Claudia Fonseca, Doutora em Antropologia, Professora do PPGAS/UFRGS
Carmem Maria Craidy, Doutora em Educação, Professora do PPG-EDU/UFRGS
Saiu no dia 26 de novembro uma matéria na Folha de S. Paulo sobre uma pesquisa envolvendo cientistas universitários e representantes da Secretaria da Saúde do Rio Grande do Sul que se propõem a mapear os cérebros de cinqüenta adolescentes homicidas (a serem comparados com os cérebros de cinqüenta adolescentes não-infratores) e, assim, descobrir como se produz uma mente criminosa. Desde então, circula na Internet, na grande imprensa e em outros fóruns públicos uma discussão acalorada, a favor e contra a proposta. Defensores do projeto, sublinhando as respeitáveis credenciais de seus autores, expressam o receio de que ataques precipitados acabem por cercear a autonomia da ciência. Críticos sugerem que o princípio de autonomia jamais exime o pesquisador da responsabilidade de avaliar as implicações morais e éticas de seus procedimentos. Devemos lembrar que a maioria de nós não conhece a proposta original. Mas é justamente por causa das idéias que estão sendo veiculadas pela mídia que cabe certo trabalho de esclarecimento.
Uma pesquisa sobre adolescentes homicidas levanta inquietações de diversas ordens. Em primeiro lugar, o foco em infratores institucionalizados arrisca reforçar preconceitos que supõem uma relação intrínseca entre cor, classe e comportamento anti-social. Sabemos, por exemplo, que no Rio e em outras metrópoles a polícia é responsável por boa parte das mortes violentas. Porém, a maioria de nós acharia absurdo fazer ressonância magnética para checar tendências violentas nos cérebros desses profissionais. Além disso, é pouco provável que eles ou seus superiores institucionais aceitassem participar de tal pesquisa. Saberiam que a simples notícia dessa investigação com sua premissa de uma tendência fisio-biológica à violência bastaria para reforçar preconceitos contra a polícia.
Por que aceitar essa pesquisa tão facilmente entre adolescentes privados de liberdade? Porque nos abrigos, como nas cadeias, concentram-se as pessoas que menos têm voz não por causa de alguma tendência inata, mas porque quanto mais pobre e escuro for o acusado de qualquer crime, maiores serão suas chances de ser detido, condenado e encarcerado. O próprio funcionamento do sistema cria dentro das instituições uma amostra questionável mais representativa de pobres e discriminados do que de qualquer inclinação criminosa. Daí a segunda inquietação: esses indivíduos estão em condições de negociar os termos de sua participação numa pesquisa acadêmica?
Depois da Segunda Guerra Mundial e da constatação de atrocidades perpetradas por cientistas do regime nazista, a comunidade científica mundial se viu incumbida -- em Genebra, Nuremberg, Helsinque -- de estabelecer as bases éticas de sua prática. No alto na lista de prioridades constava o princípio de que nenhum sujeito humano deveria ser incluído numa investigação sem ter compreendido e assentido, livre de qualquer coerção, aos riscos e objetivos da pesquisa. Num primeiro momento, reinava uma crença ingênua de que regimes autoritários tinham o monopólio da má ciência. O espírito crítico, a transparência e a neutralidade, vistos como atributos típicos das democracias ocidentais, seriam os ingredientes necessários e suficientes para o bom desenvolvimento científico. Foi um médico da Universidade de Harvard, Henry Beecher, o primeiro a levantar suspeitas quanto à ética de pesquisa no seio da democracia. Em 1966, ele publicou um levantamento de 22 projetos desenvolvidos por cientistas qualificados e bem-intencionados em que os seres humanos examinados tinham sido, de alguma forma, prejudicados pela pesquisa. Uma das críticas mais alarmantes era que os sujeitos pesquisados faziam parte de populações que não tinham condições de recusar participação: recrutas militares, portadores de deficiência mental, idosos... Seguindo nessa linha de reflexão, a investigação científica envolvendo adultos ou adolescentes privados de liberdade seria ainda mais preocupante. Pergunta-se: esses indivíduos estão em condições de negociar os termos de sua participação numa pesquisa acadêmica? Trata-se de uma questão ética que vai muito além da assinatura em um formulário de consentimento informado.
