Antropologia, Epistemologia e Ciência: algumas questões
Felipe Medeiros Pereira - acadêmico de Ciências Sociais, UnB, ensaio escrito para disciplina de "Sociedades Complexas" (profa Patrice Schuch)
Para tratarmos da “crise” da antropologia, que é um dos objetivos deste ensaio, julgo ser necessário buscarmos na gênese das Ciências Sociais as bases epistemológicas sobre as quais esta se funda. É notório que, mesmo muito criticadas e transgredidas, tais bases epistemológicas ainda funcionam como uma espécie de eterno retorno quando é posta em cheque a qualidade de Ciência das áreas humanas. Numa necessidade de autoafirmação científica, os nossos clássicos se espelham nas ciências naturais para elaborar um método verdadeiramente científico que descreva positivistamente a realidade.
Para ensejar uma melhor ideia de minha tese principal e sua importância para a sociologia, pode ser útil confrontá-la com outras determinadas teses que pertencem a uma metodologia largamente utilizada que, frequentemente, tem sido aceita e absorvida de forma praticamente inconsciente e acrítica. Existe, por exemplo, a equivocada e errônea abordagem metodológica do naturalismo ou cientificismo, que frisa que está na hora das ciências sociais aprenderem nas ciências naturais o que é método científico. [...] Qualquer uma destas teses que se atribui a este naturalismo equivocado está, em minha opinião, totalmente errada. Todas essas teses são baseadas em uma má compreensão dos métodos das ciências naturais, é praticamente, em um mito, um mito infelizmente muito largamente aceito e muito influente. É o mito do caráter indutivo do método das ciências naturais, e do caráter da objetividade das ciências naturais. (POPPER, 2004, p.17)
É justamente das bases epistêmicas que funcionam como estandarte para a dita objetividade do conhecimento social a que Popper se refere. Enxerga-se uma postura contrastante entre a objetividade nas ciências sociais e naturais quando, na realidade, a produção de conhecimento de ambas as áreas não deveria ser tão diferente assim. Esse contraste, que aparece muito claramente para alguns, é o que foi chamado de “má compreensão dos métodos das ciências naturais” (POPPER, 2004, p.17). Para a compreensão do que é o saber científico, tanto social quanto natural, é fundamental entender que a ciência é uma leitura de mundo baseada em estar errada, ou seja, cada hipótese levantada será criticada com tentativas de refutação até que seja falseada, e enquanto se não o é, torna-se valida temporariamente, entendimento contrário da imagem vendida pelo cientificismo naturalista que tem como pretensão uma Verdade. (POPPER, 2004)
Para ensejar uma melhor ideia de minha tese principal e sua importância para a sociologia, pode ser útil confrontá-la com outras determinadas teses que pertencem a uma metodologia largamente utilizada que, frequentemente, tem sido aceita e absorvida de forma praticamente inconsciente e acrítica. Existe, por exemplo, a equivocada e errônea abordagem metodológica do naturalismo ou cientificismo, que frisa que está na hora das ciências sociais aprenderem nas ciências naturais o que é método científico. [...] Qualquer uma destas teses que se atribui a este naturalismo equivocado está, em minha opinião, totalmente errada. Todas essas teses são baseadas em uma má compreensão dos métodos das ciências naturais, é praticamente, em um mito, um mito infelizmente muito largamente aceito e muito influente. É o mito do caráter indutivo do método das ciências naturais, e do caráter da objetividade das ciências naturais. (POPPER, 2004, p.17)
É justamente das bases epistêmicas que funcionam como estandarte para a dita objetividade do conhecimento social a que Popper se refere. Enxerga-se uma postura contrastante entre a objetividade nas ciências sociais e naturais quando, na realidade, a produção de conhecimento de ambas as áreas não deveria ser tão diferente assim. Esse contraste, que aparece muito claramente para alguns, é o que foi chamado de “má compreensão dos métodos das ciências naturais” (POPPER, 2004, p.17). Para a compreensão do que é o saber científico, tanto social quanto natural, é fundamental entender que a ciência é uma leitura de mundo baseada em estar errada, ou seja, cada hipótese levantada será criticada com tentativas de refutação até que seja falseada, e enquanto se não o é, torna-se valida temporariamente, entendimento contrário da imagem vendida pelo cientificismo naturalista que tem como pretensão uma Verdade. (POPPER, 2004)
A ciência é nada mais do que uma maneira de se enxergar o mundo, e não uma “entidade” que nos guiará ao encontro da Verdade. Não estou, de forma alguma, desmerecendo o conhecimento cientifico ao coloca-lo a par de outras maneiras de conhecer o mundo, mas apenas desnudando a compreensão do que é ciência de sua carga altamente imbuída de fé no empirismo.
