos Maluf, dos Calheiros, dos Collor, dos Dirceu e outros. Por fim, cota de um bom meio-campista no time do Inter.
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