Certamente, é do interesse de adolescentes privados de liberdade receber todos os benefícios de tratamento e terapia que o aparelho estatal tenha a oferecer. O problema não é aplicar testes para realizar programas voltados para o bem-estar dos indivíduos em questão. O perigo surge quando projetamos generalizações a partir de casos individuais, usando estereótipos que envolvem aspectos de cor e de classe para formular as hipóteses e orientar as interpretações.
Se, por ventura, fosse constatada uma desproporção de jovens com problemas neurológicos no grupo de adolescentes homicidas, caberia então localizar, como grupo de controle, adolescentes não-infratores com problemas semelhantes. Investigar os fatores que levaram ao relativo sucesso destes últimos apontaria para as condições sociais (terapêuticas e outras) relevantes para a realização individual e o entrosamento na vida social. Sem esse cuidado metodológico, o problema da pesquisa se transforma em tautologia, garantindo de antemão conclusões que ligam patologia médica com comportamento anti-social.
Há no Brasil inúmeros centros de estudos interdisciplinares que reúnem pesquisadores para tentar entender o fenômeno da violência. Já demonstraram, com farta ilustração empírica, o impacto de fatores tais como qualidade de educação, possibilidades de renda, atividades de lazer e cultura, acesso ao consumo e busca de visibilidade social. Sem dúvida, concordariam que a violência é um problema de saúde pública, mas insistiriam que a saúde envolve muito mais do que eventuais problemas cerebrais. Preocupados com as conseqüências políticas e éticas da pesquisa, eles evitariam termos reducionistas (adolescente homicida, mente criminosa) que arriscam reforçar o estigma contra as pessoas pesquisadas.
Enfim, o saber científico não se constrói em termos maniqueístas. Pesquisadores de todas as áreas lidam com dilemas éticos que não são de fácil solução. A presente polêmica, ao relevar as inevitáveis facetas políticas e morais de qualquer pesquisa, tem o efeito salutar de ampliar o círculo de interlocutores, alertando inclusive os leigos para a necessidade de acompanhar de mais perto o andamento da ciência.
Nota:
No dia 05 de janeiro, submetemos à apreciação da Folha de S.Paulo o artigo acima, a respeito de discussões inspiradas na reportagem de Rafael Garcia sobre uma pesquisa no Rio Grande do Sul com adolescentes homicidas. Dois dias depois recebemos uma manifestação de interesse de Rafael Garcia, repórter do setor Ciência, dizendo que não tinha idéia de que o assunto tivesse repercutido tanto, já que esta é a primeira carta que nós recebemos aqui na editoria de ciência sobre essa reportagem. No dia 10, fomos convidadas a submeter uma versão abreviada de nosso texto (3.800 toques) para ser publicada no Caderno Mais do domingo seguinte, junto com outros artigos sobre o tema. Aceitamos fazer a redução solicitada. Sábado, dia 19, o repórter entrou em contato para dizer que o artigo sairia só na segunda-feira, e devido a um anúncio que tinha entrado na página devíamos cortar imediatamente mais 10 linhas. Não querendo agir de forma leviana, e considerando que uma das autoras estava em viagem, informamos que não seria possível efetuar os cortes nesse curto prazo.
Foi com grande interesse que acompanhamos a publicação das matérias na segunda, dia 21 de janeiro. Contudo, estranhamos o editorial de 22/1 em que a FSP ataca um grupo de pesquisadores e ativistas que se assustaram com os termos da pesquisa tal como foi retratada pela Folha. Sem fazer referência ao artigo original da própria FSP que fala em mapear o cérebro de adolescentes homicidas para descobrir como se produz uma mente criminosa, o editorial descreveu a pesquisa já em termos mais sofisticados. Falou em jovens sob custódia do Estado que cometeram homicídios; entrou Descartes, saiu a mente criminosa. Com isso, os editores eximiram-se de qualquer responsabilidade pelo tom acalorado do repúdio. Em vez de mediar um debate necessário, a Folha optou por acirrar a celeuma criticando um bate-boca que ela mesma criou.