É uma tarefa de fundamental importância para qualquer teoria do conhecimento, e talvez até um requisito crucial [...] esclarecer as relações entre nosso admirável e constantemente aumentado conhecimento e nosso frequentemente acrescido discernimento de que realmente nada conhecemos. (POPPER, 2004, p.14)
Acredito que seja algo próximo a essa postura que expus que Oliveira Filho (2009) encaminha em Pluralizando Tradições Etnográficas. A trabalhada ideia de impossibilidade de uma objetividade científica tal que produza Verdades é o que suscita os questionamentos de Oliveira Filho (2009) a respeito de um “certo mal-estar” dentro do campo da antropologia. As categorias normativas sob as quais a antropologia era (e talvez ainda seja) pensada colocavam o antropólogo em uma posição de poder vertical em relação às pessoas (e não informantes, objetos, nativos) que pretendia etnografar. A antropologia evolucionista pressupõe que existe uma neutralidade científica a ser perseguida, e que, portanto, o antropólogo jamais deve se deixar sensibilizar pelas pessoas a sua volta, tornando-se um “antropólogo da torre de marfim”, ou seja, aquele que observa do alto da torre com os olhos da objetividade. A partir de tal concepção, criou-se a caricatura do antropólogo marciano como sendo o único capaz de decifrar com objetividade um corpo social, pois, por ser alienígena, não estaria contaminado pelas práticas e costumes de determinado povo.
Escapava a essa noção objetivista da etnografia a concepção de que o olhar marciano sobre uma cultura não é, de forma alguma, um olhar objetivo, mas sim um olhar arbitrário. Essa ideia fica bem ilustrada em um texto que geralmente é passado como introdutório à antropologia, Ritos Corporais Entre os Sonacirema, mas que tece uma crítica mordaz a ideia mesma da objetividade marciana. Horace Miner descreve a sociedade americana sob o olhar marciano, mostrando que sem de fato compreender um contexto a ser vivenciado, a “objetividade” torna-se, na realidade, a arbitrariedade de um olhar superficial e (pré)conceituoso.
O antropólogo não é observador de Marte que, frequentemente, ele se acredita ser e cujo papel social, geralmente, tenta desempenhar (e não sem prazer), bastante desassociado do fato de que não há razão para se supor que um habitante de Marte nos veria mais "objetivamente" (POPPER, 2004, p. 19)
É justamente criticando tal arbitrariedade que Oliveira Filho (2009) defende as técnicas etnográficas como possibilitadoras de uma reaproximação com o propósito do trabalho do antropólogo. Imergir-se em um meio a ser estudado, torna-se então absolutamente necessário para a compreensão do mesmo. É reconhecendo que toda e qualquer forma de conhecimento é enviesada, que essa “contaminação” do etnógrafo é revalorizada e deixa de ser entendida como uma não-ciência para ser colocada como horizonte a ser perseguido. O antropólogo brasileiro Flávio Gordon vai ainda além, e diz a respeito de como o “nativo” pode interferir tanto no trabalho do antropólogo a ponto de fazê-lo rever sua metodologia e moldar-se de acordo com as necessidades que o campo apresenta.
Afinal, deve-se poder escolher entre enfatizar as intervenções do antropólogo na cultura do nativo ou as interferências do nativo sobre a cultura do antropólogo. Esta última inclui, evidentemente, os modos utilizados pelo antropólogo para descrever seus nativos e, sendo assim, sob interferência alheia, estes modos devem necessariamente se alterar. (GORDON, 2006)
Muito embora a crítica pós-moderna tenha surtido efeito contundente na maneira como a antropologia enxerga a si mesma, ela parece se retrair quando olhos conduzidos por “má compreensão” citada por Popper julgam-lhe como pseudociência.