Carmem Maria Craidy, Doutora em Educação, Professora do PPG-EDU/UFRGS
Saiu no dia 26 de novembro uma matéria na Folha de S. Paulo sobre uma pesquisa envolvendo cientistas universitários e representantes da Secretaria da Saúde do Rio Grande do Sul que se propõem a mapear os cérebros de cinqüenta adolescentes homicidas (a serem comparados com os cérebros de cinqüenta adolescentes não-infratores) e, assim, descobrir como se produz uma mente criminosa. Desde então, circula na Internet, na grande imprensa e em outros fóruns públicos uma discussão acalorada, a favor e contra a proposta. Defensores do projeto, sublinhando as respeitáveis credenciais de seus autores, expressam o receio de que ataques precipitados acabem por cercear a autonomia da ciência. Críticos sugerem que o princípio de autonomia jamais exime o pesquisador da responsabilidade de avaliar as implicações morais e éticas de seus procedimentos. Devemos lembrar que a maioria de nós não conhece a proposta original. Mas é justamente por causa das idéias que estão sendo veiculadas pela mídia que cabe certo trabalho de esclarecimento.
Uma pesquisa sobre adolescentes homicidas levanta inquietações de diversas ordens. Em primeiro lugar, o foco em infratores institucionalizados arrisca reforçar preconceitos que supõem uma relação intrínseca entre cor, classe e comportamento anti-social. Sabemos, por exemplo, que no Rio e em outras metrópoles a polícia é responsável por boa parte das mortes violentas. Porém, a maioria de nós acharia absurdo fazer ressonância magnética para checar tendências violentas nos cérebros desses profissionais. Além disso, é pouco provável que eles ou seus superiores institucionais aceitassem participar de tal pesquisa. Saberiam que a simples notícia dessa investigação com sua premissa de uma tendência fisio-biológica à violência bastaria para reforçar preconceitos contra a polícia.
Por que aceitar essa pesquisa tão facilmente entre adolescentes privados de liberdade? Porque nos abrigos, como nas cadeias, concentram-se as pessoas que menos têm voz não por causa de alguma tendência inata, mas porque quanto mais pobre e escuro for o acusado de qualquer crime, maiores serão suas chances de ser detido, condenado e encarcerado. O próprio funcionamento do sistema cria dentro das instituições uma amostra questionável mais representativa de pobres e discriminados do que de qualquer inclinação criminosa. Daí a segunda inquietação: esses indivíduos estão em condições de negociar os termos de sua participação numa pesquisa acadêmica?
Depois da Segunda Guerra Mundial e da constatação de atrocidades perpetradas por cientistas do regime nazista, a comunidade científica mundial se viu incumbida -- em Genebra, Nuremberg, Helsinque -- de estabelecer as bases éticas de sua prática. No alto na lista de prioridades constava o princípio de que nenhum sujeito humano deveria ser incluído numa investigação sem ter compreendido e assentido, livre de qualquer coerção, aos riscos e objetivos da pesquisa. Num primeiro momento, reinava uma crença ingênua de que regimes autoritários tinham o monopólio da má ciência. O espírito crítico, a transparência e a neutralidade, vistos como atributos típicos das democracias ocidentais, seriam os ingredientes necessários e suficientes para o bom desenvolvimento científico. Foi um médico da Universidade de Harvard, Henry Beecher, o primeiro a levantar suspeitas quanto à ética de pesquisa no seio da democracia. Em 1966, ele publicou um levantamento de 22 projetos desenvolvidos por cientistas qualificados e bem-intencionados em que os seres humanos examinados tinham sido, de alguma forma, prejudicados pela pesquisa. Uma das críticas mais alarmantes era que os sujeitos pesquisados faziam parte de populações que não tinham condições de recusar participação: recrutas militares, portadores de deficiência mental, idosos... Seguindo nessa linha de reflexão, a investigação científica envolvendo adultos ou adolescentes privados de liberdade seria ainda mais preocupante. Pergunta-se: esses indivíduos estão em condições de negociar os termos de sua participação numa pesquisa acadêmica? Trata-se de uma questão ética que vai muito além da assinatura em um formulário de consentimento informado.