Nos momentos de reafirmação identitária contudo todos os troféus recentes são retirados de cima da mesa, como seres mudos e ocos, suspeitos de ligação com outras áreas de conhecimento, enquanto paralelamente se opta por exibir apenas os mais antigos estandartes, marca inquestionável de uma especificidade irredutível e tranquilizadora. (OLIVEIRA FILHO, 2009, p. 6)
Tais momentos de reafirmação identitária deveriam ser, ao contrário do que são, os momentos em que a crítica pós-moderna se insurgiria para combater insinuações e julgamentos de pseudociência. O artigo de Oliveira Filho (2009) pode ser usado como ponto de partida para repensar a tradição etnográfica e o que vem sendo feito dela. Vivenciamos um momento de “mal-estar” e crise antropológica por estarmos, em geral, mal resolvidos com a ideia do que tem sido feito da etnografia. O tempo em que o etnógrafo chegava a campo para ditar as demandas de seus “nativos” ficou para trás, e começou-se a pensar em uma antropologia reversa onde o protagonismo deixa a figura do antropólogo para ser uma antropologia que não busca falar sobre, mas falar ao lado.
Marshall Sahlins questiona, em seu livro “Esperando Foucault, ainda”, a centralidade das questões colocadas pelos antropólogos. Diz-se que em qualquer embate de Ciências Sociais que Michel Foucault pode ser sacado como autor que perpassou as discussões que são centrais para a sociologia ou a antropologia europeia. É a partir dessa ideia que se concretiza a crítica da antropologia reversa, pois, ao que parece, Foucault perpassa a grande maioria das questões e problemas levantados pela cultura ocidental contemporânea, e, apesar da relevância dos questionamentos de Foucault, não são essas as problematizações centrais quando se trata de uma cultura que não a nossa, e a partir daí que surge a proposta da antropologia reversa, que busca não impor os problemas ocidentais sobre seus “nativos”.
A antropologia deixa de ser uma característica cultural (um atributo culturalmente específico: o modo pelo qual nós, ‘ocidentais’, conhecemos o Outro) e passa a ser o nome da relação entre modos diversos de lidar com a alteridade. (GORDON, 2006).
Tendo essa ideia introduzida por Flávio Gordon em mente, passo a discutir então a questão das auto-etnografias nativas como resposta ao que, antes, era considerado ofício do antropólogo. Essa nova antropologia, que re-conceituada por Gordon, deixa de ser o Eu, ou a Ciência falando do Outro, e dá espaço para que o poder palavra seja tomado pelo “nativo” e empregado à sua maneira, fora da visão ocidentalizante que, em geral, é característica do antropólogo. Estes novos espaços de fala que vem surgindo para que as próprias comunidades, antes etnografadas, falem por si, a respeito de si e para si (ou para o outro) causam um empoderamento dessas pessoas que antes não tinham o privilégio da palavra, mas sim o papel de objeto.
Com o surgimento das auto-etnografias parece que está sendo posta em cheque a “razão ética do antropólogo em estar apto a teorizar sobre o outro”, colocando como horizonte, numa leitura pessimista, o fim do trabalho do antropólogo, pois parece, em um primeiro momento, que a fala de si é irrefutável, e tendo esse espaço de discurso antropológico sido conquistado pelo “nativo”, não haveria então, uma razão de ser do antropólogo. Tal raciocínio bem que parece válido se operarmos dentro de uma lógica que a antropologia é isenta de personalidade, que a ela carece um autor. Mas o que se deve de fato perguntar é o que são as informações coletadas em campo, o porquê dessas informações e, por último, o que se pretende fazer delas.
O ofício do antropólogo, julgo eu, não deveria ter a pretensão de cunhar verdades objetivas a respeito de qualquer que seja o “objeto” escolhido a ser etnografado, mas sim de oferecer, a partir de sua pesquisa, uma leitura a ser considerada a respeito de sua vivência em campo. O fato de os escritos de um antropólogo sobre um “nativo” divergir em diversos aspectos de um texto escrito por seu “objeto” sobre ele mesmo não torna o texto etnográfico menos legítimo. A situação é análoga a de considerar duas etnografias feitas por dois antropólogos diferentes sobre uma mesma comunidade. O discurso produzido por eles irá divergir alguns aspectos, e convergir em outros. A possibilidade de que a auto-etnografia e a etnografia cheguem a “conclusões” diferentes não significa que uma postura deva ser considerada em detrimento da outra, e que um discurso é mais útil e mais legítimo que o outro, pois no fazer antropológico, a meu ver, deve-se estabelecer parâmetros para que a sociedade seja pensada, e não verdades sobre ela.