Certamente, é do interesse de adolescentes privados de liberdade receber todos os benefícios de tratamento e terapia que o aparelho estatal tenha a oferecer. O problema não é aplicar testes para realizar programas voltados para o bem-estar dos indivíduos em questão. O perigo surge quando projetamos generalizações a partir de casos individuais, usando estereótipos que envolvem aspectos de cor e de classe para formular as hipóteses e orientar as interpretações.
Se, por ventura, fosse constatada uma desproporção de jovens com problemas neurológicos no grupo de adolescentes homicidas, caberia então localizar, como grupo de controle, adolescentes não-infratores com problemas semelhantes. Investigar os fatores que levaram ao relativo sucesso destes últimos apontaria para as condições sociais (terapêuticas e outras) relevantes para a realização individual e o entrosamento na vida social. Sem esse cuidado metodológico, o problema da pesquisa se transforma em tautologia, garantindo de antemão conclusões que ligam patologia médica com comportamento anti-social.
Há no Brasil inúmeros centros de estudos interdisciplinares que reúnem pesquisadores para tentar entender o fenômeno da violência. Já demonstraram, com farta ilustração empírica, o impacto de fatores tais como qualidade de educação, possibilidades de renda, atividades de lazer e cultura, acesso ao consumo e busca de visibilidade social. Sem dúvida, concordariam que a violência é um problema de saúde pública, mas insistiriam que a saúde envolve muito mais do que eventuais problemas cerebrais. Preocupados com as conseqüências políticas e éticas da pesquisa, eles evitariam termos reducionistas (adolescente homicida, mente criminosa) que arriscam reforçar o estigma contra as pessoas pesquisadas.
Enfim, o saber científico não se constrói em termos maniqueístas. Pesquisadores de todas as áreas lidam com dilemas éticos que não são de fácil solução. A presente polêmica, ao relevar as inevitáveis facetas políticas e morais de qualquer pesquisa, tem o efeito salutar de ampliar o círculo de interlocutores, alertando inclusive os leigos para a necessidade de acompanhar de mais perto o andamento da ciência.
Nota:
No dia 05 de janeiro, submetemos à apreciação da Folha de S.Paulo o artigo acima, a respeito de discussões inspiradas na reportagem de Rafael Garcia sobre uma pesquisa no Rio Grande do Sul com adolescentes homicidas. Dois dias depois recebemos uma manifestação de interesse de Rafael Garcia, repórter do setor Ciência, dizendo que não tinha idéia de que o assunto tivesse repercutido tanto, já que esta é a primeira carta que nós recebemos aqui na editoria de ciência sobre essa reportagem. No dia 10, fomos convidadas a submeter uma versão abreviada de nosso texto (3.800 toques) para ser publicada no Caderno Mais do domingo seguinte, junto com outros artigos sobre o tema. Aceitamos fazer a redução solicitada. Sábado, dia 19, o repórter entrou em contato para dizer que o artigo sairia só na segunda-feira, e devido a um anúncio que tinha entrado na página devíamos cortar imediatamente mais 10 linhas. Não querendo agir de forma leviana, e considerando que uma das autoras estava em viagem, informamos que não seria possível efetuar os cortes nesse curto prazo.
Foi com grande interesse que acompanhamos a publicação das matérias na segunda, dia 21 de janeiro. Contudo, estranhamos o editorial de 22/1 em que a FSP ataca um grupo de pesquisadores e ativistas que se assustaram com os termos da pesquisa tal como foi retratada pela Folha. Sem fazer referência ao artigo original da própria FSP que fala em mapear o cérebro de adolescentes homicidas para descobrir como se produz uma mente criminosa, o editorial descreveu a pesquisa já em termos mais sofisticados. Falou em jovens sob custódia do Estado que cometeram homicídios; entrou Descartes, saiu a mente criminosa. Com isso, os editores eximiram-se de qualquer responsabilidade pelo tom acalorado do repúdio. Em vez de mediar um debate necessário, a Folha optou por acirrar a celeuma criticando um bate-boca que ela mesma criou.